Resumo

Pretende-se aqui investigar aspectos da representação pictórica e sua relação com a cidade moderna, através da obra do artista e arquiteto húngaro Géza Heller, imigrado para a cidade do Rio de Janeiro em 1935. O artista produziu dezenas de grafites, bicos de pena e aquarelas que registram importantes transformações da cidade, como a demolição do casario às abas do Morro do Castelo, a construção dos edifícios da nova Esplanada, a demolição da primeira geração de edifícios da Avenida Central para sua verticalização, a demolição dos edifícios do Largo da Carioca e das quadras que deram passagem à Avenida Presidente Vargas, entre outros. Registra também a construção de importantes monumentos modernos, como o edifício do Ministério da Educação e Saúde e a Estação Central do Brasil, da qual é co-autor. Sua obra é, desta forma, um campo privilegiado para os estudos relativos à memória da cidade, e às transformações urbanas, que podem ser estudadas não apenas através de seus temas, mas igualmente de seu traço. No contexto da nova onda de transformações urbanas por que passa a cidade do Rio de Janeiro, a obra de Géza Heller, recentemente divulgada por uma exposição no Parque das Ruínas, demonstra sua atualidade. Investigando-a à luz de conceitos de Argan e Boyer, nos sentimos pressionados a rever nossa relação com a cidade e sua história.

Palavras-chave: Géza Heller, Rio de Janeiro, representação, modernidade, memória, paisagem urbana

Abstract

The present article intends to investigate aspects of pictorial representation and its relation to the modern city, through the work of Hungarian artist and architect Géza Heller, who immigrated to the city of Rio de Janeiro in 1935. The artist produced dozens of graffiti, nozzles pen and watercolors that record important changes in the city, such as the demolition of the houses to the flaps of the “Morro do Castelo”, the construction of new buildings at the Esplanade, the demolition of the first generation of buildings at Central Avenue to its verticalization, the demolition of buildings at “Largo da Carioca” and at the blocks that gave way to the Presidente Vargas Avenue, among others. Heller also registers the construction of important modern monuments such as the Ministry of Education and Health of Brazil (MES) and the Central Station buildings, of which the last he is co-author. His work is thus an ideal instrument for studies on the city’s memory and urban transformations, which can be investigated not only through its themes, but also through his techniques. In Rio de Janeiro’s new wave of urban transformations, the work of Géza Heller, released recently by an exhibition at “Parque das Ruínas”, demonstrates its relevance. Investigating it at the light of concepts of Argan and Boyer, we feel pressured to review our relationship with the city and its history.

Keywords: Géza Heller, Rio de Janeiro, representation, modernity, memory, cityscape

Introdução

“Qualquer que seja a sua antiguidade, a obra de arte ocorre como algo que acontece no presente.” G. C. Argan

Este trabalho pretende analisar registros do espaço urbano feitos pelo arquiteto, desenhista e pintor húngaro Géza Heller, nas décadas de 1930 e 1940, no Rio de janeiro. Parte-se do princípio que o artista, um dos poucos a se dedicar à temática do espaço urbano e das transformações da cidade neste importante período de modernização, traduziu, tanto em seu traço quanto no tema das obras, questões referentes à modernidade urbana, à memória e à cidade como obra de arte.1 Procuramos investigar as três camadas que, segundo Argan (1998, p.29), conformam uma obra: as noções culturais do artista, em sintonia com a sua sociedade; as habilidades técnicas e representacionais, que se relacionam com seu fazer

profissional; e a contribuição pessoal do artista.

O artista

O arquiteto húngaro Géza Heller chegou para fixar residência no Rio de Janeiro em 1935. Getúlio Vargas já ensaiava seu golpe, e impunha grandes transformações à cidade. Para levar seu plano de modernização adiante, implementaria a ditadura do Estado Novo, regime certamente familiar ao artista europeu, que fugira da Europa do entre-guerras.

Heller formara-se, em 1921, na Escola Superior de Arquitetura de Budapeste, onde seu irmão mais novo não pôde se matricular devido à lei que limitava as vagas para judeus. Dez anos depois, devido a esta e outras leis que indicavam a proximidade da faxina étnica nazista, embarcou num navio rumo à Montevidéu, onde alguns amigos já residiam. Desta viagem, existem diversos desenhos feitos a bordo, registrando o próprio navio e os portos por onde passou: Rio de Janeiro (fig. 1) e Santos. Segundo o artista, foi nessa passagem que se apaixonou pelo Rio de Janeiro, aonde viria a fixar residência quatro anos depois.

1 “Portanto, ela [a cidade] não é apenas (...) um invólucro ou uma concentração de produtos artísticos, mas um produto artístico ela mesma. (...) a obra de arte não é mais a expressão de uma única e bem definida personalidade artística, mas de uma soma de componentes não necessariamente concentrada numa pessoa ou numa época.” (ARGAN, 1998, p.73)

Figura 1. Géza Heller. Porto do Rio de Janeiro. Fonte: catálogo da exposição Géza Heller, 2012, p.16

Como não teve seu diploma imediatamente reconhecido no Brasil, Heller, assim como diversos outros profissionais do leste europeu, acabou empregando-se em escritórios de outros arquitetos imigrantes provindos de países com mais “status” no Brasil, ou já residentes há algum tempo na cidade. Assim, trabalhou ao lado do escocês Robert Prentice, do húngaro radicado na cidade desde 1926, Adalbert Szilard, e do francês Henri Sajous. Exímio desenhista, Heller era o responsável pelas perspectivas de apresentação dos projetos. Seu agudo senso de observação do ambiente construído se estende dos detalhes construtivos – registrados nas muitas cadernetas que o artista levava consigo e onde desenhava padrões, gradis, e encaixes – ao ambiente urbano, que ele registrou em desenhos a bico de pena e que também apareciam contextualizando as grandes perspectivas de projeto.

Sua contribuição ao desenvolvimento dos projetos ainda não pôde ser devidamente avaliada. Toda a produção é atribuída aos arquitetos responsáveis, ainda que saibamos que Heller dirigiu o escritório carioca de Sajous quando este fixou residência em São Paulo, a partir de 1944. Apenas na bem documentada evolução do projeto da Estação Ferroviária Central do Brasil podemos ter certeza da sua visionária capacidade projetual. Mas esta capacidade de entender o movimento da cidade e projetar o futuro só nos interessa, aqui, na medida em que complementa a habilidade de tornar histórica a sua representação da cidade.

O acervo de Heller guarda algumas dezenas de bicos-de-pena, grafites e aquarelas que retratam a cidade do Rio de Janeiro. Laranjeiras - onde o arquiteto residiu até se mudar para a cidade mineira de Passa Quatro, aos 85 anos – e imediações, junto com o Centro, são os espaços que privilegiou em suas representações. Alguns de seus registros foram publicados na revista Arquitetura e Urbanismo 2, do Instituto de

Arquitetura do Brasil, o que demonstra a importância concedida a eles pela classe dos arquitetos já naquela época.

Em 1942, Heller tornou-se aluno de pintura de Alberto da Veiga Guignard e, já em 1943, expôs na primeira coletiva do grupo que ficou conhecido como “Grupo Guignard”. Ao longo da década de 1940, o interesse pela cidade persistiu, e a

2 Encontramos reproduções nos números de setembro e outubro de 1938 e maio e junho de 1939.

pesquisa das técnicas pictóricas correu junto a seu empenho em documentar as transformações da cidade. Ao final da década, os registros in loco do ambiente urbano se tornam mais raros, embora sejam deste período algumas de suas mais felizes traduções artísticas da cidade do Rio de Janeiro. A obra apresentada na figura 2 é testemunho de como Heller foi capaz de encontrar uma procedente intersecção entre a linguagem da pintura moderna – neste caso, a obra de Paul Klee - e a paisagem da cidade.

Figura 2. Géza Heller. Sem título. Fonte: acervo pessoal de Sylvia Heller.

A Cidade

De 1937 a 1945, o centro do Rio se expandiu em direção a um espaço inexistente: para o mar, com os aterros; para o céu, com a verticalização urbana; e para o lugar das antigas colinas do Centro, demolidas quase todas porque estavam no caminho do “progresso”. Sobraram as colinas do mar do Valongo, lado de dentro da Guanabara, para onde a cidade ainda não queria ir. Sobreviveram o morro dos poderosos beneditinos, o Morro da Conceição (devidamente escondido pelo “arranha-céu” A Noite) e os morros da Saúde, Pinto e Gamboa, a beira mar, zona de prostíbulos e galpões que ficou reservada ao porto de comércio.

A esplanada do Morro do Castelo e seu aterro adjacente começaram a ser ocupados em 1930, de acordo com o Plano urbanístico de Alfred Agache. Trabalhando no escritório de Henri Sajous, localizado no recém-inaugurado edifício Nilomex, obra de Robert Prentice para a nova esplanada, Heller registraria as transformações bem abaixo da sua janela. Seus desenhos mostram a construção dos grandes ministérios, em especial o edifício modernista do Ministério da Educação e Saúde, das quadras planejadas e, também, os últimos dias da antiga arquitetura, alojada nos resquícios do Morro do Castelo. Ao fundo, os marcos verticais que começam a pontuar a cidade, e outros condenados ao desaparecimento. Heller registra igualmente as transformações do Largo da Carioca, ampliado em 1938, com as demolições da Imprensa Nacional e do Hospital da Ordem Terceira da Penitência. Produz também desenhos que mostram a demolição de dois grandes monumentos da arquitetura colonial, destruídos para dar passagem à Avenida Presidente Vargas: a Igreja de São Pedro dos Clérigos e a Igreja de Bom Jesus do Calvário.

A cidade sofria, desde a década de 1920, os reflexos de todos os problemas trazidos pela industrialização: crescimento dos subúrbios sem infraestrutura, deficiência na área de transportes, déficit habitacional, gerando especulação do solo urbano e ocupações irregulares. Prado Júnior encomendara ao urbanista Alfred Agache um plano para solucionar os problemas da cidade, que não chega a ser implantado, entre outras coisas, devido à Revolução de 1930. No entanto, “a fórmula apresentada por Agache para a resolução dos problemas da República Velha – ou seja, a intervenção do Estado no processo de reprodução da força de trabalho urbana – se constituirá na mola mestra do novo regime que Getúlio Vargas implanta no país.” (ABREU, 1997, p.90).

Aproveitando-se do enfraquecimento das oligarquias rurais, ao qual não correspondeu imediatamente uma burguesia industrial e financeira dominante, Getúlio Vargas fez valer seu projeto de modernização, privilegiando os monumentos institucionais e os grandes eixos viários, inspirados em Agache.3 À grande perspectiva da larga Avenida Presidente Vargas (1942), correspondem a eletrificação da Central do Brasil (1935) e

a abertura da Avenida Brasil (1946), que completavam o plano viário de Getúlio. Mas a “drástica cirurgia” (LIMA, 1990) representada pela avenida superestimou o desenvolvimento do centro. Na verdade, a década de 1940 viu o crescimento de centros de bairro e o boom da zona sul. O contido crescimento da área central pôde facilmente ser absorvido pela Esplanada do Castelo e pela verticalização do eixo já constituído da Avenida Central (ABREU, 1997, pp.114-115).

Desta forma, a enorme avenida permaneceu bem diferente das perspectivas propagandeadas pelo governo e pelas firmas de engenharia e elevadores elétricos nas revistas, em fotomontagens de maquetes mostrando o futuro (fig.3). O futuro da Avenida Presidente Vargas, ladeada pelas grandiosas fileiras de arranha-céus que o capital construiria, jamais se completou. O futuro da Esplanada do Castelo, realização da utopia agacheana, se veria ultrapassado antes da ocupação da décima quadra. Enquanto isso, Géza Heller se preocupava em registrar as obras, resquícios, trabalhadores, mudanças de plano. O artista apreendera o sentido do moderno, e sabia que moderno não era o enclave estudado de Agache, mas a cidade em seu movimento, em seu caminho para um futuro sobre o qual só se poderia saber que mudaria a cada instante. Um futuro tão mais incerto quanto mais se apagavam as marcas do passado.

3 Maurício de Abreu (1997, pp.113-114) destaca que “O Plano Agache havia sugerido a construção “de uma grande avenida de continuação do Canal do Mangue” que, exigindo a demolição de todos os prédios situados entre as antigas ruas General Câmara e São Pedro, “desembaraçaria a bonita Igreja da Candelária, que se inscreveria perfeitamente na sua perspectiva”. Com pequenas modificações, a sugestão de agache foi implementada durante o Estado Novo.”

Figura 3. Projeto da Av. Presidente Vargas, publicado na revista PDF de abril/1941. Fonte: http://dc370.4shared.com/doc/-dGxYUmK/preview.html

A representação

O Rio de Janeiro foi a cidade que Heller adotou. Nela, e com ela, desenvolveu suas habilidades e fez-se artista pleno, sem jamais retornar à Europa ou tomá-la como referencial. A intensa relação que desenvolveu com o Rio de Janeiro está registrada em seus desenhos, assim como uma paixão numa série de cartas de amor. Com a prancheta e a pena, tateou a cidade até inscrevê-la no mais profundo de sua memória. Ao invés dos monumentos de praxe, preferia os becos, as obras, o movimento das ruas. Seus desenhos não são registros de passeios de um turista, nem pesquisas técnicas de um arquiteto. São a construção da memória afetiva de quem escolheu o Rio de Janeiro para viver. Desenhando, Heller conheceu e reconheceu a cidade. Desenhando-a, tornou-se carioca. Ao construir a sua memória afetiva, construía também a memória histórica da cidade.

Para um imigrante, a criação de uma memória é também esquecimento, ou superação de uma memória anterior. Talvez Géza Heller construísse assim uma relação ambígua com sua própria memória. Ao fixar no papel momentos de transformação da cidade, estivesse também desenhando seu próprio movimento de transformação. E ao fazê-lo, deixava de lado a lembrança da difícil experiência anterior.

A relação entre memória e esquecimento pode-se objetivar num discurso, mas, para que a relação exista, deve também existir o documento capaz de dar à memória pelo menos a mesma força do esquecimento: o documento que se imponha como pilar da memória e que a memória tende, inevitavelmente, a rejeitar. (SARLO, 1997, p.41).

Seu traço e seus temas mostram a cidade em transformação. O esforço de registrar este movimento traduz a consciência de que o moderno não é só tecnologia, mas também história. Enquanto os modernistas do novo continente se entendiam como

fundadores de uma história artística,4 Heller preocupava-se em registrar cada documento pretérito em sua agonia. Por isso sentou-se à frente da demolição do teatro e do cassino do Passeio Público (fig. 4). Enquanto os cariocas comemoravam o fim do “emplastro pretensioso”5 que durara apenas quinze anos, Heller reconhecia o

documento que, a despeito de méritos formais, constituía um capítulo da história da cidade. Sem ele, como seria o moderno parte desta história? Argan (1998, p.74) destaca a “artificiosa concentração da historicidade” nos centros antigos das cidades, enquanto as novas construções modernas são consideradas desprovidas de historicidade.6 Exatamente porque compreende a historicidade do moderno, Heller pode ser, a um só tempo, um documentarista e um projetista, pode valorizar cada

documento do passado, e ainda assim projetar uma nova arquitetura para o futuro.

Figura 4. Géza Heller. Demolição do Cassino Beira-Mar. Fonte: catálogo da exposição Géza Heller, 2012, p.31

Seu interesse pela cidade moderna, que não é a cidade acabada ou ideal, mas a “cidade do devir”7, traduz-se na técnica rápida dos registros em bico de pena e, porque não dizer, no maior monumento saído de sua prancheta: a grande torre do relógio da Estação Central do Brasil. O grande relógio, de frente para a avenida expressa e a estrada de ferro mais movimentada do Brasil, marca para a cidade a instauração de um novo tempo – e o desenho de Heller, onde se justapõem a antiga e a nova estação deve ser lido neste sentido (fig.5). Trata-se de uma imagem em que passado e presente convivem momentaneamente, uma alegoria da transformação

4 Argan (1998, pp.60-61) demonstra como os artistas americanos, “de Dewey a Langer e Arheim” subestimavam a gênese histórica da arte, “afirmando seu caráter individualista, de experiência criadora autônoma”. Podemos estender esta ideia ao movimento modernista no Brasil.

5 “O jornal A Noite comemorou o fim do emplastro pretencioso e floreado”, cujo projeto mesclava elementos ecléticos e neocoloniais”. (PREFEITURA ..., 2012, p.30).

6 Caberia destacar a primazia das instituições patrimoniais brasileiras ao reconhecer o valor histórico dos monumentos modernos, embora os tombamentos iniciais se referissem a obras isoladas, e não a conjuntos urbanos.

7 “a cidade moderna contrapõe-se à antiga exatamente na medida em que reflete o conceito de uma cidade que, não tendo uma instituição carismática, pode continuar a mudar sem uma ordem providencial e que, portanto, exatamente a sua mudança contínua é representativa (...).” (ARGAN, 1998, pp.74-75).

moderna:

Cada discurso define uma ordem espacial, uma imagem congelada que captura o modo pelo qual o presente transitório é percebido. Momentaneamente apreendendo forças destrutivas e energéticas, as formas representacionais se tornam registros sucintos do que consideramos ser a realidade do presente. Estes modelos estéticos transformam nosso senso do real, pois a imagem da cidade é um conceito abstrato, uma forma construída imaginária.8 (BOYER, 1996, p.31, grifos nossos).

Figura 5. Géza Heller. Sem Título. Fonte: catálogo da exposição Géza Heller, 2012, p.75

Os registros do artista nos chamam ainda mais a atenção por serem únicos, raros. A comoção que causou na opinião pública a demolição da igreja setecentista de São Pedro dos Clérigos, para a passagem do leito da Av. Presidente Vargas, era suposta ter inspirado mais registros daquela arquitetura prestes a se perder.9 No entanto, são muito raros os registros da pequena igreja que, em dado momento, encontrava-se isolada numa esplanada ameaçadora, em ótima posição, no espaço e no tempo, para ser registrada. As fotografias que se conhecem dela não somam uma dezena, e, ao que tudo indica, apenas o artista húngaro sentou-se diante de sua demolição para eternizá-

8 No original: “Every discourse sets up a spatial order, a frozen image that captures the manner in which a transitory present is perceived. Momentarily arresting disruptive and energetic forces, representational formes become succinct records of what we consider to be present reality. These aesthetic models transform our sense of the real, for the image of the city is an abstract concept, an imaginary constructed form.”

9 Evelyn Furquim Werneck Lima (1990, p.39-40) registra a polêmica sobre a demolição e as ideias de transladá-la para outros locais, publicadas pelos jornais da época.

la (Fig. 6). Os pintores e desenhistas em seus ateliês, e os arquitetos preocupados demais em projetar esqueceram-se de ver a cidade. Talvez não fossem capazes de, olhando o furor de sua transformação, entender que aquela era ela, a cidade, e que não existiria uma nova cidade, petrificada para registro, em nenhum futuro mais além. Esperaram para ver o que seria justo registrar, quando a transformação acabasse, mas ela jamais acabaria. Para os artistas modernos brasileiros, a experiência estética só poderia estar fora, ou além, da experiência cotidiana. Não havia sentido em registrar a paisagem urbana que não correspondia ainda ao ponto zero da história que se pretendia construir. “A cidade real”, como diz Argan (1998, p.74), “reflete as dificuldades do fazer a arte, e as circunstâncias contraditórias do mundo em que se faz”.

Figura 6. Géza Heller. Demolição da Igreja de São Pedro. Fonte: catálogo da exposição Géza Heller, 2012, p.79

Géza Heller sabia que também a técnica era premida pelo tempo. O traço muda com a cidade, e o registro não é só das obras em curso, ou do morro a esvair-se, mas do traço sôfrego que, na velocidade emanada da mão, reflete a velocidade que o artista intui e, ao contrário de querer paralisar, como na foto, é mais um tema que ele representa. O valor artístico do desenho de Heller está em superar o momento histórico em que habita (a data), denunciando, em sua forma, o caráter, o clima e o sentido contraditório de uma época que, querendo criar monumentos perenes, testemunhava contra qualquer perenidade.

O traço rápido é o registro do trabalho de artista, enquanto registra também o trabalho, contemporâneo e correlato, do operário. Ambos, juntos, são o trabalho da cidade em sua trajetória histórica. Ambos, tema e técnica, traduzem sensivelmente a aceleração do tempo moderno em seu momento de paroxismo – momento em que as coisas já quase não valem como coisas, mas como símbolos desta aceleração. O traço de Heller encontra-se exatamente neste ponto, em que o tema quase se perde na velocidade do traço, em que quase deixamos de enxergá-lo para nos admirarmos com o ponto a que o artista adequou sua técnica a fim de captar o sentido do tempo.

A maior parte de seus registros a bico-de-pena comprova seu interesse pela construção, pelas técnicas e o trabalho que só se vê no decorrer do processo, do fazer. Quando registra a pedreira do Morro da Viúva (Fig.7), pertencente à construtora Januzzi &Cia, Heller relega ao segundo plano a imagem perene do Corcovado, e faz

da pedreira, com cujo granito se construíam os edifícios da nova Esplanada do Castelo, o foco de sua representação. Seu tema era a cidade em transformação e, para um arquiteto, a transformação é material. “A cidade é uma construção”, diz Argan (1998, p.75), “e o ponto de partida de toda construção é a construtibilidade, antes de considerar a cidade em relação a categorias estéticas, é preciso considerá-la em relação às técnicas que a tornam não apenas concebível, mas projetada (...).”

Figura 7. Géza Heller. Morro da Viúva. Fonte: catálogo da exposição Géza Heller, 2012, p.23

Seria preciso considerar ainda que o interesse de Heller pelas técnicas que fazem mudar os processos e a arte também é evidente em sua experiência como pintor. O artista utilizou todas as técnicas do desenho sobre papel (lápis, carvão, pastel oleoso, bico de pena, aquarela, guache), experimentou a gravura e a pintura sobre diversos suportes, além de ter criado uma técnica especial de monotipia (PREFEITURA..., 2012, p.16).

Chama a atenção, no cômputo de suas obras, a insistência e esmero com que registra os antigos sobrados que avistava da janela do escritório de Henri Sajous, no edifício Nilomex, recém-inaugurado na esplanada do Castelo. Os pequenos sobrados, antes às abas do Morro do Castelo, aparecem ilhados entre a Avenida Rio Branco e a nova Esplanada, e ostentam o abandono de quem vê próximo o fim. Essa melancolia e a lembrança de um tempo mais duradouro não passam despercebidos a Heller, que faz deles alguns de seus registros mais minuciosos, onde vemos roupas ao varal, pessoas conversando nos quintais e pequenos pássaros que ainda procuram o morro que se foi (Fig.8).

Figura 8. Géza Heller. Demolição da Policlínica. Fonte: catálogo da exposição Géza Heller, 2012, p.39

Representação e História

Os registros de Heller são um documento imprescindível para entender a cidade. Ela aparece neles com toda sua complexidade. Em seus desenhos se juntam pontas de fios históricos que nunca aparecem unidos nos registros oficiais, e o sentido artístico da cidade, que só pela própria arte pode ser essencialmente traduzido. É através deles que podemos construir a história visual da cidade, compreender retalhos de tecido urbano e remontar utopias. Mas, principalmente, é através deles que a história da arquitetura e do urbanismo pode se inserir no seu campo de pertencimento, que é o da história da arte.

A diferença entre um registro como o de Heller e uma imagem comercial da cidade, é a mesma que separa a arte da informação. Ao invés da obra aberta às interpretações presentes, uma falsa certeza; ao invés do movimento, o produto:

O que a cultura tecnonocientífica atual quer substituir ao probabilismo histórico ou à busca da verdade é a oferta da informação exata, incontestável, imediata (...) que podendo ser verificada, não é suscetível de crítica e de demonstração e que, mal deixa de ser notícia, precipita-se num passado sem fundo e sem medida, perdendo todo significado (ARGAN, 1998, p.28).

Hoje, que o Rio de Janeiro passa por transformações de semelhante monta, que artista as registra? Que traço pode apreendê-las, ultrapassando a autoridade dos posts em redes sociais como documentos complexos do novo devir? A quem interessará o trabalho alienado dos milhares de operários que, ao não saber o que estão fazendo, estão construindo a cidade? A quem interessará as contradições entre as montagens (agora computadorizadas e animadas) que a prefeitura apresenta nos vídeos do metrô e a cidade real? A quem interessará os contrastes que só aparecem no movimento da mudança?

A relação orgânica com os espaços da cidade foi atropelada pela velocidade, pelas imagens, pela inexistência das relações interpessoais e históricas no espaço urbano. O

registro afetivo, pelo qual o artista apreende a cidade, foi definitivamente substituído pelo simulacro: pelo clique que abole o mundo fora do quadro, pela ilusão em três dimensões, pelo passeio virtual dos aplicativos de internet.10

Uma vez que o sentido de arte e história se perdeu para os arquitetos, talvez não tenhamos, depois dos grandes eventos, documentos como os de Heller para estudar. Todos os registros terão sido produzidos pela imprensa oficial, pelo mercado imobiliário ou pelas Instituições promotoras dos eventos, excluindo da historiografia a cidade real. Os arquitetos e historiadores da cidade terão que levantar camadas e camadas para enxergar o que estava bem a sua frente. Alienados tanto dos princípios da história quanto dos princípios da realidade construtiva, os arquitetos terão perdido o direito à sua cidade...

Referências bibliográficas

ABREU, Maurício de. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRio, 1997. 3ª Ed.

ARGAN, G.C. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.

BOYER, Christine. The City of the Collective Memory: It’s Historical Imagery and Architectural Entertainments. Cambridge: MIT Press, 1996.

LIMA, Evelyn F. W. Avenida Presidente Vargas: uma drástica cirurgia. Rio de Janeiro: Secretaria municipal de Cultura – DGDC, 1990.

PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO / CABBET Produções. Géza Heller – um carioca sonhador. (catálogo da exposição). 2012.

SARLO, Beatriz. A história contra o esquecimento. Paisagens imaginárias. org. Sérgio Miceli. São Paulo: EDUSP, 1997.

10 “Hoje a abstração já não é a do mapa, do duplo, do espelho ou do conceito. A simulação já não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real. O território já não precede o mapa, nem lhe sobrevive. É agora o mapa que precede o território – precessão dos simulacros – é ele que engendra os territórios cujos fragmentos apodrecem sobre a extensão do mapa.” (BAUDRILLARD, 1991, p.8).