Resumo

As festas sempre estiveram presentes na nossa sociedade, pontuando a história do Brasil. Entendidas como permanentes e constantes, sem nunca serem iguais, indicam mudanças lentas, muitas vezes em descompasso com o ritmo acelerado das expressões massivas causadas pelo crescimento rápido da cidade, pelo urbanismo e pelas políticas administrativas que visavam a controlá-las. As festas representavam um conjunto de sistemas simbólicos carregados de interesses eclesiásticos, civis (e urbanísticos), tendo uma função implícita ou explícita. Investigar a existência das festas e seu significado ao longo do tempo, assim como o seu processo de transformação, visualizando as permanências e as rupturas por parte dos diferentes grupos e interesses sociais foi nosso objetivo central. Para isso, nos valemos da longa duração, que nos permite perceber processos mais lentos de organização. Nosso grande desafio foi encontrar nos documentos oficiais vestígios materiais e sociais das festas que no passado ocorriam em São Paulo. O caso paulistano é um entre tantos outros e o estudo dos pormenores do processo permite entrever o jogo das práticas em meio às representações, longe de ser um processo linear e tampouco rápido e sem contradições.

Palavras-chave: festas, práticas sociais, espaço público urbano, São Paulo, longa duração

Abstract

The parties have always been present in our society, highlighting the history of Brazil. Understood as permanent and constant, without ever being equal, they indicate slow changes, often in step with the rapid pace of massive expressions caused by the rapid growth of the city, by the Urbanism and by the administrative policies designed to control them. The parties represented a set of symbolic systems loaded with ecclesiastical, civil (and urban) interests, having an implicit or explicit function. Investigating the existence of the parties and their meaning over time, as well as their transformation process, seeing the continuities and the ruptures by different groups and social interests, was our main objective. For this, we followed the long duration, which allows us to perceive slower processes of organization. Our great challenge was to find in official documents material and social traces of the parties that occurred in the past of São Paulo. The Sao Paulo case is one among many others, and the study of the details of the process allows a glimpse of the practice game among the representations, far from being neither a linear process nor fast and without contradictions.

Keywords: parties, social practices, urban public space, São Paulo, long duration

Introdução

Há muito tempo, desde a chegada dos colonizadores portugueses, as festas vêm pontuando a história do Brasil, o que as tornou fundamentais na estruturação de nossa tessitura social e urbana. Diversas festas, sobretudo as de caráter essencialmente religioso católico, vêm ocorrendo durante todos os anos nas cidades brasileiras, cada qual apresentando certas especificidades, dependendo da comunidade onde estão inseridas e do período em questão, o que lhes rendeu um lugar privilegiado na nossa história, pontuando o cotidiano de forma bastante significativa.

Investigar a existência das festas e seu significado ao longo do tempo, assim como o seu processo lento de transformação, visualizando as permanências e as rupturas por parte dos

diferentes grupos e interesses sociais foi nosso objetivo central. Para isso, nos valemos da perspectiva histórica de “longa duração”, tal como definido por Fernand Braudel (1969). Segundo ele, somente com “a compreensão de um espaço temporal mais amplo podemos fazer uma leitura dos verdadeiros movimentos, das permanências e dos pontos de ruptura” (BRAUDEL, [1969] 1978, p. 106). Somente a “longa duração” permite perceber processos mais lentos de organização, compreendendo formas de sociabilidade pouco conhecidas da história da cidade de São Paulo.

Assim, tratamos da Colônia à Primeira República, com vistas a constatar a presença das festas na cidade de São Paulo e como foram úteis para os diversos segmentos da sociedade, dentre eles o poder público, uma vez que representam um conjunto de sistemas simbólicos carregados de interesses eclesiásticos, civis (e urbanísticos), tendo uma função implícita ou explícita. Ao longo dos anos, percebemos que houve uma alteração na forma de tratamento dispensado às festas pela administração municipal e a consequente perda de seu interesse sobre elas.

Há grande escassez de fontes documentais primárias referentes às festas do período colonial, uma vez que a administração portuguesa deu pouca ênfase ao seu registro, talvez por São Paulo ser, nesta época, uma vila mais modesta e menos representativa para a Coroa portuguesa, comparativamente às vilas e cidades das Capitanias do Norte. Foi somente a partir da elevação da vila à condição de Cidade e cabeça da “Capitania de São Paulo e Minas do Ouro” que São Paulo mereceu cada vez mais registros sobre seu cotidiano. A partir de então, as festas passaram a ganhar cada vez mais destaque e diversidade, acompanhando a crescente importância da cidade, sobretudo após a criação do Bispado de São Paulo (1745).

Nosso grande desafio foi encontrar nos documentos oficiais vestígios materiais e sociais das festas do passado. As principais fontes primárias disponíveis sobre o período colonial são as Atas da Câmara Municipal da Cidade de São Paulo, imprescindíveis para recuperarmos parte da memória oficial da vida da cidade e de seus habitantes e para adquirirmos um conhecimento consistente sobre as festas paulistanas da época, uma vez que nos permitem entrever quem eram os responsáveis pelo seu planejamento, realização e custeio, assim como a forma como ocorriam e seus valores intrínsecos. De grande valia foram também os documentos sediados no Arquivo Histórico de São Paulo, referentes à administração da cidade. Foram consultados os documentos avulsos da Série Correspondência, Subséries “Festejos” e “Festividades Religiosas”, do Grupo Conselho de Vereadores do Fundo Câmara Municipal de São Paulo. Dado ao seu caráter oficial, essa série abrange apenas as festas oficiais, que acarretavam grandes preocupações à municipalidade. Esses documentos inéditos, acreditamos, são importantíssimos, pois são fontes primárias essenciais que possibilitam abstrair diversas “práticas” da sociedade da época, reconstituindo um quadro social perdido no tempo, comprovando a realização das festas e a importância que lhes era atribuída pela Câmara. Nas entrelinhas dessa documentação pudemos constatar que as festas, mesmo impostas e obrigatórias por certo período, não conseguiam a adesão unânime de todos os moradores da cidade de São Paulo, sendo frequentes as aplicações de multas e penas de prisão por desobediência às normas vigentes.

Para o estudo do Império, acompanhando as alterações na forma de tratamento dispensado às festas, foi fundamental a consulta à legislação que nos permite entrever certas práticas sociais em meio a representações e a forma como as festas foram tratadas do ponto de vista da legislação urbanística. Destaca-se a série de Posturas Municipais que visavam a regulamentar o uso do espaço urbano marcado por novas preocupações urbanísticas. Cabe lembrar que se trata de fontes oficiais (assim como as demais supracitadas), portanto comprometidas com os interesses do Estado.

Dentre as fontes primárias referentes à Primeira República também no Arquivo Histórico de São Paulo foram consultados os documentos da Câmara Municipal de São Paulo referentes à

Série Alvarás e Licenças da Seção de Polícia Administrativa e Higiene do Fundo da Secretaria Geral da Prefeitura. Acreditamos que essa série teve origem a partir da legislação urbanística e da ação do poder público municipal sobre a cidade que passou a exigir que fossem feitos pedidos de alvarás e licenças para determinadas formas de uso e ocupação do espaço urbano público, dentre elas as festas.

Para além das questões administrativas salientadas pela documentação oficial civil, determinados aspectos relacionados às festas religiosas só puderam ser conhecidos através da documentação eclesiástica sediada no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, destacando-se dentre os Livros de Tombo da Arquidiocese, que nos revelam dados não vistos pela historiografia sobre o assunto.

Fundamental para a presente tese foram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707, impostas e fielmente seguidas pela Arquidiocese da Bahia e demais Dioceses brasileiras, que eram a “legislação eclesiástica” vigente na época e foram válidas desde o início do século XVIII até o final do Império.

A consulta a todas essas fontes nos permitiu uma nova possibilidade interpretativa sobre as festas paulistanas, apresentado em interface com questões socioculturais, urbanísticas e administrativas. Os resultados só puderam ser obtidos quando os documentos primários foram compreendidos no contexto histórico em que foram produzidos.

As festas na São Paulo Colonial

Desde a colonização práticas religiosas, leis, determinações e costumes lusitanos foram se instaurando no Brasil, pois, como afirma Murillo Marx (1989), Portugal nunca teve um corpo de legislação específica para suas colônias, transferindo para cá sua legislação e jurisprudência, as quais foram lentamente adaptadas para fazer frente a uma nova realidade. Essa legislação obrigava que fossem realizadas determinadas “festas reais”, comprovando que as festas brasileiras tiveram sua origem com a chegada dos colonizadores portugueses, tendo sido aqui transplantadas (DEL PRIORE, 1994), permanecendo ao longo do tempo.

No período colonial, São Paulo ainda estava submetida às antigas Ordenações Filipinas e às normas eclesiásticas com características próprias de um mundo dominado pelo sagrado e pelo ritual. As festas eram estratégicas na confirmação do poder da monarquia e demonstração de fidelidade à Coroa Portuguesa, sendo obrigatória a sua realização e a presença dos moradores. Os infratores ficavam sujeitos a multas e cadeia. Havia quatro “festas reais” de realização obrigatória para as quais era exigida a presença de toda a população no entorno de uma légua ao redor da vila, a saber: a Festa e Procissão de Corpus Christi, a Festa do Anjo Custódio, a Festa da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel e a Festa de São Sebastião. A partir de 1756, a Festa de São Francisco de Borja também passou a ser obrigatória.

Uma das formas que a Coroa tinha de se fazer presente, dentre outras, era através das chamadas “festas de representação” (DUVIGNAUD, 1973), que celebravam datas e eventos importantes relativos à vida dos membros da Família Real e dos governantes portugueses, como natalícios, casamentos, aclamações e exéquias. Essas festas eram exigidas pelo Estado e pela administração colonial e, assim como as “festas reais”, eram de realização e de presença obrigatória. Era prática comum que essas datas fossem comemoradas não só em Portugal, mas em todas as colônias portuguesas, aí incluso o Brasil. Por serem manifestações urbanas, só se tornaram mais relevantes no decorrer do século XVIII. Especificamente em São Paulo, notamos maior investimento nas festas de representação a partir de 1765, após a Restauração da Capitania e com a chegada de Morgado de Mateus, no âmbito da política pombalina de centralização administrativa.

Também de realização obrigatória eram as “entradas solenes”, que eram festas pela chegada de alguma autoridade civil ou eclesiástica em visita a São Paulo. Assim como as demais festas anteriormente citadas, era obrigatória a presença de todos os membros da comunidade civil e eclesiástica. A essas, associavam-se a Procissão da Publicação da Bula da Santa Cruzada, as

festas e procissões litúrgicas e as festas em louvor aos Santos da Igreja Católica, realizadas pelos vigários das paróquias, juntamente com as irmandades e confrarias laicas, seguindo as determinações eclesiásticas e cumprindo as exigências de seus próprios estatutos e regimentos. Essas festas iam muito além do campo devocional, pois se tornavam palco de exibições de riqueza, poder e frequentes disputas.

A união da Igreja com o Estado fazia com que todas as festas ou fossem religiosas ou fossem necessariamente compostas por uma parte religiosa e outra profana, o que tornava o uso do espaço urbano público preponderantemente religioso e festivo. A exigência da obrigatoriedade de participação da população nas festas religiosas era uma forma de controle no cumprimento de certos rituais exigidos pelo Estado e pela administração colonial, além de ser uma forma de reverência aos símbolos da Igreja Católica. Por estar a Igreja unida ao Estado, a Câmara tinha o “direito” de controlar os aglomerados humanos. Apesar de serem impostas, de um modo geral as pessoas não se recusavam a participar das festas, pois o catolicismo era a religião oficial e regia a vida da população.

Também havia certas exigências a serem cumpridas com relação à preparação do espaço urbano público para a realização das mesmas. A Câmara publicava um edital, fixado em local público, notificando a ocorrência da festa e sua natureza. Esse edital também convocado os moradores para os preparativos necessários obrigatórios que abrangiam a limpeza das ruas, fachadas e adros, a caiação das casas, a ornamentação de portas e janelas com flores, toalhas, colchas, damascos, cetins e veludos bordados, a forração das ruas com flores e folhas e a colocação de luminárias festivas, arcos e outros. Tudo isso sob pena de multa e/ou cadeia em caso de desobediência.

As festas públicas paulistanas permaneceram sendo de realização e de frequência obrigatórias durante todo o período colonial e não apenas aos fiéis, mas a todos os moradores da cidade estando relacionadas ao próprio processo de conservação dos lugares públicos. Isso garantiu que as festas fossem realizadas com muita pompa e esplendor e tivessem uma função importante na administração e manutenção do solo público da cidade, não se limitando ao cumprimento de um ritual católico ou cívico.

Com relação às festas de cunho não oficial, realizadas nas fimbrias da estrutura administrativa, são inexistentes (ou muito raras) as fontes para sua consulta, não nos permitindo uma análise mais sistematizada dos modos mediantes os quais a sociedade apropriava-se desses festejos.

As festas na Imperial Cidade de São Paulo

Embora a Proclamação da Independência do Brasil, em 1822, tenha findado um período político, no que tange à realização das festas pode-se dizer que não houve nenhuma ruptura. No início do período imperial, as festas que ocorriam continuavam a ser as mesmas herdadas do período colonial.

Do ponto de vista administrativo, podemos afirmar também que o novo regime, de início, não acarretou nenhuma ruptura. A cidade começou a sofrer uma reorganização apenas em 1824, em função da publicação da Constituição Política do Império do Brazil, que previu a liberdade religiosa (KANTOR, 1998). Era de se supor que essa determinação levasse à alteração das práticas religiosas e da realização das festas, mas não foi o que ocorreu. A religião católica continuou a ser a oficial e a única à qual eram permitidas demonstrações externas, ou seja, o uso do espaço urbano público continuou sendo permitido apenas pelas festas religiosas católicas.

A questão das festas, assim como outros assuntos, veio a ser diretamente tratada pela Carta de Lei de 1º de outubro de 1828, baixada por D. Pedro I. A publicação dessa Carta de lei foi um marco divisor para a realização das festas públicas, ficando determinado que a partir de então deixava de vigorar a legislação que obrigava a sua realização e o comparecimento da população as festas oficiais (reais, cívicas ou religiosas,. Com isso, as festas públicas,

sobretudo as de caráter religioso, foram pouco a pouco perdendo seu lugar na vida cotidiana das pessoas, iniciando paulatinamente um processo de laicização. Por outro lado, houve o fortalecimento das festas cívicas, visando a impor e reforçar o novo regime político que se instaurava.

A respectiva Carta de Lei também isentou a população da obrigatoriedade de preparar o espaço público urbano para a realização das festas. A manutenção e zelo pelos espaços urbanos públicos passariam para a responsabilidade dos órgãos públicos municipais. Isso fez com que, do ponto de vista administrativo, o poder público não “precisasse” mais das festas para ter o espaço urbano limpo e organizado, pois a partir de então, essas eram suas responsabilidades. Em sentido inverso, o poder público passou a regulamentar o uso do espaço urbano público, o que viria a intervir na realização das festas públicas e/ou de algumas práticas intrínsecas às mesmas. Muitas Posturas foram criadas, mas quase sempre em vão, pois muitas das práticas estavam tão enraizadas na cultura da população que mesmo sendo proibidas, continuaram a ser mantidas durante muitos anos.

A partir de 1870, a cidade de São Paulo começou a sofrer mudanças socioeconômicas, urbanísticas e físicas, ocorrendo mudanças radicais e vertiginosas que apagaram formas pregressas de organização social urbana. Uma nova cidade emergiu, deixando para trás sua dimensão religiosa e simbólica, marcada pela predominância religiosa, tornando-se laica e mundana, pautada na lógica capitalista e burguesa, sob a influência europeia. As festas religiosas passaram por um crescente processo de ridicularização, sendo motivos de brincadeiras, levando ao descaso e à frieza da população por ocasião de certas solenidades, distanciando as elites das ruas nessas ocasiões. Participar de uma festa oficial não era mais sinal de destaque social, mas ainda era destaque morar nas ruas por onde passavam as procissões, onde as casas tinham valor mais elevado.

A partir da década de 1880, a explosão demográfica em função da chegada de milhares de imigrantes europeus, na maioria italianos, devido à abolição da escravatura e ao incremento da cafeicultura, levou ao crescimento da cidade de São Paulo e fez com que novos bairros se urbanizassem com uma intensidade cada vez maior. A vida cotidiana, sobretudo do centro da cidade, passou a sofrer uma progressiva laicização, acarretando no desaparecimento de muitas festas. Por outro lado, outras novas foram introduzidas pelas mãos desses imigrantes, que, numa intenção de preservar sua cultura e identidade apesar de geograficamente distantes de suas terras natais, introduziram novos costumes, dando origem, nessa época, a diversas festas religiosas em louvor aos seus santos de devoção. Essas festas foram rigorosamente controladas pelo poder público e ocorreram fora das áreas centrais.

As festas na São Paulo Republicana

Foi sobretudo a partir da Proclamação da República, em 1889, que diversos aspectos da estrutura oficial se modificaram, implicando em imposições que afetaram até muito recentemente nosso viver e nosso arranjo urbano contemporâneo. Com o despontar de novos tempos mais atentos ao mundano, aos negócios, ao cotidiano, predominou quase absolutamente as leis e os costumes civis.

Embora nunca tenha havido uma ruptura brusca, as práticas religiosas católicas foram progressivamente entrando em declínio. Algumas antigas festas religiosas ainda continuavam a pontuar o curso de vida das pessoas, marcando a periodicidade dos momentos e das coletividades, mas elas não mais expressavam a vida coletiva como um todo e foram perdendo força.

A partir de 1890, o poder público começou a se reorganizar, o que veio a culminar na publicação da primeira Constituição Republicana Brasileira, de 24 de fevereiro de 1891, na qual o Brasil foi decretado um território laico. Ficou rompida a relação secular entre a Igreja e o Estado, fato que incidiu diretamente na realização das festas, fazendo com que as profanas,

sobretudo as cívicas, suplantassem as religiosas em importância. As procissões foram substituídas por manifestações de civismo (GAUDITANO; TIRAPELI).

Associadas às mudanças na vida da sociedade, também a mudança de regime garantiu aos poderes públicos municipal e estadual maior autonomia no que se refere à intervenção urbanística através de novos mecanismos administrativos, às vezes repressivos. Diversas leis estaduais e municipais foram promulgadas tratando de questões administrativas. A Lei Municipal nº 203, de 27 de fevereiro de 1896 determinou que o poder executivo seria exercido por quatro Intendências (a de Polícia e Higiene, a de Justiça, a de Obras e a de Finanças), ficando as festas subordinadas à Intendência de Polícia e Higiene, que zelava pela manutenção da ordem e ocupação do espaço público. Após ter atravessado um breve e conturbado período, as Intendências acabaram sendo extintas, sendo convertidas em Seções, todas subordinadas ao Prefeito. A administração municipal passou a influir decisivamente no cotidiano dos paulistanos, controlando e vigiando a vida da cidade através de Códigos de Posturas, Leis ou outros mecanismos que regulamentavam as obras, a higiene pública, o funcionamento do comércio e o uso dos logradouros públicos.

Surgiu uma série de medidas legais e políticas de organização do espaço que regulamentaram a vida da cidade na época e o uso do espaço público urbano, dentre elas algumas que viriam a afetar a realização das festas. A política do governo da Primeira República procurou controlar e laicizar muitas festas, exigindo, através da Seção de Polícia e Higiene que para que as festas fossem realizadas deveriam ser feitos pedidos de alvarás e licenças. Essa exigência fazia com que a Câmara tivesse pleno conhecimento, poder e controle sobre a realização das festas.

As licenças e alvarás normalmente eram concedidos mediante o devido pagamento de taxas e elevadas cauções para “eventuais” danos que pudessem vir a ser causados ao solo público, sendo raros os casos negados. Com essa exigência, as festas, que aconteciam nas ruas como um processo de apropriação popular do espaço no contexto de exaltação e alegria do povo reunido, passaram a ter controle intenso do poder municipal a tal ponto que a municipalidade se “apropriava” das práticas populares, tendo pleno controle sobre “por quem”, “quando”, “como” e “onde” seriam realizadas as festas. Essa foi uma forma velada de dificultar a realização das festas públicas ou mesmo de coibi-las, sob justificativa de um emergente espírito de ordem e de civilização.

A elite não mais se interessava pelas festas religiosas católicas, pois pela nova visão de mundo – capitalista e burguês –, o catolicismo passou a ser visto como um atraso para o desenvolvimento da sociedade. O objetivo era o crescimento da cidade, em função do enriquecimento pela cafeicultura e da explosão demográfica (que já vinha ocorrendo desde final do período imperial) o que levou o poder público a se reorganizar e a reorganizar também o espaço público urbano, visando a sua melhoria de serviços e de infraestrutura com novas construções. Todas essas grandes melhorias pelas quais a cidade vinha passando mereciam destaque. Com a ideia de exaltar e comemorar essa “nova” cidade que estava se formando, foram cada vez mais frequentes as “festas de inauguração” dos modernos serviços de infraestrutura urbana que estavam se instalando na cidade na época, as quais já vinham ocorrendo esporadicamente desde o final do período imperial, mas que nessa época ganharam mais força e frequência. Fato curioso é que na maioria das vezes essas festas ocorriam associadas às festas religiosas importantes, talvez ou para ofuscá-las, tirando o foco da festividade ou para garantirem a presença de grande número de pessoas que já estavam presentes na festividade religiosa.

As festas que celebravam a fé foram se enfraquecendo pela perda de seu espaço devido à urbanização acelerada, que as forçou a progressivamente irem abandonando a área central da cidade de São Paulo. Houve certo cerceamento e as festas passaram a serem realizadas em locais cada vez mais distantes do centro urbano. O universo das festas modificou-se. Por terem ficado nas mãos das pessoas menos favorecidos economicamente, que moravam em

locais afastados do centro, as festas acabaram sendo desviadas para novos bairros longínquos, palco de muitas festas públicas com novas feições e contornos.

A cidade cresceu e internacionalizou-se, apagando velhos costumes e ofuscando antigas tradições. Tradição e mudança são mutuamente dependentes, uma vez que a tradição estabelece uma linha de continuidade ao mesmo tempo em que é um repertório simbólico que adquire novos significados em diferentes temporalidades, situações, lugares. Iniciou-se o despontar de novos tempos mais atentos ao mundano, aos negócios, ao cotidiano, com o predomínio quase absoluto das leis e costumes civis.

Considerações finais

Cabe esclarecer que cada uma das tipologias das festas possui uma estrutura específica, mas no presente estudo elas não foram analisadas isoladamente e nem em sua composição interna e sim compreendidas na intersecção de um conjunto de sistemas simbólicos que devem ser decodificados frente ao contexto histórico, social, político e urbano à luz das normas e legislações vigentes. As festas, que no período colonial exerceram uma função primordial, sendo um elo de união entre as estruturas de poder e a população adquiriram diferentes funções e significados para os diferentes segmentos da sociedade, em diferentes tempos. O Império foi um período de transição num crescente processo de laicização. Muitas festas caíram na esfera do divertimento, perdendo em seriedade e sacralidade, mas outras novas surgiram. A República foi focalizada em meio às transformações materiais e sociais por que passava a cidade. As festas religiosas perderam o seu espaço e seus significados, mas as cívicas faziam parte do novo ideário que emergia.

As lentas transformações pelas quais as festas foram passando entraram em descompasso com as grandes mudanças no cotidiano paulistano e com o rápido crescimento da cidade. Notamos o encolhimento e recolhimento da maioria das festas no perímetro central para o interior das igrejas, em meio ao surgimento de outras (de caráter mais popular) nas áreas mais afastadas da cidade, em geral vinculadas aos imigrantes. Notamos também um descompasso entre o espaço material em transformação com a dimensão dessas celebrações de massa. Em meio ao aumento crescente dos índices demográficos, a área central da cidade, mesmo alterada em volumetria, manteve-se muito semelhante em planimetria, tornando-se pequena para as grandes festas cívicas, transformadas em enormes eventos coletivos. Mas, por outro lado, os grupos sociais passaram a ser tantos e tão heterogêneos que as festas não mais representavam todos e não mais conciliavam a maioria dos interesses, passando a gerar cada vez mais tensões, conflitos de interesses até que paulatinamente foram desaparecendo do cenário público central da cidade de São Paulo e do imaginário coletivo.

Referências Bibliográficas

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VIDE. Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pelo Illustríssimo, e Reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, 5º Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Magestade: propostas, e aceitas em o Synodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. São Paulo: Typographia 2 de Dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853; Brasília: Edições do Senado Federal, vol. 79, 2007.