Resumo

As transformações urbanas aplicadas em Curitiba ao longo da década de 1970 promoveram alterações significativas na paisagem e na infraestrutura da cidade. Entre as principais obras destacaram-se: implantação de área exclusiva para pedestres na Rua XV de Novembro, melhoramentos das praças, ampliação das áreas destinadas ao lazer, grandes parques públicos, abertura de avenidas, novo sistema de transporte, implantação da Cidade Industrial de Curitiba – CIC, entre outros projetos. Na perspectiva dos técnicos e idealizadores, as intervenções promoveram a denominada “humanização” da cidade, possibilitando o crescimento ordenado e disciplinado da capital paranaense. Este artigo analisa as contradições e os impactos sociais das transformações, investigando os discursos dos técnicos envolvidos e destacando diversas interpretações sobre a produção do espaço.

Palavras-chave: arquitetura; urbanismo; revitalização; espaço público; infraestrutura

Abstract

Urban transformations applied in Curitiba during the 1970s promoted significant changes in the landscape and infrastructure of the city. Among the main works stood out: Deploying pedestrianized area in Rua XV de Novembro, improvements to parks, expansion of areas for leisure, large public parks, opening avenues, new transport system, implementation of the Industrial City of Curitiba among other projects. In view of the technical and creators, interventions promoted called "humanization" of the city, allowing the orderly and disciplined growth of Curitiba. This article examines the contradictions and the social impacts of changes, investigating the discourses of the technicians involved and highlighting different interpretations about the production of space.

Keywords: architecture, urbanism, revitalization; public space; infrastructure

Introdução

Contemplando uma proposta de pesquisa crítica e investigativa sobre o planejamento urbano de Curitiba nas décadas de 1960 e 1970, o artigo organiza a discussão do tema em dois momentos específicos. Inicialmente será apresentada a história desse processo a partir da visão dos idealizadores, analisando os discursos relacionados aos eventos como o Seminário Curitiba de Amanhã (1965) e o período de execução do projeto ao longo da década de 1970. Em seguida, serão analisados os impactos sociais e as percepções divergentes da visão institucional e dos idealizadores do planejamento, considerando as contribuições e as interpretações sobre a produção do espaço.

A cidade em discussão na década de 1960

As propostas que impulsionaram as grandes transformações urbanas aplicadas na capital paranaense a partir de 1971 já estavam sendo discutidas desde a década de 1960. Ao longo desse período que antecede a elaboração do Plano Preliminar de

Urbanismo, a imprensa de Curitiba registrou diversas discussões relacionadas à cidade, envolvendo questões estéticas, econômicas e de infraestrutura, como o crescimento urbano considerado “desordenado”, o aumento populacional até as limitações relacionadas ao abastecimento de água, saneamento, transporte, indústria, habitação e lazer:

Não é possível admitir o crescimento desordenado da cidade, possibilitando, ainda, que os reclames da população não sejam atendidos pelos poderes públicos. A verdade é que, sem a disciplina de um plano urbanístico, a cidade sofre, até hoje, o crescimento sem os necessários requisitos de urbanismo, não só dos seus principais bairros, como do próprio centro da cidade. A ausência de disciplina do crescimento da urbe incentivou uma série de irregularidades, cujas consequências ainda hoje sofre a Capital paranaense: ruas abandonadas, pela ausência de calçamento, ou asfalto, água, iluminação elétrica e tantos outros reclames, além da falta de alinhamento. (GAZETA DO POVO, 07/07/1965, p.03).

Os questionamentos referentes à infraestrutura apontavam como principal causa dos problemas urbanos a defasagem do histórico Plano Agache elaborado em 1943, o qual não corresponderia à realidade da capital na década de 60. Nesse contexto foi realizado em 1964 o concurso público para a elaboração do Plano Preliminar de Urbanismo, tendo como projeto vencedor a Sociedade Serete de Estudos e Projetos Ltda. e Jorge Wilheim Arquitetos Associados, propondo o desenvolvimento da cidade no sentido nordeste-sudoeste, hierarquia de vias destinadas à circulação, adensamento, policentrismo, alterações no zoneamento, espaços exclusivos para pedestres, espaços para lazer, ampliação e adequação das áreas verdes e criação de uma paisagem específica da cidade. (SOCIEDADE SERETE DE ESTUDOS E PROJETOS, 1965). As propostas foram publicamente apresentadas através do Seminário Curitiba de Amanhã, evento organizado pela prefeitura municipal entre os dias 09 e 30 de julho de 1965, período que ficou denominado como Mês do Urbanismo. As palestras, debates e exposição, reuniram técnicos como engenheiros, arquitetos e urbanistas, entidades como Associação Comercial do Paraná, Federação das Indústrias e Comércio, Federação do Comércio Varejista, além de autoridades, estudantes e moradores de diversos bairros.

Ao final do seminário, a imprensa divulgou o sucesso e a importância das conferências no sentido de “esclarecer o povo” e as diversas categorias sociais, políticas e econômicas. Para a prefeitura, o evento possibilitou debater as propostas e demonstrou apoio unânime aos trabalhos de intervenção na cidade. (O ESTADO DO PARANÁ, 20/07/1965).

Contudo, a ideia de um consenso coletivo e apoio unanime, bem como a preocupação em discutir o tema com a sociedade, como alegavam autoridades e técnicos, revelou- se limitada e contraditória. Além das críticas relacionadas à forma como o plano foi apresentado à população, ao privilegiar uma linguagem técnica e pouco “acessível” ao “povo”, questionava-se as próprias diretrizes do Plano Preliminar de Urbanismo que privilegiavam o desenvolvimento urbano no sentido nordeste-sudoeste, o que implicava excluir outras áreas como o Boqueirão, um dos bairros mais populosos da capital na década de 1970. Localizado na região mais baixa da cidade e considerada como área desvalorizada em razão das constantes inundações, o bairro constituía opção à moradia aos grupos sociais economicamente desfavorecidos:

Para oficializar sua intenção, o prefeito criou uma semana destinada à divulgação do Plano da Serete. (...) Houve, depois, uma apresentação comercial; dá para imaginar o que aconteceu, muitos aplausos, como se estivessem entendendo do assunto, de urbanismo, de matéria altamente técnica e especializada; esses aplausos foram entendidos, convenientemente, como apoio e aprovação do plano. Discussão mesmo não houve e nem poderia haver. O que poderia discutir sobre urbanismo um comerciante, ainda que bem sucedido? ...Sob o patrocínio da Prefeitura, apresentaram a leigos um trabalho, essencialmente complexo, cheio de plantas e mapas os quais, sem saber ou poder discutir, mais uma vez aplaudiram a iniciativa da municipalidade; mais uma vez o plano era aprovado.

O Plano Serete foi desenvolvido ocupando a porção da cidade ao Norte da BR esquecendo o Boqueirão da cidade real... (OLIVEIRA, 1992, p. 49).

...o prefeito Ivo Arzua achou por bem discuti-lo democrática e transparentemente – como se diz hoje em dia – com toda a população. Então ia o Plano Diretor, para ser discutido, à Barreirinha, ao centro da cidade, ao Ahú, ao Bacacheri. Eram discussões absolutamente surrealistas, porque você faz uma proposta do Plano Diretor e a leva à discussão com o povo do Bacacheri, ele não está entendendo nada. Mas ficou muito bonito, porque aí teve o apoio da população. (RISCHBIETER, 1992, p. 04).

Apesar do caráter público, a participação popular foi limitada e, quando ocorreu, parte considerável da sociedade figurou mais como ouvinte e espectadora do que participante dos debates técnicos. Também não houve maiores preocupações em consultar populações residentes em áreas classificadas pelo próprio Plano Preliminar de Urbanismo como “inorgânicas” (SERETE, 1965), isto é, áreas caracterizadas pelos loteamentos ou ocupações “irregulares”, como a região do Boqueirão ou as inúmeras favelas espalhadas pela cidade.

As transformações urbanas em Curitiba na década de 1970

Após a elaboração do Plano Preliminar de Urbanismo e das atividades de divulgação relacionadas ao Seminário Curitiba de Amanhã, teve iniciou a fase de elaboração do Plano Diretor e os trabalhos de detalhamento das propostas ao longo da década de 1960, trabalho realizado sob os cuidados do grupo técnico do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba – IPPUC, implicou em modificações em relação ao plano elaborado pela SERETE. (FARACO, 2002, p.136).

O processo de execução do plano ocorreu somente a partir de 1971, quando o arquiteto Jaime Lerner foi nomeado para prefeito (1971-1974), transformando Curitiba em verdadeiro canteiro de obras: implantação do calçadão de uso exclusivo para pedestres na Rua XV de Novembro, melhoramento das praças e passeios existentes, ampliação e criação de novas áreas destinadas ao lazer, implantação de grandes parques públicos, abertura dos eixos estruturais, inauguração do novo sistema de transporte, a transformação de edificações industriais desativadas em espaços culturais a exemplo do Centro de Criatividade (antiga fábrica de cola e

beneficiamento de couro) e do Teatro Paiol (antigo depósito de munições e arquivo), a implantação da Cidade Industrial de Curitiba – CIC, entre outros projetos.

Após o final da primeira gestão de Lerner, o engenheiro Saul Raiz (1975-1979) assumiu a prefeitura e, plenamente identificado com o projeto de transformação urbana, garantiu a continuidade das obras. (OLIVEIRA, 2000, p.79). Em seguida, Lerner ocupou a prefeitura em mais dois momentos: entre 1979 e 1983 (segunda gestão municipal) e entre 1988 e 1992 (terceira gestão municipal).

A imprensa de Curitiba dedicou especial atenção às obras e projetos que integravam o plano diretor da cidade, executados a partir de 1971. Sucessivas matérias e reportagens divulgadas nos meio de comunicação, desde jornais até televisão, exaltavam aspectos relacionados ao domínio técnico, criatividade, inovação, funcionalidade e a humanização da cidade:

... a história mostra que a cidade não parou de crescer, mas somente nos últimos três anos um capítulo a parte começou a ser escrito, conseguindo Curitiba ultrapassar os cálculos mais otimistas. Projetos de grande porte, como a Cidade Industrial ou então as remodelações profundas que os críticos já acostumaram chamar de "cirurgias urbanas" aconteceram, transformando totalmente o comportamento do trânsito e do curitibano, em geral, que aprendeu a dar valor às áreas verdes, a humanização da cidade, ao transporte de massas e ao lazer. Os últimos anos projetaram Curitiba no Cenário nacional, sendo distinguida com citações, recomendada como modelo... (GAZETA DO POVO, 30/03/1975).

Na perspectiva dos planejadores, a fase executiva do projeto iniciada em 1971, também caracterizou-se pela neutralidade e pelo apoio coletivo respaldando as intervenções. Os casos de oposição ou de indiferença dos usuários da cidade, em relação às transformações urbanas, foram compreendidos como manifestações isoladas advindas da falta de informação ou da ação de agentes contrários aos interesses coletivos, a exemplo dos acontecimentos arrolados durante o plano de pedestrianização do centro a partir de 19 de maio de 1972.

O projeto dos espaços exclusivos para pedestres, na Rua XV de Novembro, previa a supressão da circulação de veículos, a implantação de equipamentos destinados ao lazer e à convivência, além da arborização e jardins. Mas as propostas encontraram resistência de muitos comerciantes que, receosos com a imposição pouco democrática e com a diminuição do movimento de clientes, questionavam o projeto:

O presente que os técnicos municipais estão preparando para os curitibanos, fechando definitivamente a Rua XV, "para equipará-la culturalmente", pode ser um autêntico presente de grego. O grande problema é que ninguém está consultando o presenteado, para saber se ele aceita ou repudia o presente". (O ESTADO DO PARANÁ, 18/05/1972, p.03).

Vencida a resistência inicial, uma vez que os comerciantes posteriormente apoiaram a proposta do calçadão, as discussões referentes à imposição do plano sem consulta à população foram reduzidas a uma simples questão de desinformação técnica, cessada a partir do momento em que o público foi “convencido” dos benefícios do planejamento urbano:

Os comerciantes não aceitavam a pedestrianização, e com toda razão, visto que era algo totalmente novo para eles. Como iriam se arriscar a uma experiência desconhecida? ...O Jaime decidiu por uma operação relâmpago, de 72 horas, num final de semana, para não dar chance aos comerciantes de impetrar mandato de segurança, impedindo a obra. (...) O efeito foi tão bom que os trechos seguintes da Rua XV foram fechados a pedido dos próprios comerciantes, que sentiram os benefícios auferidos. (DELY, 1989, p.15).

Como portadores do conhecimento técnico, os planejadores atuariam acima de instâncias particulares. Assim como ocorrera na implantação da primeira área de circulação exclusiva para pedestres do país, a versão perpetrada sobre a história do novo transporte coletivo implantado a partir de 1974, também privilegiou a atuação autônoma e neutra dos planejadores, considerando o projeto do novo sistema independente de interesses políticos e econômicos advindos dos grupos empresariais ligados ao transporte, pressupondo que o processo de planejamento dependesse, exclusivamente, de aspectos como criatividade e domínio técnico:

No início da implantação do sistema, foi uma briga... Enfim, havia um certo medo, da parte dos empresários, da mudança. Era algo desconhecido, para eles. Mas depois foi absorvido... A má reação inicial foi substituída, depois, porque a novidade funcionava e agradou. Houve pedidos inúmeros para que fosse levado adiante. (CENEVIVA, 1989, p.31).

Os impactos sociais e as interpretações sobre a produção do espaço

Apesar do discurso inovador no contexto nacional, articulando argumentos em defesa da humanização, racionalização, funcionalidade e desenvolvimento da cidade, bem como propósitos relacionados à ampliação das áreas de lazer, atividades culturais, convívio social, identidade e patrimônio histórico, melhorias no transporte público entre outros, o projeto urbano também caracterizou-se pelos impactos sociais.

Oliveira (2000, p.31) questiona a relevância histórica conferida aos urbanistas como principais agentes responsáveis pelas transformações urbanas em Curitiba e enfatiza a participação de outros personagens como os empresários. A atuação dos planejadores urbanos não estaria imune aos interesses ligados à produção imobiliária, transportes ou indústrias, por exemplo:

Os investimentos realizados em infraestrutura (abastecimento, esgotos, pavimentação etc), o zoneamento urbano e a legislação do uso do solo, que tradicionalmente são áreas de competência do município, afetam os interesses de dois dos setores mais importantes do conjunto do empresariado local: o da construção civil e aquele que se dedica à especulação imobiliária. Além disso, a legislação ambiental e as restrições ao uso do solo também poderão afetar os objetivos do empresariado industrial. Finalmente, tanto no caso brasileiro como também no caso norte-americano, a política de transportes de massa poderá causar efeitos sobre os interesses particulares dos donos de frotas de ônibus, os quais exploram esses serviços. (OLIVEIRA, 2000, p.33).

A ideia de um grupo técnico, politicamente neutro e comprometido com o bem estar social, extensivamente divulgada pela imprensa e pelos setores institucionais, representaria uma imagem construída e voltada para ocultar interesses e grupos envolvidos no planejamento da capital paranaense. (OLIVEIRA, 2000, p.184).

A formação da coalizão de interesse e sua influência no desenvolvimento urbano remonta às análises de Molotch (1976) e Gottdiener (2010), oferecendo subsídios à compreensão da produção da cidade, ao versarem sobre o papel do espaço nas disputas envolvendo classes, a ação dos grupos imobiliários, o posicionamento do Estado e a influência ideológica.

Gottdiener (2010), assim como Molotch (1976), destaca a propriedade da terra como fator imprescindível à compreensão da produção do espaço urbano em uma sociedade organizada sob os princípios da economia de mercado, uma vez que a posse e controle possibilitaria adquirir renda, constituindo-se como motivo às disputas entre grupos pró-crescimento.

Molotch (1976) compreende a produção do espaço como resultado da ação dos grupos interessados nas potencialidades rentistas da propriedade da terra. Os grupos envolvidos, denominados como pró-crescimento, organizariam uma coalizão constituída por elites capitalistas dominantes ligadas aos interesses imobiliários, mas que também agregaria em sua luta outros agentes como empresários, investidores, instituições financeiras, indústrias, proprietários de terras, comerciantes e sindicatos. Tal arranjo estratégico ainda encontraria corroboração entre aqueles que, embora destituídos de poder político, manifestariam assentimento às intenções da força pró- crescimento, elegendo candidatos partidários ou contribuindo com atividades ideológicas da coalização.

A coalizão atuaria também na dimensão ideológica, difundindo através dos meios de comunicação supostas vantagens das políticas de crescimento, como a melhoria da qualidade de vida e o desenvolvimento econômico, buscando conquistar apoio da sociedade e conceber uma imagem de cidade atrativa às empresas e aos recursos estatais e privados. Nessa perspectiva, a valorização da identidade das cidades, envolvendo seus aspectos históricos, culturais, geográficos e naturais, estimulados pelos centros educacionais ou vinculados à mídia de massa, constituiriam representações e imaginários estrategicamente construídos e, portanto, passíveis de manipulação a partir dos interesses da coalizão pró-crescimento. (MOLOTCH; LOGAN, 1987, p.61).

Ao longo da história de Curitiba, os grupos de alta renda procuraram ocupar "áreas próximas ao centro, acompanhando as principais estradas de acesso, localizadas à nordeste e à sudoeste" (POLUCHA, 2010, p. 34). Em relação à população economicamente desfavorecida, Pilotto (2010, p.53) e Polucha (2010, p. 34) enfatizam que, desde a metade do século XX, ocorrera a ocupação gradativa na parte leste da BR-116, área considerada “desvalorizada” e “inadequada” para a habitação, caraterizada pelos terrenos úmidos e alagadiços, em decorrência da proximidade com os rios Iguaçu e Belém.

O Plano Preliminar de Urbanismo de Curitiba, elaborado em 1964, não demonstrou disposição para reverter essas contradições espaciais, reforçando o contraste, a segregação e a desigualdade social entre as regiões da cidade. As propostas não apenas condenaram a ocupação à leste, como também não estimularam investimentos ou melhorias na infraestrutura na respectiva área. As atenções foram direcionadas para promover o desenvolvimento urbano no sentido nordeste-sudoeste. (POLUCHA, 2010, p.34). Dessa forma,

O modelo de desenvolvimento implantado em Curitiba a partir da década de 1970 seguiu essa lógica. As intervenções propostas pelo planejamento urbano qualificaram o espaço urbano de Curitiba de maneira desigual, favorecendo as áreas centrais em detrimento das periféricas. O resultado foi a acentuação da diferenciação do valor da terra, reforçando a segregação sócio-espacial existente. (POLUCHA, 2010, p. 35).

Nesse sentido, Kowarick (2000) destaca o caso da cidade de São Paulo, onde recursos públicos foram aplicados para proporcionar condições de circulação e desenvolvimento do capital, valorizando áreas destinadas aos grupos de renda média e alta, reforçando a segregação social. A construção da cidade e do espaço metropolitano envolveu o uso da força de trabalho e o uso de recursos públicos, mas resultou na privatização do espaço, exemplificado na construção de condomínios fechados, edificações luxuosas, shoppings centers ou em obras de infraestrutura com fins à especulação ou supervalorização da propriedade da terra, destinados a uma minoria privilegiada:

Nesse particular, deve-se ressaltar que a principal fatia do investimento público tem sido, no caso de uma metrópole como São Paulo, dirigida para áreas onde vivem e trabalham os grupos de renda média e alta, bem como para maximizar a realização do capital, gerando grande parte das assim chamadas condições gerais necessárias para o processo de acumulação se reproduzir em escala ampliada. (KOWARICK, 2000, p.23).

Kowarick (2000) enfatiza ainda o ciclo contínuo de segregação e espoliação urbana mesmo nos casos onde os investimentos foram direcionados para áreas carentes ou sem infraestrutura, uma vez que acarretam na valorização da região e na expulsão da população desprovida de condições econômicas:

Deve-se dizer que com a chegada de melhorias urbanas em áreas antes desprovidas, eleva-se seu preço econômico à medida que decai seu ônus social. No momento em que ocorre esse processo de valorização, essas áreas, antes acessíveis a faixas de remuneração mais baixa, tendem a expulsar a maioria dos locatários, os proprietários que não puderam pagar o aumento de taxas e impostos, transformando-se em zonas para camadas mais remuneradas. (KOWARICK, 2000, p.28).

Em Curitiba, o planejamento urbano também promoveu uma ocupação seletiva e restritiva, uma vez que as intervenções e projetos implicaram diretamente na diferenciação do valor da terra nas áreas beneficiadas com infraestrutura, além das imposições quanto à legislação urbana que passaram a vigoram nessas áreas:

A ocupação do espaço metropolitano deu-se seletivamente: o valor da terra e da moradia e o custo das melhorias urbanas reservaram para Curitiba um morador com melhores níveis de renda, direcionando os grupos empobrecidos e os migrantes de

menor poder aquisitivo para as áreas periféricas internas e de outros municípios.

Para essa segregação socioespacial concorreram as intervenções urbanísticas e os mecanismos de controle associados ao planejamento – que serviram tanto para valorizar o solo quanto para conter os efeitos da ocupação no interior do município -, assim como a lógica do mercado prevalecente na aquisição da moradia. (MOURA, 2009, p. 221).

Os investimentos provocaram a valorização da terra nas áreas próximas aos parques, áreas de lazer e aos eixos estruturais, dificultando ou mesmo inviabilizando a permanência de parcelas da população que, na busca por alternativas à moradia, foram estimuladas a residir em locais considerados inadequados “onde, portanto, não teriam que pagar o preço do planejamento, ou então ocuparam as áreas fronteiriças com os municípios do entorno de Curitiba, desencadeando as intensas ocupações dos mananciais”. (FIRKOWSKI, 2001, p.64).

Moura e Ultramari (1994) apontam como um dos principais fatores no processo de ocupação da região metropolitana de Curitiba o "custo da terra e às restrições impostas pelo planejamento urbano de Curitiba que direcionaram a ocupação para áreas contíguas ao polo, em territórios de outros municípios”, pois essas regiões “ofereciam disponibilidade de terra parcelada e de menor valor” (MOURA e ULTRAMARI, 1994, p.09).

Considerações finais

As intervenções urbanas realizadas na capital paranaense a partir de 1971, como a implantação do calçadão de uso exclusivo para pedestres, ampliação e criação de novas áreas de lazer, implantação de grandes parques públicos, abertura dos eixos estruturais, inauguração do novo sistema de transporte entre outros projetos, consolidaram a imagem de Curitiba como cidade modelo.

Na perspectiva dos técnicos e do próprio IPPUC, o planejamento foi compreendido como processo criativo e inovador, resultando em uma cidade harmoniosa, com qualidades funcionais indispensáveis ao crescimento e desenvolvimento “ordenado”. Na versão da história institucional ou considerada oficial, os conflitos entre planejadores e sociedade, bem com as divergências entre os próprios técnicos, foram amenizados e, quando mencionados, figuraram como episódios ou acontecimentos isolados.

Os trabalhos investigativos e as interpretações sobre a produção do espaço revelaram visões divergentes dessa mesma cidade. Apesar do discurso em defesa da chamada “humanização”, articulando argumentos em defesa da funcionalidade, desenvolvimento econômico, bem como propósitos relacionados ao espaço público e ao convívio social, o projeto urbano também caracterizou-se como contraditório, reforçando contrastes e desigualdade sociais e espaciais.

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