Resumo

Entre ao anos de 1925 e 1962 o amálgama existente entre a atuação dos profissionais arquitetos e a criação das escolas autônomas de Arquitetura foram fundamentais para a introdução do ensino de urbanismo no Brasil. O objetivo deste artigo é relacionar as transformações das competências e do discurso profissional com o início do ensino de urbanismo no Brasil entre os anos de 1925 – data da introdução da disciplina no curso de Engenheiro-Arquiteto da Escola Politécnica de São Paulo – e 1962, ano em que se consolidou o conceito do ensino inter-relacionado da arquitetura e do urbanismo. Para tal, foram utilizados os textos produzidos pelos arquitetos em atuação na época, as leis e regulamentos das escolas de arquitetura e outros documentos. Em três escolas – na Escola Politécnica de São Paulo, na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) – buscou-se relacionar as mudanças do discurso profissional com as alterações no ensino de arquitetura, especialmente quanto à disciplina de urbanismo. O discurso difundido nestes ambientes colaborou para a afirmação do planejamento urbano como atividade profissional exclusiva do “arquiteto modernista” e sua condição de ensino restrita ao curso de arquitetura.

Palavras-chave: ensino de urbanismo, arquitetura e urbanismo, arquiteto e urbanista

Abstract

The fusion between the consolidation of architectural profession and the creation of Architectural autonomous schools were essential to introduce an urban planning education in Brazil. This article has the objective to relate the transformations of skills and the professional discourse with the introduction of urban planning teaching in Brazil from 1925 – when Urbanism had been introduced in the Engineer-Architect course at Polytechnic School of São Paulo – and 1962, the year in which the relation among architecture and urbanism teaching was consolidated. According to documents, texts written by the architects at that time and the laws that governed the architectural education we pursued to relate the changes in the professional discourse and the modifications in architectural education, especially in the urban planning discipline. For these reasons, in three different schools – at Polytechnic School of São Paulo, National School of Fine Arts and at the Faculty of Architecture and Urbanism of the University of São Paulo – the professional discourse was fundamental for the inclusion of urban planning teaching. As a result, the urbanism was claimed as a reserved practice of the “modern architect”.

Keywords: urban planning education, architecture and urbanism, architect and urbanist

Introdução

No Brasil de hoje o ensino de Urbanismo é considerado como indissociável do ensino de Arquitetura. No entanto esta realidade não era vigente na época em que se conformou o ensino de Arquitetura no Brasil, originado entre duas vertentes – a do

ensino técnico nas Escolas Politécnicas e o ensino artístico nas Escolas de Belas Artes. Nesse contexto, o objetivo deste artigo é relacionar as transformações das competências, do discurso profissional e do ensino de urbanismo no Brasil entre os anos de 1925 – data da introdução da disciplina no curso de Engenheiro-Arquiteto da Escola Politécnica de São Paulo – a 1962, quando se consolidou o conceito do ensino inter-relacionado da arquitetura e do urbanismo. Parte-se do pressuposto que a transformação do discurso profissional neste período empreendeu mudanças no ensino de arquitetura, introduzindo a disciplina de urbanismo em seu currículo.

Para tanto optou-se em dividir o período estudado em três tempos. O primeiro deles, entre os anos de 1925 e 1954, vai da inclusão da disciplina de Urbanismo no currículo do curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica de São Paulo à extinção deste curso. O segundo período trata da inserção do urbanismo no ensino de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) no Rio de Janeiro até a criação da Faculdade Nacional de Arquitetura (FNA) em 1945, com a proposta da criação de um curso especifico de pós-graduação em Urbanismo, com dois anos de duração. O terceiro período se inicia com a criação da FAUUSP e é finalizado com a Reforma de 1962. O que também se pode perceber é que permeando as mudanças no ensino e formação dos arquitetos estava a luta empreendida pelos profissionais da área em busca do fortalecimento e consolidação de sua profissão, afirmando as esferas de sua competência profissional. No discurso daqueles profissionais estava presente a necessidade de adoção de uma outra linguagem moderna e que evidenciasse a importância do profissional arquiteto na produção do espaço urbano.

O ensino de urbanismo na Escola Politécnica de São Paulo – 1925 - 1954

O curso de engenheiro-arquiteto se iniciou na cidade de São Paulo em 1894, na Escola Politécnica de São Paulo. Inicialmente o que diferia os cursos de engenharia civil e o de engenheiro-arquiteto era a cadeira de “Composição” (SANTOS, 1985). A introdução da disciplina de Urbanismo se deu somente em 1925. Na ocasião dois professores da Escola Politécnica de São Paulo atuavam profissionalmente, propondo intervenções urbanas para a cidade – Prestes Maia através do seu Plano de Avenidas e Luiz de Anhaia Mello pelos cursos e palestras promovidas sobre os serviços públicos. Para Saia (in XAVIER, 2003):

Esta ação de presença de dois arquitetos em setores antes exclusivamente tratados pela técnica “infalível” dos engenheiros, e vedados, portanto, aos arquitetos, aos quais o consenso geral apenas cometia a tarefa de embonitar as construções, justamente no momento em que surgiam os primeiros sinais da próxima transformação da capital regional em unidade metropolitana, prenuncia uma situação nova em São Paulo (SAIA in XAVIER, 2003).

Nesta circunstância, Saia (in XAVIER) considerou a atuação de Prestes Maia e Anhaia Mello como as “primeiras manifestações da arquitetura paulista, no sentido de expressões independentes do paternalismo da engenharia”. O termo “independente” utilizado por Saia se alinhava à condição da atuação profissional dos arquitetos por ele descrita:

Os arquitetos eram em número reduzido e viviam subjugados pelas firmas construtoras; os cursos de arquitetura então

inexistentes, na Escola Politécnica e no Mackenzie, estavam anquilosados numa concepção tradicional obsoleta e se arrastavam, como um luxo necessário, sob as vistas paternais da engenharia civil onipresente e onisciente (SAIA in XAVIER, 2003).

O ensino do Urbanismo permaneceu como parte do curso de engenheiro-arquiteto e foi ministrado, entre os anos de 1936 a 1954 pelo professor Luiz de Anhaia Mello. Em 1936 o urbanismo era parte da cadeira no 18 – “Composição de Arquitetura e Urbanismo”. Esta mesma cadeira mudou de número em 1941, passando a ser a cadeira no 20. Em 1943 a disciplina permaneceu na cadeira n o 20, mas mudou de nome, quando passou a se chamar “Estética, Composição Geral e Urbanismo”. Isto perdurou até 1954, quando o curso de Engenheiro-Arquiteto da Escola Politécnica de São Paulo foi extinto1. Na ocasião, os conteúdos presentes na disciplina eram: urbanismo, sociologia construtora: ciência, arte e organização social; realizações das fases legal, prática e de desenho; métodos de correção e prevenção; esforço educacional; recentes avanços do urbanismo. O tema final da disciplina era a “Dinâmica do Plano” com conceitos de circulação, trânsito e trânsito rápido, transportes, serviços públicos e problemas econômicos sociais dos serviços de utilidade pública (ARQUIVO EPUSP: Programas das Cadeiras no 18, 1936; no 20, 1941; no 20, 1942; no 20, 1943; no 20, 1953).

Entre 1936 e 1954 o cenário externo à Escola Politécnica de São Paulo foi bastante alterado. Segundo Saia (in XAVIER, 2003) tudo o que foi realizado pelos arquitetos nas décadas de 1930 e 1940 tinha “uma ponta de pioneirismo”. Foi um tempo no qual os arquitetos conviveram com artistas e intelectuais. Para Saia, “a frequentação dos artistas pelos arquitetos e dos escritórios dos arquitetos pelos artistas se tornou um fato corriqueiro e, por isso mesmo, pouco percebido, em que pese a enorme importância de tal acontecimento”. Em 1943, estes encontros passaram a se dar na sede do IAB/SP, através do qual foi estabelecida uma forte unidade da categoria dos arquitetos. Eram interesses do Instituto, através da reunião dos profissionais da arquitetura aumentar a influência do arquiteto na solução de problemas sociais e econômicos, promover a integração do trabalho do arquiteto com outros profissionais e, principalmente trabalhar para que os arquitetos pudessem executar projetos em larga escala – os projetos urbanos. Para o IAB/SP, estes eram impossibilitados de produzi-los pela falta de escolas especializadas o que foi conquistado, em 1945 (IAB, 1943). Quanto ao exercício do urbanismo, sobre a década de 1940, Saia (in XAVIER, 2003) comentou:

O urbanismo, tratado nas escolas com um sentido ilustrativo e teórico, não se apresentava capaz de municiar os arquitetos neste novo campo de trabalho. Os profissionais que anteriormente tratavam do assunto o faziam numa forma não condizente com os novos termos da vida paulista (SAIA in XAVIER, 2003).

Naquele período o que se viu foi, no contexto da cidade de São Paulo, o ensino de urbanismo restrito ao mesmo currículo desde o ano de 1936. Através do IAB/SP os

1 O curso de Engenheiro-Arquiteto foi extinto em 1954, pois, em 1946 foi realizado um pedido à Congregação da Escola Politécnica de São Paulo para que o curso fosse transformado segundo o padrão da Lei no 7.918/45 da FNA (EPUSP: Arquivo Histórico da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo).

arquitetos passaram a se unir e repensar a sua atuação profissional, incorporando, cada vez mais, o urbanismo à prática profissional. A difusão de uma outra forma de trabalho influenciou o ensino das escolas de arquitetura e, especialmente, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo a partir de sua fundação, em 1948.

O ensino de urbanismo na Escola Nacional de Belas Artes e na Faculdade Nacional de Arquitetura – FNA – 1889 - 1945

O primeiro indício da inserção do Urbanismo na Escola Nacional de Belas Artes se deu em 1901, na “Reforma Epitácio Pessoa”, que incluiu a disciplina de “Higiene das Habitações” no currículo do curso especial de Arquitetura. Tal inserção remetia à preocupação com a crescente urbanização das cidades e a salubridade dos espaços. Foi somente em 1930, quando Lúcio Costa assumiu a direção da ENBA, que houve uma proposta de reforma do ensino que visava “aparelhar a escola de um ensino técnico-científico tanto quanto possível, perfeito e orientar o ensino artístico no sentido da perfeita harmonia com a construção” (COSTA in XAVIER, 2003). Esta, incluía a disciplina de “Urbanismo” no quinto ano do curso de arquitetura. Tal não se deu e a principal mudança no ensino de arquitetura no Rio de Janeiro se deu somente em 1945, com a criação da Faculdade Nacional de Arquitetura. Naquele ano foi apresentado um plano ao presidente Getúlio Vargas para que fossem criadas escolas autônomas de arquitetura “desligadas do ensino de engenharia e das belas artes”. Em

agosto do mesmo ano foi aprovada a Lei no 7.981 – Regulamento da Faculdade Nacional de Arquitetura que incluía, conforme a proposta de Lúcio Costa, a disciplina de “Urbanismo” no quinto ano do curso de arquitetura. Além disso, criava um curso de pós-graduação de dois anos em Urbanismo, direcionado a arquitetos e engenheiros (FNA, 1945). Na graduação, o conteúdo da disciplina de “Urbanismo” dizia respeito à evolução urbana, à composição das cidades, ao zoneamento, aos problemas de administração, à administração municipal, à florística brasileira e à composição de

parques e jardins.

O curso na pós-graduação era composto de dez disciplinas: “Teoria e Prática dos Planos das Cidades”, “Evolução Urbana”, “Urbanologia – Estatística – Documentação Urbanística”, “Técnica Sanitária Urbana – Serviços de Utilidade Pública:, “Arquitetura Paisagística”, “Organização Social da Cidades” e “Administração Municipal” (FNA, 1945). Seus conteúdos estavam em franca sintonia ao movimento moderno, o que pode ser mensurado a partir das ementas das disciplinas, evidenciando um outro olhar para a produção das cidades. Assim, nas disciplinas “Urbanologia – Estatística – Documentação Urbanística” e “Técnica Sanitária e Urbana – Serviços de Utilidade Pública” estudava-se dos fatores geográficos, topográficos, geológicos, fitológicos, meteorológicos, climatéricos e demográficos na formação das cidades aos resíduos urbanos, resíduos; poluição da atmosfera; serviços de água e esgoto; luz; força; gás e telefone; transporte urbano. Em “Teoria e Prática dos Planos de Cidades” via-se a cidade moderna; sistemas de transportes, vias públicas, parques, edificações e zoneamento; arte cívica; planos locais, regionais e nacionais; regulamento de construções; composições de cidades-jardins, cidades- satélites e de núcleos urbanos; tráfego subterrâneo; extensão remodelação e embelezamento das cidades; plano diretor; projeto completo de núcleos urbanos; descentralização urbana; proteção e remodelação das cidades contra as agressões aéreas; planejamento e legislação. A cadeira de “Organização Social das Cidades” continha estudos sobre núcleos residenciais e comerciais; bairros residenciais; habitações coletivas e individuais, creches e lactários; jardins de infância e escolas;

policlínicas, maternidades e hospitais; atividades culturais, religiosas, recreativas, filantrópicas e de assistência social. Em “Administração Municipal” realizavam-se estudos sobre a organização politico-administrativa da municipalidade (FNA, 1945).

Este modelo de ensino do urbanismo, como uma pós-graduação, não chegou a se efetivar. A FNA seguiu restringindo o urbanismo a uma única disciplina no último ano do curso de Arquitetura.

O ensino de urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – 1948 - 1962

A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP foi criada através da Lei no 104, em 1948, seguindo os moldes da Lei no 7.918/45 da FNA. Portanto, a disciplina de Urbanismo era presente no curso de arquitetura no último ano, assim como era no curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica de São Paulo. Da mesma forma, existia o curso de pós-graduação em urbanismo, com dois anos de duração. Naquele momento há de se lembrar a sua dependência da

Escola Politécnica, já que todas as decisões e mudanças que precisassem ocorrer na nova Faculdade deveriam passar pela aprovação da Congregação da Escola Politécnica. Isto perdurou até 1955, quando foi aprovado o regulamento da FAUUSP. Naquele ano, através da Lei nº 3.233/1955, criou-se o CPEU – Centro de Pesquisas e Estudos Urbanísticos.

A principal tarefa do CPEU era organizar a pesquisa e sistematizar as informações disponíveis para projetos urbanos (SAIA in XAVIER, 2003). Inicialmente, aquele centro foi visto pelo IAB/SP e pelos arquitetos em geral como um concorrente aos escritórios de arquitetura. No entanto, foi através dos convênios estabelecidos pelo CPEU com o governo do Estado de São Paulo que o urbanismo ganhou força dentro da FAUUSP, que até aquele momento não havia inaugurado o seu curso de pós- graduação. Saia (in XAVIER, 2003) destacou o papel dos alunos da FAUUSP que promoveram um curso complementar de Urbanismo e Planejamento e participaram de atividades extra-curriculares. Porém, ainda no ano de 1957, a disciplina de Urbanismo seguia sendo ministrada por Luiz de Anhaia Mello. A base desta era a mesma daquela por ele ministrada na Escola Politécnica de São Paulo. No ano de 1961 dois acontecimentos na FAUUSP refletiram no ensino de Urbanismo. O primeiro deles foi

a aprovação da Portaria no 09 que definia o ensino desta disciplina a partir do 4o ano. Além disso, com a aposentadoria de Luiz de Anhaia Mello, quem passou a ministrá-la

foi Lauro Bastos Birkholz, chefe do CPEU desde 1956.

Porém, foi somente com a reforma curricular, ocorrida em 1962, que o currículo da disciplina, sob a organização do professor Lauro Bastos Birkholz, passou a ser organizado em dois anos. A partir do quarto ano eram ministrados os conteúdos de “Planejamento”, “Administração Municipal” e “Documentação e Estatística”. O conteúdo de “Planejamento” era subdividido em a história das cidades, a cidade, o âmbito do planejamento, os sistemas principais de estruturação municipal e planejamento urbano. No subtema de “Administração Municipal” era discutida a propriedade do solo urbano. O subtema de “Documentação e Estatística” tratava do ensino dos aspectos físicos da região de projeto; coleta e sistematização de dados. No último ano, a disciplina estava dividida em “Planejamento”, “Administração e Legislação”, “Estatística e Documentação”. No tópico de “Planejamento” uma nova temática se destaca – a de “Metodologia do Processo de Planejamento” que tinha como fases principais a propaganda e organização comunitária, primeiro contato e

pesquisa preliminar; plano preliminar; pesquisa, processo estatístico e sua interpretação; plano diretor ou regulador; implantação dos planos e plano executivo (FAUUSP, 1962).

Além de constar em dois anos do novo currículo proposto com a Reforma de 1962, foi a partir de então que o conceito do ensino inter-relacionado da arquitetura e do urbanismo foi implantado. Isto se deu com a conformação do ensino de arquitetura através do atelier de projetos. Neste modelo, todas as disciplinas convergiriam a ele, incluindo a de Urbanismo (MILLAN, 1962). Não se fariam mais exercícios de projeto sem considerar suas condicionantes urbanas.

O discurso e a atuação dos profissionais arquitetos

Em 1933, enquanto o ensino de Arquitetura se dava em Escolas Politécnicas ou de Belas Artes, foi promulgada a Lei no 23.569 – Lei de regulamentação da profissão do engenheiro civil, do engenheiro-arquiteto e do agrimensor. Eram competências comuns dos engenheiros-civis e engenheiros-arquitetos o estudo, o projeto, a direção, fiscalização e construção de edifícios, com todas as suas obras complementares. Além

das atividades relacionadas ao edifício eram compartilhadas as atividades de projeto, direção e fiscalização dos serviços de urbanismo. As únicas atribuições exclusivas dos engenheiros-arquitetos estavam relacionadas à obras de caráter artístico e monumental, de paisagismo e de decoração arquitetônica (BRASIL, 1933). Sobre este regulamento, Luiz de Anhaia Mello comentou:

Basta examinar o capitulo quatro, que dispõe sobre a especialização do profissional para se concluir que a zona de atuação privativa do arquiteto não tem fronteira definida, e que matéria de sua exclusiva competência foi atribuída a outros profissionais ... Sendo atribuição do engenheiro-civil “construir edifícios com todas suas obras complementares” onde está a linha de fronteira do minguado espaço vital do arquiteto, se por ventura existe ela nas expressões do decreto? (ESCOLA POLITÉCNICA, 1946).

Para João Batista Vilanova Artigas, engenheiro-arquiteto formado pela Escola Politécnica de São Paulo e professor da mesma escola, este regulamento não havia “pensado no engenheiro-arquiteto” e sim no engenheiro civil, o que fora motivado pela inexistência de escolas de Arquitetura e pela “humilhação” que era dizer-se arquiteto (SANTOS, 1980?). A atuação profissional do arquiteto passou a se modificar a partir do exemplo de Rino Levi, o primeiro arquiteto que dedicou-se unicamente a atividade de projeto (FICHER, 1989). Rino Levi levou este exemplo de atuação ao IAB/SP, participando das diretorias do Instituto entre os anos de 1950 a 1955, como presidente entre os anos de 1954 e 1955 (Arquivo IAB/SP). Segundo ele, em declaração de 1958, sua dedicação exclusiva aos projetos estava diretamente

ligada a “escolha do estilo” (BEM ESTAR no 04, 1958). Ficher (1989) relata que estavam:

Imbricadas, portanto, uma estratégia de prestigio profissional, uma mudança de orientação estética (naquela conjuntura em relação ao modernismo) e uma reforma do ensino institucional que permitisse caracterizar o novo profissional arquiteto (FICHER, 1989).

A insatisfação dos arquitetos com relação a sua atuação profissional ganhou fôlego para ser alterada a exemplo de Rino Levi, que buscava na autoria de projeto uma nova forma de trabalho e da união da categoria através do IAB/SP. No entanto, para que fossem eficazes estas mudanças era necessária a criação das escolas autônomas de Arquitetura, o que se deu a partir de 1945. Assim, este novo discurso poderia ser transmitido e expandido por meio dos alunos.

Em 1955, a autonomia nas escolas começava a se afirmar após a aprovação do Regulamento da FAUUSP (GRAEFF, 1995). Em São Paulo, os arquitetos, através de sua união com os estudantes e com o sucesso obtido pelo CPEU junto ao governo do Estado, reafirmavam a busca pela autonomia profissional e pela prática do Urbanismo. A lei que regulava a profissão desde 1933 não se adequava mais a esta demanda atual do arquiteto, que começava a orientar a sua formação “para as pesquisas dos fatores sociais e humanos do planejamento, em todos os seus aspectos”. Por este motivo, o IAB/SP propôs um novo projeto de Lei exclusivo à regulamentação da profissão do arquiteto, clamando para si a competência privativa de executar

projetos de planejamento urbano, regional, de edifícios e suas obras complementares como obras de caráter artístico, monumental, de interiores ou paisagismo (IAB, n o 56, 1958). Saia destacou a importância da aliança feita entre os arquitetos e os alunos da FAUUSP, construída entre o IAB/SP e os membros do GFAU – Grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na proposição desta lei:

E não é sem um especial significado a unidade indestrutível conseguida entre os arquitetos e estudantes de Arquitetura do Brasil e a formulação definitiva, pelo menos em termos gerais, da regulamentação profissional, também ambos partidos do trabalho elaborado democraticamente pelos arquitetos paulistas. Tais fatos, de fundamental importância para a conceituação do ensino de Arquitetura e para o progresso nacional em termos independentes do paternalismo interessado dos países que atingiram uma estatura econômica e cultural do Brasil ... (SAIA in XAVIER, 2003).

A tentativa da aprovação de um regulamento autônomo para a profissão não foi bem sucedida. Contudo, houve um fortalecimento da categoria que não tinha apenas o propósito do “ordenamento legal da profissão” mas também, a “adoção e difusão da Arquitetura moderna”:

A concomitância de ambos processos – de diferenciação e ordenamento legal, ao nível institucional – e de renovação de princípios teóricos e do estilo, ao níveis sociocultural – fez com que o sistema de crenças do arquiteto brasileiro se formasse paulatinamente dentro do novo marco: o modernismo... (DURAND, 1972).

A coesão entre os alunos, os arquitetos do IAB/SP e os professores da FAUUSP se consolidou com a organização de Congressos para a discussão do ensino de Arquitetura. Três eventos foram organizados nos anos de 1960, 1961 e 1962, os “Encontros de Diretores, Professores e Alunos das Escolas de Arquitetura” e reafirmaram a necessidade de uma reforma no ensino de Arquitetura. Como resultado desta união foi implementada na FAUUSP a Reforma de 1962 e a partir disto, tanto a

atuação do arquiteto quando seu ensino não foram mais dissociados do urbanismo.

Considerações Finais

No primeiro período analisado, entre os anos de 1925 e 1954, na Escola Politécnica de São Paulo, não havia um referencial nacional do ensino da disciplina de Urbanismo. Por esta razão, é provável que o mesmo pioneirismo adotado por Luiz de Anhaia Mello em seus cursos e projetos era aplicado ao ensino. Este, por sua vez, refletia a sua prática experimental, necessária pelas novas demandas da cidade de São Paulo. O ensino estava então calcado no estudo da ampliação de vias e dos fluxos de veículos.

Por outro lado, no tempo da fundação da FNA (1945) – resultado do projeto entregue pelos arquitetos do IAB e IAB/SP ao presidente Getúlio Vargas – outra agenda foi agregada ao ensino, a do “caráter social e econômico do projeto”. Este era um dos objetivos do Instituto e pode-se ver esta influência especialmente no curso de pós- graduação em Urbanismo, na disciplina de “Organização Social da Cidade”. Todavia, este curso não se efetivou e o reflexo da aplicação desta agenda foi visto apenas no currículo da Reforma de 1962, na FAUUSP, no qual consta a “Metodologia do Planejamento do Projeto”, considerando as condicionantes da organização da comunidade para a produção do projeto urbano.

No contexto profissional, em um primeiro momento, a mudança do discurso esteve focada na atuação do arquiteto como profissional liberal. Este passou a defender a autoria e o valor do projeto. Isto se refletiu no ensino de Arquitetura com a tentativa de centralização das disciplinas em torno do atelier de projetos. Outra medida tomada foi o requerimento da prática do urbanismo privativa ao arquiteto. Desta vez, a mudança veio de dentro dos muros da FAUUSP, com o sucesso do CPEU, para ganhar força e voz através do IAB/SP.

Mesmo sem a aprovação de um regulamento profissional independente dos engenheiros, a mudança do discurso dos arquitetos quanto à importância das atividades desempenhadas por eles atribuiu um novo olhar à profissão. Além disso mudou a forma como estes cooperavam para a formação das cidades, através do uso dos conceitos da Arquitetura moderna – aplicando a agenda que considerava os “fatores sociais e humanos do planejamento – e do entendimento integrado entre as disciplinas de Arquitetura e Urbanismo. Para Millan (1962), a dissociação destas disciplinas, que vigorava antes da reforma, “subtraia a arquitetura de seu contexto natural e imprescindível (o contexto urbano) fora do qual ela não pode ser compreendida”. Esta visão só foi possível pela introdução e consolidação dos preceitos modernos no ensino de arquitetura.

É provável que a experiência adquirida pela FAUUSP através dos estudos urbanos elaborados pelo CPEU possibilitou um melhor entendimento da forma como deveria ser ministrada a disciplina, alterando o modelo anterior, difundido até 1954 na Escola Politécnica de São Paulo, com foco no sistema viário. A exemplo disso, vemos o aumento de sua presença no currículo e a introdução de novos temas a partir da Reforma de 1962. É certa a relação entre as transformações das competências e do discurso profissional com o início do ensino de urbanismo, alinhado aos conceitos do modernismo.

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