Resumo

Por mais de trezentos anos, ao longo de todo o período colonial no Brasil – e avançando pelo Império até a República – Ordenações do Reino de Portugal – constituíram o fundamento normativo de um sofisticado sistema administrativo e jurídico de ocupação e controle dos territórios. Eram livros sucessivamente reimpressos e amplamente distribuídos por meio dos agentes da Coroa. Em diversos momentos tais textos tratavam de edificações e de sua relação entre si e com o espaço público e com outra edificações. A disposição de aberturas – privacidade, vista, iluminação –, a construção sobre a rua, as paredes entre vizinhos, as águas pluviais, a partilha de casas eram alguns dos temas de que se encarregava o almotacé, um agente dos Concelhos locais. Tais princípios regulares, e sua ampla difusão, podem ter desempenhado um papel na constituição da uniformidade hoje visível nas cidades luso-brasileiras. O presente artigo traz uma breve análise da edição, a difusão e o conteúdo de alguns destes valores, com o objetivo de subsidiar investigações sobre a medida de tal influência.

Palavras-chave: Ordenações, Regulação Urbana, Urbanística Colonia Brasileira

Abstract

For more than three-hundred-years, along all the Colonial age of Brazil – and throughout the Empire until the Republic, in the late nineteenth century – the Ordenações do Reino de Portugal [Ordinances of the Kingdom of Portugal] were base-laws of a sophisticated administrative and legal system of territorial occupation and control. Those were books repeatedly printed and widely distributed throughout the agents of the crown. In several parts those texts dealt with buildings and with their relation amongst themselves and between them and public space. The disposition of the opening – regarding privacy, view and sun-lighting –, building above the streets, walls between neighbors, rain-water, the division of houses, were some of the themes in charge of the almotacé, a public agent of the county Councils. Such regular principles, and their widespread diffusion may have played a role in configuring today's visible uniformity of the Portuguese-Brazilian towns. This paper presents a short analysis of the edition, diffusion, and the nature of some of those values, aiming to stimulate further investigation on the extent of that influence.

Keywords: Ordinances, Urban Regulations, Brazilian Colonial Towns

Vê-se, pois, o rumo que segue este tipo de investigação: ultrapassar a superfície de observação para alcançar a zona dos elementos inconscientes ou pouco conscientes e reduzir depois esta realidade a elementos pequenos, finos, idênticos, cujas relações podem ser analisadas com precisão. Neste graumicro- sociológico (de um certo tipo; sou eu quem acrescenta esta reserva) podemos esperar perceber as leis das estruturas mais gerais, tal como o linguista descobre as suas no grau infra-fonêmico e o físico no grau infra-molecular, isto é, ao nível do átomo”.

Fernand Braudel. A longa duração.

A Coroa Portuguesa desenvolveu um complexo sistema burocrático, militar e judiciário para controlar o vasto território de suas colônias. A elas, estendeu-se a vigência do corpus legislativo em uso na própria metrópole, cuja principal peça eram as Ordenações do ReinoManuelinas e logo Filipinas – correntes no Brasil desde 1512 até a criação do Código Civil de 1916. Dentre as diversas matérias de que aqueles códigos tratavam, encontra-se a regulação urbana, ou o que hoje compõe os códigos de obras – ou de edificações – e os Códigos de Posturas Municipais. Trata-se, por exemplo, da regulação de pesos e medidas, do abastecimento, da limpeza urbana, mas também da classificação de imóveis, do direito de construir ou de constituir servidões. Estas normas e os princípios a elas subjacentes foram duradouros, constantes, e estiveram presentes em cada núcleo urbano do Brasil colonial: eram livros impressos trazidos pelos agentes do Estado. Certamente exerceram não desprezível influência na conformação de nossas povoações, cuja uniformidade é notável. O presente texto tem por objetivo subsidiar a verificação de tal influência, identificando brevemente a natureza e a circulação daquelas importantes publicações, pontuando alguns valores urbanísticos de cuja concretização elas foram instrumentos.

As Ordenações, ou Leis Gerais do Reino, eram na verdade códigos – compilações de leis reorganizadas sistematicamente – frutos da unificação do sistema jurídico e parte de um processo de centralização de poder nas mãos do monarca (LOPES, 2008, p.160). Em Portugal e suas colônias, vigeram o Código Afonsino, “o mais antigo da Europa”(PORTUGAL, 1949, p.102), promulgado por D. Afonso V em 1446; as Ordenações Manuelinas, promulgadas por D. Manuel I em 1512; e as Ordenações Filipinas; promulgadas por Felipe II em 1603, durante a união ibérica. Sempre incorporando e revogando a legislação extravagante anterior, elas eram invariavelmente compostas por cinco “livros” seccionados em títulos e parágrafos sistematizados e de consulta relativamente simples. Eram instrumentos de poder essenciais à Coroa, no contexto de expansão marítima do Império Português na África, Ásia e América, num processo em que a garantia de autenticidade e a capacidade de multiplicação do livro impresso foram fundamentais. Portugal, de fato, sempre manteve seu corpo burocrático bem abastecido de exemplares desses códigos. Foram dadas aos prelos pelo menos cinco

edições das Ordenações Manuelinas entre 1512 e 1565.1 Já as Ordenações Filipinas

  1. Edições de: Oficina de Germão Galhardo: Lisboa 1533 ; Juan Cronenberger e Germão Galhardo: Lisboa, 1539 ; Lisboa : por Manoel Ioam, 1565. Todas todas in-folio (de aproximadamente 30cm), – na verdade a reestruturação do Código Manuelino incorporando a legislação extravagante lusitana promulgada ao longo do século 16 – chegariam a nada menos que a décima quarta edição em 1870.2 A circulação das Ordenações em território americano era ampla.3 Como argumenta Stuart Schwartz (2011, p.40), “a organização judiciária se tornara o plano estrutural do Império. Racionalizada e sistematizada desde o século XIV, ela oferecia à Coroa um meio burocrático de controle, e quase imperceptivelmente a magistratura real se estendera às colônias”: uma cultura por isso influente em nosso processo de urbanização, para além dos menos abrangentes domínios corporativos da arquitetura e da engenharia.4

conforme informação de Inocêncio Silva (1858, t.VI, p.326), e das fichas catalográficas constantes na Biblioteca Nacional de Portugal, Disponível em: < http://purl.pt/14876 >, acesso em 17 jan. 2014. Complementa esta sequencia vigente uma edição acadêmica da Universidade de Coimbra, publicada em 3 volumes em 1797 dentro da Collecçaõ da Legislaçaõ Antiga e Moderna do Reino de Portugal – a mesma em que se produziria versão impressa do Código Afonsino em 1792.

  1. A décima quarta edição foi a primeira impressa no Brasil, prefaciada e comentada por Cândido Mendes de Almeida (Rio de Janeiro, Instituto Philomathico, 1870). Para uma listagem mais detalhada destas edições, veja-se os verbetes de Inocêncio Silva (1858, t.VI, p.325-328) e de Sacramento Blake (1883, v.2, p.37).

  2. Jorge de Souza Araújo (1999, p.398), com extensas pesquisas em coleções listadas em inventários particulares no Brasil colonial, resume: “Boa parte das obras que circulam nas bibliotecas brasileiras do Setecentos e Oitocentos têm uma origem convencional: o Reino. São as ordenações e seus inseparáveis repertórios das leis vigentes e das extravagantes”, ilustrando sua assertiva com a análise dos acervos de quatorze juristas. Álvaro de Araújo Antunes (2007, p.174) revela que, como hoje, “a leitura e instrução acerca da legislação vigente também não era uma prática exclusiva dos bacharéis de direito. No inventário de bens da Câmara de Mariana, por exemplo, constam as Ordenações do Reino”. Gilda Maria Whitaker Verri (2006, v.2), em seu exaustivo levantamento de Licenças autorizadas pela Mesa Censória portuguesa em dez anos entre 1769 e 1807, encontrou sessenta exemplares das Ordenações do Reino que tiveram seu envio autorizado para Pernambuco. Cronologicamente, tais livros são assim distribuídos: 1769, 30 exemplares; 1799, 2 exemplares; 1800, 4 exemplares; 1801, 8 exemplares; 1802, 5 exemplares; 1803, 8 exemplares; 1804, 1 exemplar; 1807, 5 exemplares. Em 1795 e 1796 não houve Ordenações autorizadas. Sete delas eram a impressão das Ordenações Afonsinas levadas a cabo em Coimbra pela Real Imprensa da Universidade em 1792. Além deste conjunto, foram autorizados nove exemplares do índice alfabético das matérias das Ordenações ou Repertorio das Ordenaçoens do Reyno de Portugal : novamente recopiladas : com as remissoens de todos os doutores do Reyno… / Composto pelo Licenciado Manoel Mendes de Castro…, que teve pelo menos sete edições ao longo dos séculos 17 e 18 (Inocêncio Silva – t.VI, p.60 – aponta cinco edições, enquanto o catálogo online da Biblioteca Nacional de Portugal aponta outras duas ali não listadas, de 1769 e de 1743).

  3. Segundo Rafael Moreira (2011, p.18), a cultura ligada à arquitetura e à engenharia nos domínios portugueses era “essencialmente manuscrita, que circulava de mão em mão em cópias sucessivas – contam-se por muitas centenas os exemplares copiados de lições, apostilas, e inteiros tratados que existiam nas livrarias da alta aristocracia e até em casas conventuais e hoje se conservam em nossas bibliotecas -, uma ‘cultura de mão’ toda baseada na escrita, na iluminura a aguada e no desenho”. Tradicionalmente, em estudos sobre a relação entre legislação e história da cidade, analisam-se as Cartas Régias que instruíram a fundação de diversas povoações sobretudo a partir do século 18. Mas esta legislação era também composta por manuscritos contendo “determinações reais dirigidas a autoridades e constituindo atos meramente administrativos”(ANDRADE, 1966, p.29), com cópia arquivada na metrópole. Embora tais textos tivessem muito em comum (cf. DERNTL, 2013, p.52-53), a circulação dos conceitos ali contidos certamente se restringia às autoridades dos “Concelhos” locais, se tanto.

Para identificar uma possível contribuição das Ordenações em nossa ordenação urbana, partimos da contribuição fundamental de Francisco de Paula Dias Andrade (1966, p.27- 29), que levantou nos cinco livros e mais de quinhentos títulos das Ordenações Filipinas aqueles “de interesse para a análise das povoações, os seguintes tópicos, todos do Livro Primeiro”: abastecimento público, ofícios públicos e artesanais, limpeza e saúde pública, obras públicas, bens dos Concelhos, administração pública, segurança e ordem públicas, disposições sobre construções e servidões. Pouco se vale o pesquisador do texto das ordenações, porém, preferindo apoiar sua análise sobre os jurisconsultos portugueses, que forneciam a interpretação da lei à luz do Direto Romano (o Corpus Juris Civilis compilado por Justiniano entre 529 e 534 d.C) reabilitado sobretudo a partir da hegemonia de centros universitários europeus como o de Coimbra.5 De fato, tal ponto se

naturalizou a recepção do Direito Romano pelo Direito Português Moderno, que a Administração Pombalina, no § 10 da Lei da Boa Razão – Lei de 18 de agosto de 1769 –, achou necessário abolir expressamente as “restrições e ampliações extraídas dos textos de Direito Civil, que até agora perturbaram as disposições” das leis do Reino – referindo-se expressamente ao Direito Romano (PORTUGAL, 1870, L.III, p.728–729, Aditamentos). Embora tenha representado uma reforma na interpretação e aplicação das normas – e portanto uma restrição do uso dos Tratados de juristas antigos –, a Lei da Boa Razão não constituiu outro código, e Ordenações Filipinas seguiram vigendo. A partir deste novo paradigma, porém, novos tratados de praxistas foram elaborados. Tal é o caso, por exemplo, daqueles de cujas interpretações aqui nos valeremos: o tratado de Casas, do português Manoel A. e Sousa de Lobão – publicado em 1817; e o Manual do edificante, do brasileiro Antonio Ribeiro de Moura – publicado em 1858.

Em que pese a importância dos tratadistas, e dos princípios doutrinários que eles traziam, foi de fato o texto dos códigos aquele a permanecer efetivamente em vigor no Brasil num regime de longa duração, desde 1603 até 1915. A leitura da letra da lei era de fato a prática corrente, ao menos no que concerne às disposições relativas às posturas urbanas. Sobre este tema que aqui nos interessa, trata-se na realidade de uma porção restrita das Ordenações: o Título 68 do Livro Primeiro, cujos quarenta e dois parágrafos tratam do Almotacé – e cujos vinte últimos tratam dos Edifícios e servidões. Tamanha era a importância cotidiana de tais posturas, que Valério Martins de Oliveira, Mestre Pedreiro em Lisboa, incluiu sua transcrição literal como anexo de suas Advertências aos modernos, que aprendem o officio de pedreiro e carpinteiro – um manual de construção

reeditado quatro vezes entre os séculos 18 e 19.6 O almotacé – ou Almotacel –, era um

  1. Cândido Mendes de Almeida (1870, p.XVII-XVIII) esclarece que: “O Rey […] augmentou ainda o empenho pela propagação do Corpus Juris. E para poupar aos Portuguezes o incommodo e despezas de viagens, bem custosas naquellas eras, fundou a Universidade de Lisboa (1289), que depois passou para Coimbra (1308); ordenando o ensino do mencionado Direito, e para esse fim mandou vir professores das mais acreditadas escolas”.

  2. Mesmo acompanhando a transcrição da lei de excertos de comentários de pelo menos sete tratadistas e praxistas portugueses e italianos que escreveram sobre o assunto, Oliveira (1757, p.183-184) ponderava que: “o melhor de tudo para bem se julgar, e se seguir a Ley do Reyno, he qualquer Official obrigado a saber a Ordenaçaõ do Reyno, que vai trasladada neste livro a fol.152. A mim, de quantos livros li de varios Authores de edificios, e servidoens, pertencentes ao nosso Officio de Pedreiro, e Carpinteiro,

cargo dos Concelhos7 cujos ocupantes encarregavam-se de fiscalizar e arbitrar matérias concernentes às posturas urbanas. Na definição de Rafael Bluteau (1712),

Derivase do artigo Arabico, Al; & Musahocin, que val o mesmo, que moderador dos preços em cousas de comer. E Almotacel, geralmente fallando, he o fiel dos pesos, & medidas dos mantimentos da cidade. Responde ao que os Romanos chamavaõ Aedilis.8

As Ordenações Afonsinas atribuiam a este agente tarefas relativas a limpeza e abastecimento urbano, mas foi no Título 49 do Livro Primeiro do Código Manuelino (1512) que se incorporaram a suas atribuições aquelas referentes a “Edifícios e Servidões”, até então constantes nas posturas locais como as do Concelho de Lisboa (PEREIRA, 2001, p.374). Tal texto foi transcrito com poucas alterações no Título 68 do Livro Primeiro das Ordenações Filipinas (1603). Trata-se, quando pouco, de mais de três séculos de vigência ininterrupta no Brasil, se consideramos que tais parágrafos foram

nenhuma cousa me agradou mais propria, do que a Ordenaçaõ do Reyno, edificios, e servidoens, he mais composta e introduzida na nossa Corte; e todo aquelle, que julgar, e edificar na forma, que ella aponta, naõ tema, que se engane; mas sim edifica muy seguro, livre de encargos, pois he Ley do Reyno; e a melhor ley he sabella observar”. Consultamos a terceira e a quarta edições deste valioso manual, respectivamente de 1757 e 1826 – cuja estrutura e teor dos textos correspondiam ao que aqui transcrevemos. Segundo Inocêncio Silva (1858, t.VI, p.400), as duas primeiras edições são de 1739 e 1748.

  1. As Ordenações, no L.I, Tit.67 estabelecem dois almotacés por Concelho:

    1. E os Almotacés se hão de fazer no começo do ano por esta maneira. No primeiro mês hão de ser Almotacés os Juízes do ano passado; o segundo dois Vereadores mais antigos; e o terceiro um Vereador e o Procurador. E no lugar, onde houver quatro Vereadores, servirão no 3º mês os outros dois Vereadores, e no 4º mês servirá o Procurador com outra pessoa, que será eleita.

    2. E para os outros meses, os Oficiais do Concelho com o Alcaide-Mor, onde por Foral, ou privilégio ele há de ser presente ao fazer dos Almotacés, tomando a todos primeiro juramento de fazerem os que para isso mais idôneos forem, elegerão às mais vozes noves pares de homens bons dos melhores, que houver no Concelho, que esse ano não forem Oficiais dele, que sejam pertencentes para o ser.[…]

  2. A definição completa de Rafael Bluteau (início do século 18) é: ALMOTACEL : Derivase do artigo Arabico, Al; & Musahocin, que val o mesmo, que moderador dos preços em cousas de comer. E Almotacel, geralmente fallando, he o fiel dos pesos, & medidas dos mantimentos da cidade. Responde ao que os Romanos chamavaõ Aedilis, is. Masc. Erant, & alij Aediles,(diz o Jurisconsulto Pomponio) frumento praeerant; his cura ponderum, nequa fraus fieret, & mensurarum commissa erat. Porem como a palavra Aedilis, he geral; he preciso buscar outra, que especifique as particularidade do officio de almotacel, como v. g. Curator, oris. Masc. § Almotacel da limpeza. Curator urbanae, ou urbicae munditiae. § Almotacel da fruta. Curator fructuum venalium. O que ja tem sido almotacel Aedilitius, ij. Masc. Cic. Cousa concernente ao officio de almotacel. Aedilitius, a, um. Cic. O officio de almotacel. Aedilitas, atis. Fem. Cic. 1. Officior. § Almotacel mor. Aedilis maximus. A obrigaçaõ do officio de Almotacel mor, he prover o lugar, aonde estiver a corte, de todos os mantimentos necessarios; tocalhe mandar limpar as ruas, refazer os caminhos, pontes, & calçadas, & o mais declarado em seu regimento, que tem na ordenaçaõ liv. 1. tit. 18 [sic]. Anda na familia dos Farias. § Na Cidade de Athenas, Agoranemus era o mesmo, que para os Romanos Aedilis; e he palavra composta do grego Agorà, isto he, Mercado, e do verbo Nomo, que quer dizer Distribuo. Agoranomus, diz Mathias Martinio, Magistratus, qui foro rerum venalium praeest, Annonae praefectus. Usa Plauto deste vocabulo nas suas Comedias, e particularmente na que tem por titulo Captaivai. § Euge editiones aeditias hic quidem habet, § Mirtumque adeò est, ni hunc fecêre sibi§ Aetoli Agoranomum.

entre nós derrogados pelo Regimento das Câmaras Municipais, de 1º de outubro de 1828

– que restituiu ao município a competência legislativa naquele campo –, e pelo decreto de 26 de agosto de 1830 – que extinguiu o cargo de “Juiz Almotacé”. Ainda além dessa data, na ausência ou na ineficiência da normas locais nesse sentido, “vigia na legislação ordenadora das povoações brasileiras a legislação portuguesa, coordenada e atualizada em sucessivas edições das Ordenações Filipinas”(ANDRADE, 1966, p.162) até a criação do Código Civil de 1916. Fato atestado pela reedição em nosso país de tratados sobre o assunto baseados nas Ordenações e no Direito Romano até o início do século 20 – como

o já mencionado Manual do edificante de Antonio Ribeiro de Moura (até 1913).9

Nos termos das Ordenações, no que concerne a Edifícios e servidões, os almotacés

conhecerão das demandas, que se fizerem sobre o fazer, ou não fazer de paredes de casas, de quintais, portas, janelas, frestas e eirados, ou tomar, ou não tomar de águas de casas, ou sobre meter traves, ou qualquer outra madeira nas paredes, ou sobre estercos e imundícias, ou águas, que se lançam, como não devem, e sobre canos e enxurros, e sobre fazer de calçadas e ruas.(PORTUGAL, Ordenações Filipinas, L.I, tit.68, §22)10

Os parágrafos seguintes do Título 68 abordam diretamente os cinco grandes temas aqui enunciados: aberturas – privacidade, vista, iluminação ; construção sobre a rua; paredes entre vizinhos; águas pluviais; partilha de casas.

Cada tema, ou conjunto de direitos, opera aqui segundo a lógica da servidão, que Antônio Ribeiro de Moura (1858, §15) definiu como:

a faculdade concedida ao edificante, aos proprietarios de terras e de casas e aos moradores destas, e por utilidade publica tambem ao governo do Estado, para servirem-se ou obrigarem aos heréos e vizinhos a cederem-lhes, que se sirvão de partes de seus terrenos e predios, ou de certas commodidades das casas, de que tem necessidade os ditos, edificantes, proprietarios e moradores para poder levantar o edificio da casa, utilisarem e desfructarem os interesses e commodos da sua propriedade e da habitação; daqui vem que o edificante, proprietario ou morador que obtém a servidão chama-se – senhor dominante –, e o vizinho, heréo, ou qualquer outro que a sofre chama-se – dono serviente –: também se costuma chamar o predio do senhor dominante – predio dominante – e o do dono serviente

– predio serviente. Comprehende ainda a palavra servidão a faculdade de practicar o morador de uma casa certas acções com o fim de gozar dos commodos da habitação com o incommodo mesmo do vizinho.

A realização de aberturas em paredes – “portas, janelas, frestas e eirados” – é

  1. Em Portugal foi editado o tratado o tratado de Casas de Manoel de A. e Sousa de Lobão como literatura corrente até 1915.

  2. Os excertos do Código Filipino aqui transcritos provêm da edição de 1957, organizada por Fernando H. Mendes de Almeida. De modo a simplificar a referenciação e evitar uma notação anacrônica, mencionaremos das Ordenações aqui apenas pelo Livro, Título e parágrafo.

regulamentada por nove parágrafos. É também o assunto mais debatido entre os tratadistas. As discussões de fundo efetivamente presentes na legislação do reino sobre vãos em paredes são principalmente os direitos a iluminação e a privacidade,11 tratados como “servidões” a serem constituídas entre vizinhos ou entre particulares e o poder público:

Qualquer pessoa, que tiver casas pode nelas fazer eirado com peitoril, janelas, frestas e portais, quando lhe aprouver, e alçar-se quando quiser, e tolher o lume a qualquer outro vizinho dante si. Porém não poderá fazer frestas, nem janelas, nem eirado com peitoril à parede, sobre casa, ou quintal alheio, porque o descubra, que esteja junto à parede, onde quer que a janela, fresta ou eirado, sem cousa alguma, se meter em meio. Mas bem poderá fazer eirado com parede tão alta, que se não possa encostar sobre ela, para ver a casa, ou quintal de outrem. E assim poderá fazer na sua parede, sobre o telhado, ou quintal de outrem, seteira pela qual somente possa ter claridade. E quando o outro, sobre cujo quintal, ou telhado se faz, se quiser levantar, poder-lhe-á fazer tapar, posto que se seja passado ano e dia, ou outro qualquer mais tempo, que estiver feita.(L.I, tit.68, § 24)

Como se vê, constitui-se a servidão negativa de “não impedimento de iluminação natural”12 após um ano e um dia, restringindo assim o direito de edificar do vizinho, que só poderia ter “nunciado” a obra ao almotacé – caso as aberturas o houvessem devassado a privacidade. A partir da constituição da servidão, o direito de construir do vizinho, agora serviente, é alterado:

E se alguém tiver janela sobre quintal, ou campo de outrem, e o senhorio do quintal, ou campo quiser fazer casa, não poderá fazer parede tão alta, que tape a janela, que antes aí era feita, se passar de ano e dia, que era feita; porém, se o que quiser fazer a dita casa, quiser deixar azinhaga de largura de uma vara e quarta e medir,13 bem poderá fazer a casa, e alçar-se quando quiser.(L.I, tit.68 § 33)

Tal lógica de preservação da privacidade também afeta vizinhos opostos pela via pública:

se alguma pessoa tiver casa de uma parte da rua, e outro seu vizinho quiser fazer da outra partes, ou se já dantes a casa era feita, e quer nela abrir portal de novo, ou quer aí fazer janela ou fresta, não a poderá abrir, nem fazer direito do portal, ou da janela, ou fresta de outro seu vizinho, que mora de outra parte da rua, salvo se

  1. “Direito de iluminação” é a tradução de Andrade (1966, p.63-64) para a servidão Luminis recipiendi: “o direito que tem o proprietario, o usoario, inquilino ou morador de uma casa, de receber pelas portas e janellas a luz do dia”, (MOURA, 1858, p. 25). Não encontrei correspondente nominal no Direito Romano para a servidão que assegura a privacidade do vizinho, muito embora tenha sido ela discutida por Ferreira (citado por Lobão nos §§ 73 e 74) , Lobão (1915, §§ 72-80) e por Moura (1858, §§ 89-98). Lobão (1915, §76) cita um comentário de Pegas para justificar a prevalência do preceito da privacidade nos casos tratados pelas Ordenações: “molestum est, ut secreta domus alteri pateant, et ut dixit Xenocrates, nihil referre oculos ne, an pedes in alienum immittas”.

  2. Tradução de Andrade ((1966, p.63-64)) da servidão de Direito Romano ne Luminibus officiatur,((LOBÃO, 1915, p. 63)) correspondente negativa da servidão positiva Luminis recipiendi.

  3. Aproximadamente 1,4m, já que 1 vara equivale a 1,1m.

dantes aí houve já o dito portal, janela ou fresta, onde a ora quer abrir, porque então a poderão fazer no próprio modo e maneira, que dantes estava. Porém desviado do outro o poderá fazer.(L.I, tit.68, § 29)

No caso de vias estreitas, as Ordenações são mais restritivas, ao estabelecer que “em beco não poderá alguém fazer janela, nem portal, sem licença dos almotacés e Oficiais da Câmara, a qual lhe darão, se virem que tem necessidade, e não faz muito prejuízo”.(L.I, tit.68, § 26) Mas também nesse caso prevalece o direito adquirido, já que:

quando alguma pessoa tiver janela aberta em sua parede sobre azinhaga tão estreita que não passe de quatro palmos,14 na qual não haja portas, somente sirva de por ela correrem as águas dos telhados, não se poderá outro vizinho alçar tanto, que lhe tolha o lume da dita janela, mas poder-se-á alçar até direito dela, em modo que lhe não tolha o lume, mais não.(L.I, tit.68, § 27)

Há uma curiosa restrição, consideradas suas consequências para a estrutura da edificação, relativa a fracionamento horizontal de imóveis de mais de um pavimento:

se uma casa for de dois senhorios, de maneira que de um deles seja o sótão, e de outro o sobrado, não poderá aquele cujo for o sobrado, fazer janela sobre o portal daquele, cujo for o sótão, ou lógea, nem um outro edifício algum.15 (L.I, titl.68, § 34)

Constituídas as servidões, elas não se extinguem nem mesmo em caso de ruína da casa. É disposição que não apenas consta no já citado parágrafo 29 (“no próprio modo e maneira, que dantes estava”), como na via inversa,

se alguma pessoa tiver janela, ou beiras de telhado em alguma parede, que seja sobre casa de outrem, e desfizer a parede ou lhe cair e a quiser refazer, ou fazer de novo, não poderá fazer mais janelas, nem maiores, nem beiras, nem em outro lugar, senão como dantes tinha.(L.I, tit.68, § 28)

A jurisprudência nesse sentido é bastante abstrata, num tempo em que eram escassos os meios de registro da forma original dos edifícios. Lobão (1915, § 250) esclarece que:

As servidões activas, competentes a qualquer edificio, se conservam habitualmente, ainda que o edificio dominante padeça total demolição, conservando-se pela sua área. Por mais que um edificio esteja demolido por muitos annos; elle conserva o direito das suas antigas, e activas servidões urbanas, ainda que sem uso; enquanto o senhor do predio serviente não obra algum facto directamente opposto a essa antiga servidão. […] De outro modo o lapso do

  1. Aproximadamente 90cm, já que 1 palmo = 22cm.

  2. Nem Lobão nem Moura comentam a a servidão a que se referiria tal artigo. Pegas (Tom.6, p.140) menciona jurisprudência permitindo a edificação em caso de não impedir a iluminação natural (ne luminibus officiatur), e as usuais permissões desta servidão. Teria tal regra sido de pouco uso? Talvez o usual fosse a divisão vertical dos imóveis, conforme veremos adiante.

tempo, em que o edificio esteve demolido, não adquire ao visinho a liberdade das servidões que soffria na existencia desse edificio.

A norma privilegia, portanto, aqueles que primeiro edificaram em determinada região, e constituíram servidões à sua volta. Além do direito de edificar a parede, diretamente subordinado à já vista servidão negativa de “não impedimento de iluminação natural” do vizinho, as ordenações tratam do direito de afixar componentes construtivos (servidão Tignis immittendi) ou de apoiá-los (servidão Oneris ferendi) na parede de divisa entre duas casas.16 A questão se inicia pela propriedade:

ninguém poderá meter trave em parede, em que não tiver parte; porém se quiser pagar metade do que a dita parede custou ao senhor dela, poderá nela madeirar, sendo a parede para isso.(L.I, tit.68, § 35)

E se em alguma parte dentre dois vizinhos estiverem metidas traves, e não constar que este, que as tais traves têm medidas, tenha parte na dita parede, e o outro vizinho tiver madeirado na mesma parede mais alto que o seu madeiramento, este que mais baixo tiver madeirado, poderá meter quantas outras traves quiser, donde tiver metidas as primeiras, para baixo. E daí para cima não poderá meter outras mais traves, nem madeirar, salvo se comprar ao dito vizinho, que está madeirado mais alto, metade da dita parede, ou se concertar com ele.(L.I, tit.68, § 36)

Vimos acima ser possível a existência de azinhaga que “somente sirva de por ela correrem as águas dos telhados”(L.I, tit.68, § 27). Trata-se, de fato, da servidão de escoamento de águas pluviais (stillicidium avertendi), também contemplada pelas Ordenações, no que concerne à ereção de paredes:

se alguém tiver casa, que lance água de seu telhado sobre a casa de seu vizinho, o qual vizinho quiser fazer parede no seu, pode-lhe quebrar as beiras e cimalhas e encanamentos, e alça-se quanto quiser. E se o vizinho aí tiver fresta, ou janela, quando se assim alçar, tomar-lhe-á as águas e dará serventia para elas em tal maneira, que o dito seu vizinho não receba dano.(L.I, tit.68, § 38)

E tendo alguém parede de permeio com outro seu vizinho e a casa de um for mais

  1. A servidão de afixar componentes construtivos, ou Tigni immittendi é “o direito que tem o edificante para apoiar uma viga, trave, ou qualquer outra cousa, e de a introduzir na parede ou muro do vizinho, que é obrigado de o soffrer, in: (MOURA, 1858, p. 23) Já a servidão de apoiar componentes construtivos, ou Oneris ferendi,”é a que dá o direito a alguém de fazer sustentar o peso de sua casa sobre a casa do vizinho; […] e este é obrigado de o sofrer, in: (MOURA, 1858, p. 24) Moura explica ainda as duas diferenças entre as servidões Tigni immittendi e Oneris ferendi: “1ª, […] na servidão Tigni immittendi não pertence ao proprietario do fundo serviente, mas ao dominante, fazer as despezas da reparação do muro ou parede quando precisa de reforma; o que é pelo contrario na Oneris ferendi, ao dono do fundo serviente é que incumbe fazer as ditas despezas de reparação, afim de poder o senhor dominante continuar a gozar a utilidade da servidão: a 2ª differença é, que nas mais servidões, inclusive a Tigni immittendi, compete ao senhor dominante acção judicial não só contra o serviente, mas ainda contra qualquer terceiro que a impede; na Oneris ferendi só tem lugar a acção contra o serviente, que impede ou perturba o uso da servidão.”(MOURA, 1858, p. 27)

alta, que a do outro, e tiver a cale, por que lança a água do seu telhado, na dita parede, e o que tem a casa mais baixa, se quiser levantar pela parede mais alto que o outro, poder-se-á alçar por toda a parede, em tal maneira, que lhe deixe tamanho lugar de parede, por que colha a água do telhado daquele, que antes aí tinha a cale, poque recebia a água em modo que lhe não venha por isso dano.(L.I, tit.68, § 39)

A rua era o local preferencial de lançamento das águas pluviais, e constituía-se servidão a adução a ela por meio de afastamento entre edificações ou por meio de tubulação:

querendo algum lançar todas as águas de sua casa a um lugar da rua, pode-o fazer por cale, por onde as águas venham pela sua parede, Porém não poderá fazer a cale tão longa, que saia fora à rua porque faça dano a seu vizinho, ou aos que passarem pela rua E se alguém tiver já feita cale longa, não a poderá mudar para por aí outro maior, nem de outra feição da que era dantes em aquele mesmo lugar. Porém a tal cale assim longa não se poderá prescrever por tempo algum, se fizer dano ao vizinho, ou aos que passarem pela rua.(L.I, tit.68, § 40)

A própria colocação do problema de uso da alvenaria vizinha parte de um pressuposto de ocupação densa, imediatamente contígua, talvez proveniente dos processos de partilha de imóveis, também contemplada pela norma:

E se dois tiverem uma casa comum, e um deles quiser partir, e outro não, partir- se-á, posto que nenhum deles não queira. E Ambos darão o lugar na casa, para se fazer a parede de repartimentos, e o alicerce dela. E se entre eles for diferença, que um queira que se faça de taboado, e outro de taipa ou de pedra, os Almotacés vejam a casa e lugar; e segundo o que acharem, que se deve fazer mais proveitosamente para as partes, assim o mandem fazer. Porém, se ambos não forem concordes de se fazer a dita parede às suas custas, aquele, que requerer a partilha, a faça à sua custa, e outro não se poderá nela madeirar nem lograr dela em cousa alguma, senão quando lhe pagar metade do que custou.(L.I, tit.68, § 37)

O direito a livre circulação na via pública também é garantido, assim como o livre acesso a propriedades cuja entrada está bloqueada por particulares:

E bem assim não poderá pessoa alguma por escada na rua direito do portal de seu vizinho, porque lhe impeça a entrada de seu portal.(L.I, tit.68, § 30)

E não se poderá fazer da rua escada, nem ramada, nem alpendre, nem outra cousa alguma, que faça impedimento à serventia da dita rua. E se o fizerem, não lhes será consentido. E os Almotacés lho mandarão derrubar.(L.I, tit.68, § 31)

Tais servidões, porém, não impediam a construção de balcões e passadiços sobre a rua, mesmo que pendente da anuência do Concelho, já que se tratava de uma concessão, e não de área construída adicional do edifício:

Outrossim se alguma pessoa tiver duas casas, que sejam uma de uma parte, e outra de parte da rua, e aí tiver lançadas traves por cima da dita rua de uma parte

para outra, e ativer aí feito balcão com sobrado, ou abóbada, e depois acontecer, que uma casa da parte da rua venha ser de um senhorio, e outra parte de outro senhorio, com o balcão, ou abóbada, ou metade dela, e ambos, ou cada um deles se quiser alçar, podê-lo-ão fazer. E um e outro, e cada um por si poderão fazer janelas e frestas sobre aquele balcão, porquanto posto que o tal balcão, ou abóbada esteja nas paredes, sempre assim o debaixo do balcão, como o ar de cima, fica do Concelho. E portanto cada vez que o Concelho quiser (sobrevindo causa para isso) o pode fazer derrubar; porque por tempo algum nunca poderá adquirir posse em o dito balcão o senhorio da dita casa, ou balcão.(L.I, tit.68, § 32)

Há, evidentemente, diversos outros princípios e vasta jurisprudência sobre tal tema – sobre o qual foram escritos, dentre outros, alguns dos tratados aqui mencionados.17 É justamente a riqueza desta discussão que atesta sua importância enquanto vigeram em nosso território as Ordenações do Reino.18 Elas eram livros impressos que circulavam e eram lidos em nosso território como instrumentos de autoridade. A longa duração de sua vigência em títulos como o que regula a Almotaçaria é tanto causa como consequência de tal poder difusor. Não estaria nessa permanência e nessa onipresença, uma das possíveis chaves para se interpretar o sentido de unidade visível nas povoações coloniais hoje preservadas? Talvez, tanto quanto a tradição construtiva ou o traçado – que bem se sabe não foi constante em nosso território e tampouco em todo período colonial –, tais normas tenham contribuído para a feição do casario antigo, surpreendentemente assemelhado em

lugares díspares como Salvador e Ouro Preto. Não seriam as posturas urbanas a própria trama fina cotidiana cujos fios conectam nossa malha urbana numa dinâmica viva, tecida dia a dia na fronteira entre o espaço privado e o espaço público?

  1. Francisco de Paula Dias Andrade (1966, p.63-64), apoiado em Manoel Álvares Ferreira, enumera nove servidões negativas e quatro positivas: Positivas: " 1ª - o escoamento de águas pluviais (stillicidium avertendi); 2ª - passagens e acessos (itineris, vel aditus); 3ª - apoio e transporte de cargas (oneris ferendi); 4ª - introdução e lançamento de materiais de construção (tigni immittendi); 5ª - remoção de lixo, de dejetos (projiciendi); 6ª - abrigo (protegendi); 7ª - vista, panorama (prospectus); 8ª - luz, iluminação (luminum); 9ª - elevação em maior altura (altius tollendi). Negativas: " 1ª - não elevação a alturas superiores (altius non tollendi); 2ª - não impedimento de iluminação natural (ne luminibus officiatur); 3ª - não impedimento de vista ou panorama (ne prospectui officiatur); 4ª - não impedimento do escoamento de águas pluviais (stillicidium non avertendi*)”. Se vimos aqui algumas dessas servidões, outras importantes ficaram apenas subentendidas (como a altius non tollendi corrente da servidão prospectus); outras ainda não puderam ser mencionadas, como a servidão projiciendi; e outras, por fim, constam na lei (como a preservação da privacidade) sem que tenham sido consideradas servidões no Direito Romano.

  2. A pesquisa de Magnus R. de Mello Pereira (2001, p.370), por exemplo, confirma a importância do papel do almotacé no século 18, relacionando diversas correições documentadas nos Livros de Termos de Audiências e Aferições dos Almotacés de Curitiba: “Curitiba não era nem uma cidade de porte médio para o padrão da época, muito menos um dos grandes pólos de comércio transatlântico, como o Rio de Janeiro ou Salvador, onde as questões do mercado, do saneamento ou do construtivo adquiriram uma complexidade muito maior. Mesmo assim, os almotacés curitibanos eram bastante atuantes nessas três esferas de competência. Isto não pode ser considerado como algo excepcional. Curitiba é exemplificativa das muitas pequenas vilas que se espalhavam pelo interior do território da América portuguesa”.

A verificação de como tal dinâmica efetivamente ocorreu é tarefa por ser feita. Depende da apuração das correições dos almotacés nos arquivos coloniais e imperiais de nossas cidades. Algumas forças, porém, parecem delinear-se: a tendência para um esgarçamento inicial do tecido urbano, motivado pela tendência natural dos habitantes de evitarem ter seus direitos de edificar restritos pelas servidões constituídas dos vizinhos; a possibilidade de fracionamento vertical indeterminado dos lotes, ensejando fachadas cada vez menores em ocupações mais antigas; por isso mesmo, a propensão a, adensada a ocupação, evitarem-se afastamentos laterais, para melhor aproveitamento das servidões de madeiramento; a preferência pelos telhados em duas águas, de modo a evitar infiltrações em tais paredes, quando desniveladas, preservada a servidão de escoamento de águas pluviais. Cada servidão, cada princípio de doutrina, abre um amplo leque de possibilidades.

Como se vê, tal unidade não se encontra em amplas disposições sobre a organização urbana ou seu traçado – como o faziam as Leyes de Indias nas colônias espanholas, determinando, por exemplo, a configuração da Plaza Mayor, e o traçado em grelha ortogonal. Se, como afirma Walter Rossa (2000, p.10), constituiu-se uma “teoria e prática que hoje designamos Escola Portuguesa de Urbanismo”, nela as Ordenações do Reino e outras normas de semelhante duração e penetração podem ter nelas desempenhado um importante papel, consubstanciado como um “programa formal da cidade – uma arquitectura de tempo urbano e humano – e não como uma proposta urbanística formal. Claro contributo da cultura dita difusa para a presumidamente erudita”(ROSSA, 2000, p.18). As normas da Almotaçaria eram afinal as “regras do jogo” cotidiano entre cidadãos e o poder público. As mesmas regras, em tempos e lugares diferentes de nosso território talvez tenham produzido resultados que guardam algo em comum.

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