Resumo

Entre as décadas de 1940 e 1960, um fluxo alto e constante de pessoas deslocava-se na região do Centro Novo de São Paulo, gerando encontros inesperados e inusitados entre os mais diversos grupos. Nas novas vias (abertas ou alargadas) na gestão do então prefeito Prestes Maia, ou nos térreos dos novos arranha-céus que configuravam a paisagem urbana, os novos hábitos da vida moderna eram expostos. Aqueles espaços eram os legítimos lugares de debate e trocas, espaço para o público que exercia as mais diversas atividades na região: trabalho, habitação, lazer e circulação. Nos bares, cafés, restaurantes, confeitarias, livrarias, bibliotecas, primeiros museus ou galerias comerciais era possível encontrar conhecidos e estranhos que se deslocavam em uma região que se apresentava como o grande foco dos investimentos governamentais. Durante sua gestão, Prestes Maia incentivaria, a partir de dispositivos legais, a criação de espaços de fluidez e passagem nos térreos dos edifícios dispostos ao longo de vias específicas, incentivando assim a sociabilidade em um determinado espaço da cidade. Considerando os diversos aspectos de transformação urbana da cidade entre as décadas de 1930 e 1960, entre eles a abertura e alargamento de novas vias e a verticalização do Centro da cidade, o artigo buscará apresentar a íntima relação que se estabeleceu entre os novos hábitos culturais e os espaços onde estes se manifestam em meados do século XX na área central da cidade de São Paulo. A pesquisa parte da análise da legislação existente, da análise urbana e morfológica da área, além do levantamento e descrições dos percursos dos usuários , de projetos de arquitetura, filmes, registros literários que expõem um período de grande relevância na história da cidade de São Paulo.

Palavras-chave: arquitetura moderna, Centro, metrópole, sociabilidade, São Paulo, modernização

Abstract

Between the 1940s and 1960s, there was a high and constant flow of people moving down in the Centro Novo of Sao Paulo, and creating unexpected and unusual encounters among different groups. In the new avenues and streets, built during the administration of Mayor Prestes Maia, or even in the ground floor of new skyscrapers that were part of the urban environment, new habits of modern life were exposed. Those spaces were legitimate places for debates and exchange, and also a space for the public that used to do diverse activities in the area: work, housing, leisure, and circulation. In bars, cafes, restaurants, bakeries, bookstores, libraries, first museums, or commercial galleries, it was possible to find known and unknown people who were moving in an area that was presented as the main focus of government investment. During the administration of Mayor Presets Maia, some legal devices encouraged the conception of flow spaces and passages in the ground floor of buildings located along specific avenues, thereby promoting sociability in a particular area of the city. Taking into account the various aspects of urban transformation of the city between the 1930s

and 1960s, including the opening and expansion of new routes and uprighting of downtown, this paper aims to present the intimate relationship established between the new cultural habits and the spaces where these habits become apparent during the mid- twentieth century in the central area of São Paulo. This research is based on literary records that expose a period of great importance in the history of the city of Sao Paulo, including the review of existing legislation, a morphological analysis of the urban area, survey and descriptions of routes of users, architectural designs, and films.

Keywords: modern architecture, downtown, metropolis, sociability, Sao Paulo, modernization

Introdução

A partir da década de 1930, o Centro Novo1 da cidade de São Paulo, a área localizada a oeste do Vale do Anhangabaú, o passou por uma forte transformação urbana estimulada pela execução das obras viárias do Plano de Avenidas2 e pela construção de novos edifícios na região. As transformações tratadas neste texto referem-se especialmente às espaciais e culturais, possibilitadas especialmente pelo forte crescimento econômico pelo qual a cidade passou com a produção de café e com o

início da industrialização.

É importante ressaltar que, além das transformações físicas da metrópole, era visível uma mudança no modo de vida urbano presente nas mais diversas atividades que ocorriam na cidade. Novos habitantes de diversos lugares misturavam seus hábitos e tradições dando origem a uma cultura bastante rica. Além disto, foi um período de grandes novidades na vida cultural com o aumento do número de cinemas, teatros, galerias de arte e o aparecimento dos primeiros museus; tudo isso, em função de uma rica produção da cultura urbana local.

Para se ter uma ideia mais clara de tais transformações, Petrone registrou que, na década de 1950, a cidade apresentava dezoito estabelecimentos de ensino superior, três universidades, quinze estabelecimentos de ensino agrícola e industrial, 106 livrarias, 150 cinemas, oito teatros e cinco cines-teatros, doze estações de radio e três de televisão (PETRONE, 1955, p.118). Estes novos hábitos se refletiam inclusive nos novos desenhos arquitetônicos espalhados de espaços pelo centro da cidade.

Em meados do século XX, o entorno da Praça da República abrigou uma quantidade muito grande de pessoas que trabalhavam, habitavam e se divertiam nos novos edifícios. Esta região funcionava durante o dia como espaço do trabalho e comércio, enquanto a noite era um centro de lazer. Estava também ocupada por edifícios de habitação cujo programa integrava-se a essa mistura de usos e de tempos, além de promover uma integração de tipos e de grupos.Nas suas proximidades, era possível encontrar diversos eventos de interesse da população que por ali circulava.

1 Será utilizado o termo Centro Novo em referência à área atualmente conhecida como distrito República, enquanto Centro Velho seria a região do distrito Sé.

2 Plano de Avenidas (1930), apresentada pelo engenheiro Prestes Maia ao prefeito Pires do Rio (1926-1930), propunha a criação de um grande anel de circulação que permitisse maior facilidade de deslocamento pela cidade sem cruzar o Centro. Para tanto, propunha a abertura de novas e o alargamento de antigas avenidas.

Ali, nos espaços urbanos e arquitetônicos, se formou uma rede de sociabilidade tão marcante que algumas dessas experiências podem ser vislumbradas em obras da literatura, cinema, poesia, fotografia e artes plásticas, que retratam o período. Esse texto busca compreender os aspectos que levaram a essa sociabilidade e como a mesma pode ser vislumbrada a partir de relatos e registros de usuários do período.

A construção de um núcleo de encontros

A área do Centro Novo passou por uma forte transformação entre os anos 1930 e 1960. Em oposição à ideia de cidade dispersa que se fortalecia neste momento – com a formação das periferias e a expansão da cidade industrial – aquela região demonstrava uma vitalidade urbana graças às diversas funções ali implantadas (atividades culturais, comércio, serviço, habitação) e aos espaços construídos. Sua agitação atraiu investidores para os poucos terrenos vazios disponíveis e para a realização de novos empreendimentos imobiliários. Neste período, as casas e chácaras existentes na região foram substituídas por novos arranha-céus que rompiam a escala horizontal da cidade e apresentavam propostas espaciais modernas.

Os investimentos imobiliários naquela região eram incentivados pelo poder público. Já em 1940, o decreto-lei nº 41, do prefeito Prestes Maia, atuava sobre a avenida Ipiranga e suas construções, incentivando diretamente a criação de espaços de fluidez e passagem nos térreos dos edifícios dispostos ao longo desta via, conforme descrito abaixo:

Art. 9 – As construções com mais de 20 pavimentos deverão ter ao nível do passeio público reentrância (portal, galeria, colunata ou arcada aberta), ocupando, no mínimo, 1/3 da frente do lote, com profundidade e superfície nunca inferiores, respectivamente a 3,5ms e 30m2.

Parágrafo único – estudará a Prefeitura a concessão oportuna de favores especiais para os prédios que não possuírem corpos super elevados (art. 4) e cujos pavimentos térreos apresentem recuos, galerias, colunatas ou arcadas, equivalentes a uma ampliação dos passeios, utilizáveis para mesas de café, bares, etc (PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, 1941).

É importante ressaltar nessa lei a presença do termo “favores especiais”, demonstrando o grande interesse do governo municipal para a construção de tais espaços de conveniência, incentivando-os ao atrelá-los ao desejo da iniciativa privada em construir edifícios cada vez mais altos, em prol de uma maior rentabilidade econômica.

A legislação incentivava a verticalização naquela via e conjugava-a à necessidade de térreos permeáveis, de encontros e sociabilização, semelhante aos foyers dos cinemas, que pudessem ser oferecidas aos transeuntes áreas de repouso e de permanência – como cafés, bares, restaurantes (COSTA, 2010). O uso de colunatas, arcadas e recuos nas entradas dos edifícios era um artifício de projeto que garantia proteção no caso de

intempéries e sinalizava a possibilidade de ter um espaço permeável nos térreos. O desenvolvimento de novas tecnologias construtivas - uso do concreto armado, de elevadores,entre outros - possibilitava a construção em altura nos terrenos que antes abrigavam chácaras de uso das famílias mais abastadas

Assim, dentro de um edifício com limites urbanos muito bem definidos pelos lotes tradicionais, eram criados lugares que possibilitavam as trocas e encontros entre os usuários da região central, funcionando como espaços semi-públicos ao longo das grandes vias. Outro aspecto relevante do artigo 9º daquele decreto-lei era a intenção de passar para as mãos da iniciativa privada a possibilidade de criar os espaços públicos da cidade.

Neste sentido, é importante ressaltar que a ideia de espaços públicos, aqui defendida, relaciona-se aos locais de encontro, de contatos públicos casuais ou de sociabilidade. Facilmente reconhecidos nas ruas, praças, largos e avenidas, neste momento, essas relações ocorriam também nos cafés, confeitarias, livrarias, foyer de espera dos cinemas, corredores das galerias, entre outros. Parte da definição de Sennett que defende que o próprio termo “público”, a partir do século XIX, “veio a significar uma vida que se passa fora da vida da família e dos amigos íntimos; na região pública, grupos sociais complexos e díspares teriam que entrar em contato inelutavelmente” (SENNETT, 1998, p.32).

Os espaços públicos do Centro Novo constituíam-se como mediadores de possíveis encontros e trocas de experiências, sociais e comunicativas, constituindo lugares de permanência e não somente de passagem. Espaços de usos, sobretudo, coletivos e marcados pela diversidade de atividades que ali ocorrem.

A ideia já estava presente em um dos desenhos apresentados por Prestes Maia no Plano de Avenidas (1930), onde um dos edifícios monumentais esboçados pelo autor apresentava um ambiente de convivência, semelhante a um terraço com café, onde as pessoas se encontravam e vislumbravam a paisagem.

Assim, era possível vislumbrar um perímetro onde a sociabilidade da metrópole era exercida de maneira mais intensa. O depoimento da socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda retrata a importância da região no contexto cultural da cidade:

A cidade era imensa, mas o centro, onde a vida mundana se desenrolava, era um quadrilátero reduzido, onde todos os lugares poderiam ser alcançados a pé. Do Teatro Municipal à Avenida São João, passando pela Praça Júlio Mesquita, alcançando as ruas do Arouche, Bento Freitas e Rego Freitas, atravessando pela 7 de Abril ou Barão de Itapetininga, para desaguar na 7 de Abril, rumo à Praça Dom José Gaspar, de volta à Biblioteca Municipal, daí até a rua Maria Antonia (ARRUDA, 2001, p.64).

Espaços de encontro e a vida cultural

A partir da década de 1930, a área de estudo converteu-se em polo de atividades artísticas e culturais da cidade. Sua vocação como área de lazer demonstrava-se já no século XIX quando várias touradas ocorriam naquele espaço conhecido no período

como Praça dos Curros (REIS FILHO, 1976). Ainda na primeira metade do século XX, muitos dos episódios mais marcantes da cultura paulistana aconteceram em espaços localizados nesta região. Ali foram criados os primeiros museus, instaladas as principais galerias de arte, construídos os principais cinemas, de maneira que, em um perímetro de poucas quadras, era possível encontrar diversos eventos de interesse da população que por ali circulava. O mapa 1 apresenta a implantação de alguns desses espaços na cidade e demonstra o quanto concentravam-se em uma determinada área.

Figura 1 – mapa da implantação dos espaços de cultura e arte do Centro Novo

Um dos espaços fundamentais na sociabilidade de São Paulo no período analisado era a Biblioteca Mario de Andrade. Projetada pelo arquiteto francês Jacques Pilon, com 23 andares, foi finalizada no ano de 1942. Sua altura era ainda mais ressaltada pela implantação na praça Dom José Gaspar, cercada por um jardim, tangenciada pelas novas vias do Plano de Avenidas proposto e executado por Prestes Maia. Sua posição estratégica

  • na Praça Dom José Gaspar - tangente às ruas São Luis, Barão de Itapetininga e próxima à Praça da República.

Seu programa atestava o interesse da metrópole em incentivar a educação e o desenvolvimento cultural da população. Nos arredores da Biblioteca Municipal, na década de 1950, formou-se um dos principais espaços de discussão da cidade. Estudantes secundaristas, profissionais, pesquisadores e interessados das mais diversas áreas tinham acesso a um precioso acervo bibliográfico. O interior da Biblioteca reunia em suas salas de leitura, um público bastante diversificado em busca das mais diversas atividades.

As ruas próximas eram povoadas de pessoas que se deslocavam para um dos pontos de encontro reconhecidos da cidade:

E aquela parte da frente na Biblioteca, onde estão as escadas, era

um ponto de encontro. Você não precisava... você marcava um encontro, eu vinha aqui e ficava zanzando.(...) Você marcava até encontro com a namorada. Ficava sentado lá naquele patamar da escada. Ficava todo mundo sentado ali, batendo papo, e eventualmente entrava e pegava um livro. Afinal, você precisava justificar de alguma forma a vinda à Biblioteca. (...) Na verdade, aqui era um ponto de encontro no centro: você podia se encontrar num bar ou na Biblioteca. Ninguém tinha dinheiro, porque num bar você precisava despender alguma coisa, na Biblioteca ficava mais fácil. E vinha aqui o Roberto Piva, Roberto Ruggero, Antonio Franceschi, todo mundo, Cláudio Willer, todo mundo vinha aqui. (GIOGERTTI, 2005).

Já Bento Prado Jr descreve que os bares localizados nas proximidades da Biblioteca Municipal funcionavam como uma extensão das discussões que se iniciavam em seu interior. “Passar de um lado para o outro não implicava em salto ou descontinuidade, que compensava a perda da exclusividade ou da hegemonia” (PRADO JR, 1992, p. 17). Segundo o autor, “era como se a sociedade global pudesse se espelhar inteira no espaço estreito do bar, numa forma antes comunitária que societária” (PRADO JR, 1992, p. 18). Assim, os bares assumiram um forte papel sociabilizador ao reunir um público variado de estudantes, professores, escritores, artistas e dramaturgos.

Bares eram espaços de vivência ampla, de estímulo aos sentidos e do cultivo ao intelecto. (...) Distintos por seus trajes ou pela bebida consumida, conviviam francamente, sem tensões, numa globalidade antes comunitária que societária. Um estilo de sociabilidade em que amenidades, arte e literatura, filosofia e política, comungavam permanentemente, recriando a magia dos bares parisienses, no estilo sedutor de seus cafés (ARRUDA, 2001, pp.61-62).

Parte da efervescência da região devia-se à presença de alguns cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras na região. Nos primeiros anos de funcionamento da Universidade de São Paulo, ainda na década de 1930, aquela Faculdade estava instalada nas dependências da Antiga Escola Normal. Em 1949, foi transferida para sede própria na rua Maria Antonia, a algumas quadras do endereço original. No entanto, a circulação dos alunos, professores e funcionários pela área central ocorria com a mesma naturalidade de sempre. A filósofa Marilena Chauí relembra sua época de aluna da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, quando os mais importantes eventos de sua geração aconteciam no entorno da Biblioteca Municipal:

Que acontecimento, o primeiro número do “Jornal da Tarde”, lido ainda quente das prensas, tão intelectual Avenida São Luiz, Barba Azul, Pari Bar, ponto de encontro das celebridades, dos professores estrangeiros. Cinemas. Praça da República. Ipiranga-esquina-da-São João. Salada Paulista, Bar do Jeca (CHAUÍ, 1988, p. 241).

A região também era ponto de encontro de uma população que se mostrava cada vez mais interessada em novos bens de consumo. Neste contexto, destacava-se a rua Barão de Itapetininga que se configurou como espaço voltado para o comércio de luxo

disposto para um público de profissionais que atuavam na região e também à elite paulistana – residente nos bairros próximos. Lucia Helena Gama assim descreve a via:

a Barão virou a rua mais grã-fina daqui [do Centro]; já a chamam até de Via Veneto, com suas lojas de moda, livrarias, e muitos escritórios de profissionais liberais, advogados. Depois da reforma do viaduto ganhou uma nova vida comercial e social, com presença constante de jornalistas, escritores e políticos (GAMA, 1998, p. 95).

Novos programas consolidavam-se nos novos edifícios e ou nos espaços adaptados. A I Exposição de Arte Moderna da Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) ocorreu, em 1932, na rua Barão de Itapetininga (ALMEIDA, 1976). Segundo Paulo Mendes de Almeida, “o programa da SPAM era vasto. Propunha-se estreitar as relações entre os artistas e as pessoas que se interessam pela arte em todas as suas manifestações, promover exposições, concertos, conferências, reuniões literárias” (ALMEIDA, 1976,

p. 42). Na rua Barão de Itapetininga ainda se localizavam várias livrarias da cidade, espaço de encontro de intelectuais, a exemplo da Livraria Jaraguá e da Brasiliense. Além disso, diversas galerias de arte se implantaram na região: Galeria Itapetininga, Benedetti, Domus, entre outras.

Nas proximidades, o edifício Esther abrigou a sede do Instituto dos Arquitetos do Brasil, seção São Paulo, logo em sua inauguração, em 1943. Ali, os arquitetos se reuniam para discutir as novidades da classe profissional, planejar congressos e divulgar a arquitetura moderna. Em 1947, a nova sede da instituição foi construída e, já em 1950, abrigou a I Exposição da Oficina de Artes (ODA). O I Congresso Brasileiro de Arquitetos – organizado pelo IAB-SP – ocorreu na Biblioteca Municipal Mario de Andrade, em 1945, assim como a Exposição Municipal de Urbanismo de 1950.

Também no Centro Novo localizavam-se os principais cinemas da cidade, numa região que seria conhecida como "cinelândia paulista". As primeiras salas de cinemas implantaram-se nas proximidades das linhas de bondes, utilizando-se da facilidade de acessos por esta rede de transporte coletivo. Após a construção das grandes vias do Plano de Avenidas, as salas foram construídas ao longo dos novos eixos viários ou nos novos bairros mais distantes, entre eles o Brás. Os cinemas faziam parte de um conjunto de equipamentos urbanos que estavam associados à mudança no modo de vida da sociedade. Assistir aos filmes mais recentes, estar em dia com as novidades cinematográficas, reconhecer as melhores salas eram atividades associadas a um modo de vida moderno, fazendo parte da vida social desta população urbana e atraindo um público cada vez maior e mais heterogêneo. Segundo Sevcenko, “o cinema, assim como os bondes e os estádios, alinha multidões de estranhos enfileirados ombro a ombro num arranjo tão fortuito e normativo como a linha de montagem” (SEVCENKO, 2003, p.95).

Um curta metragem realizado em meados da década de 1960 apresentava um passeio descompromissado de dois amigos pelas ruas do Centro de São Paulo, a maneira de um flaneur. "Documentário" - filme dirigido por Rogério Sganzerla - trazia alguns dos dilemas daquela geração, assim como demonstrava percursos e espaços de sociabilidade da cidade em meados do século XX. É desta ação – o simples ato de flanar – que conduz “a quase narrativa” do filme "Documentário". Baseia-se no hábito

de caminhar pela cidade, sem rumo ou destino certo, tão comum em meados do século

XX. Demonstra a importância que o costume de se reconhecerem na rua assumiu para aquela geração quando, no filme, apresenta-se uma cena em que um dos personagens propõe ao outro que circulassem pela rua Barão de Itapetinga para encontrar algum conhecido.

Figura 2 - Cena do curta metragem "Documentário" de Rogério Sganzerla

Se o caminhar pelas ruas do Centro permitia encontros inusitados e rápidos pelas ruas, diante da situação de deslocamento e velocidade que a época impunha, no interior dos edifícios, a situação se invertia. Diversos estabelecimentos criavam seu público cativo que se reunia com certa frequência.

As galerias construídas nos térreos de alguns edifícios modernos funcionavam como áreas de circulação e de permanência do público que se deslocava apressado por diversas ruas e encontravam um local para uma pausa, descanso ou debate. Cinemas, livrarias, cafés e bares da região eram espaços dedicados aos encontros e debate que assumiam uma importância cada vez maior na vida social de São Paulo. Ali, as novas e velhas gerações interagiam.

Se no final do século XIX, Jules Martin propunha uma rede de galerias que se conectavam entre as principais ruas do "triângulo histórico", seria no Centro Novo que uma concentração de galerias caracterizariam um sistema com pontos definidos por essa tipologia. Ali, vinte galerias se conectavam e propunham rotas alternativas. Seus programas eram diversos e expunham os novos hábitos dos homens modernos: cinemas, cafés, livrarias, lavanderias, cabeleireiros entre outros. Entre as décadas de 1950 e 1960, este tipo de arquitetura ganhou força no Centro de São Paulo, tendo inclusive o incentivo legal do poder municipal para sua proliferação por algumas vias específicas do Centro.

Nessas galerias, a fronteira entre o público e o privado mostra-se bastante nebulosa, uma vez que os acessos eram facilitados, os corredores funcionaram como eixo de circulação e os pontos comerciais geraram pontos de permanência. A permeabilidade no pavimento térreo possibilitava o aparecimento de novos caminhos por dentro das quadras e contribuía na ligação entre espaços urbanos, funcionando, elas mesmas, como novos lugares públicos. Nos dizeres de Argan, “o edifício não interrompe o movimento da cidade, a arquitetura não fecha nem segrega, e sim filtra e intensifica a vida” (ARGAN, 1992, p.197).

Figura 3 – mapa das galerias e percursos na região do Centro Novo

Esta rede de galerias torna as quadras muito mais permeáveis pela presença de espaços vazios em meio à alta concentração de edifícios da região. Estes espaços de circulação estabelecidos no térreo mudaram a densidade da malha urbana no nível do pavimento térreo.. Esta ligação entre os caminhos é fortalecida pelo próprio projeto das galerias que muitas vezes estabelece ou ressalta a presença de uma vizinha. Exemplo mais conhecido é a conexão entre a Galeria Itá e a R. Monteiro onde a ligação entre as duas ruas por um caminho interno à quadra era um dado de projeto para a equipe de Rino Levi. A conexão entre os edifícios é ressaltada pelas grandes aberturas, pelos acessos facilitados, pelos desenhos das calçadas que se prolongam.

Considerações finais

O enriquecimento da cidade pela exportação de café ou pelos primórdios da industrialização possibilitou as ações mais intensas de intervenção sobre a estrutura urbana da cidade, tais como a criação de um circuito de vias de rápida velocidade, promovendo deslocamentos mais eficientes e apontando novas áreas de investimento. A região próxima à Praça da República foi um dos espaços que sofreu as intervenções

urbanas mais fortes nesse período, tendo sido foco direto diversos investimentos imobiliários.

Na região do Centro Novo, a multidão e os veículos eram cada vez mais numerosos na cidade de São Paulo. Nice L. Muller afirmava sobre o Centro de São Paulo: "basta percorrê-lo, em qualquer hora do dia, para que se observe o formigamento de suas ruas, o deslocamento apressado da massa de pedestres, o movimento ininterrupto de veículos nas vias em que ainda é permitida circulação" (MULLER, 1958, p.170).

O texto buscou apontar que essa região se configurava como espaço efetivo de trocas de ideias e encontros, núcleo fundamental de atividades culturais e políticas. Esta sociabilidade diversa estava ligada aos novos hábitos da vida moderna que se manifestava nos novos espaços construídos da cidade: cinemas, lojas de departamento, galerias de arte, museus, cafés e livrarias. O texto apresentou diversos relatos e registros que apresentavam a apropriação dos espaços de sociabilidade do período, sejam eles reconhecidamente públicos ou privados.

Referências

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