Resumo

Sabe-se que o legado urbanístico da primeira metade do século XX não se limita ao modernismo funcionalista. No entanto, certo direcionamento ideológico na historiografia do urbanismo tendeu a mascarar a importância de significativas contribuições desse período. O urbanismo francês, em especial, recebeu uma atenção inversamente proporcional ao peso de sua produção e à magnitude de seus protagonistas, tais como Agache, Prost, Hénard, Jaussely, Forestier, Poète, entre outros. Os atores dessa “escola”, ligados à Sociedade Francesa dos Urbanistas (S.F.U.), buscaram atender às demandas da cidade moderna, conciliando-as com os valores da cidade tradicional. Sem descartar os principais legados franceses, clássico e haussmaniano, os urbanistas da SFU buscaram sedimentar um amálgama de princípios que conjugasse ciência e arte na disciplina urbanística. Eles compreendiam a dimensão estética como um dado fundamental da teoria e da prática urbana. Constituía-se, assim, em uma tentativa de síntese entre as práticas de embelezamento do passado e os ideais do urbanismo funcionalista. Porém, mesmo quando o funcionalismo passou a ser duramente criticado, buscando-se novamente a conciliação entre modernidade e história, a contribuição francesa permaneceu no ostracismo. Atualmente, no entanto, observa-se uma significativa ampliação das pesquisas voltadas à redescoberta do século XX, buscando desvelar contribuições de outros atores e teorias renegados pela primazia da ideologia propagada pelos C.I.A.M. Nesse contexto, o interesse do legado urbanístico francês pode ir além da reabilitação de seu justo lugar na memória disciplinar. O estudo de tais contribuições pode trazer à tona um valor operativo no âmbito da dimensão estética do projeto urbano. A postura pragmática cultivada pela escola francesa, a um tempo científica e artística, parece apontar um caminho possível de reconciliação entre os campos irmãos da arquitetura e do urbanismo.

Palavras-chave: urbanismo francês, projeto urbano, dimensão estética, S.F.U.

Abstract

It is known that the urban legacy of the first half of the twentieth century is not limited to functionalist modernism. However, certain ideological direction of urbanism in historiography has tended to mask the importance of significant contributions on this period. The French urbanism, in particular, received a inversely proportional attention to the weight of its production and the magnitude of its protagonists, such as Agache, Prost, Hénard, Jaussely , Forestier , Poète, among others. The actors of this "school", linked to the French Society of Urban Planners ( SFU ) , sought to meet the demands of the modern city , combining them with the values of the traditional city . Without discarding the main french legacys, the classic and the haussmannian, This planners of SFU sought to settle an amalgam of principles which combines science and art in urban discipline. They understood the aesthetics dimension as a really important element to the urban theory and practice. They constituted, therefore , in an attempt of synthesis between the practices of

beautification of the past and the ideals of functionalist urbanism. But even when functionalism became severely criticized, trying again to reconcile modernity and history, the French contribution remained ostracized. Currently, however , there is a significant expansion of researches focused on the rediscovery of the twentieth century , seeking to uncover the contributions of another actors and theories, renegateds for the primacy of ideology propagated by CIAM. In this context, the interest of the French urban legacy can go beyond the rehabilitation of its rightful place in the subject's memory. The study of such contributions can bring up an operating value within the aesthetic dimension of urban design. The pragmatic approach cultivated by the French school, scientific and artistic, seems to point a possible way of reconciliation among brothers fields of architecture and urbanism.

Keywords: French urbanism, urban design, aesthetic dimension, S.F.U.

Motivações para pensar o urbanismo a partir de sua dimensão estética1 Desde os primórdios da intervenção humana no espaço, é possível observar traços de uma intenção estética. Cidade e estética relacionam-se em todos os períodos da história, em todos os lugares. Mas o que se entende realmente como “intenção estética”, quando se abordam questões relativas ao campo disciplinar do urbanismo? A primeira dificuldade de compreensão advém do próprio significado atribuído ao termo “estética”, sobretudo quando utilizado como adjetivação. Ao se referir a um objeto, tal palavra assume conotações diversas, segundo se apresente em distintos contextos temporais e espaciais. Porém, é possível admitir que, no caso da expressão “estética urbana”, costuma-se interpretá-la como alusiva à qualidade plástica e visual da cidade, à sua beleza.

Dentre o vasto leque de abordagens da estética urbana, a questão do urbanismo como arte interessa especialmente ao tema aqui proposto: ao intentar pautar suas intervenções segundo princípios estéticos, os urbanistas deparam-se com as particularidades do campo da arte, difíceis de conciliar com as pretensões científicas do campo do urbanismo. Em que pese tal contradição (da qual partilha também a arquitetura), os escritos urbanos geralmente apontam a conciliação entre o caráter científico e a realização do belo como um dos objetivos primordiais da disciplina, como observa Lavedan:

Seria reduzir singularmente o urbanismo, esvaziá-lo de seu conteúdo, restringi-lo à arte das vias públicas, às ordenações urbanas e mesmo à composição. Mas também seria mutilá-lo gravemente excluir dele toda preocupação de beleza (LAVEDAN, 1952, p.432)2.

Mas porque a preocupação estética aparece tão fortemente como dado inerente ao urbanismo? Nesse ponto, pode-se relembrar a primeira colocação deste texto: a intenção estética está presente desde os primórdios da intervenção humana no espaço. Para muitos filósofos, esse seria um dos principais traços distintivos do ser humano. Consequentemente, a estética é também inerente ao “ser urbano”, e toda compreensão de cidade perpassa esse dado.

Malgrado o caráter funcional e cientifico associado à disciplina, tal entendimento é asseverado em diversos escritos urbanísticos, como se pode depreender das

1 A presente comunicação baseia-se na pesquisa de doutorado em vias de conclusão intitulada (...), no programa (...), orientada por (...), com o apoio da C.A.P.E.S.

2 Todos os trechos originais em língua francesa, citados neste artigo, são traduções livres do(a) autor (a).

declarações selecionadas a seguir: “A estética é para um povo não um luxo, mas uma necessidade e um direito, ao mesmo título que a higiene.” (CORNUDET, 1910, apud GUITARD, 1947); “Em todo caso: filósofos, estetas, urbanistas, todos estão de acordo em reconhecer que e beleza é necessária à vida humana. A estética é uma espécie de higiene mental a qual o homem não saberia dispensar.” (DANGER, 1933, p.196); “Vejamos uma novidade importante: tomamos consciência do fato de que a beleza é tão necessária à cidade e aos homens quanto a higiene (...)” (LAVEDAN, 1952, p.415) .

A noção de urbanismo como arte, e, consequentemente, do urbanista como um artista, também é frequentemente evocada. Supõe-se que seria porque, ao elaborar um projeto urbano, espera-se do urbanista uma concepção plástico-espacial específica, não uma mera aplicação indiscriminada de fórmulas pré-estabelecidas. O urbanismo, assim, contém “uma parte de intuição, uma parte de invenção”:

(...) O urbanismo é também uma arte: ele comporta uma parte de intuição, uma parte de invenção. Se assim não fosse, com efeito, seria possível melhorar, urbanizar as cidades por meio de fórmulas estabelecidas de uma vez por todas (AGACHE, 1916, in: GAUDIN, 1991).

Porém, ainda mais forte do que a ideia de urbanismo como arte na constituição disciplinar, foi o desejo de estabelecer o urbanismo como disciplina científica, apoiado por teóricos e urbanistas que exaltavam os ideais da razão e do progresso. Tal ânsia de cientificidade terminou por promover o tecnicismo e a reprodução de modelos fechados, que se pretendiam dotados de validade universal. Esse ideário ocasionou, de certa forma, uma restrição em termos de liberdade expressiva do urbanista. Uma vez que a qualidade plástica seria supostamente consequência da resolução funcional, a estética não constituiria, logo, um domínio legitimo de investigação urbanística. No entanto, em que pese o aparente desprezo do discurso funcionalista, a estética permaneceu como um valor operativo dentro da disciplina, inclusive (ainda que implicitamente) dentro do próprio funcionalismo.

A consciência da dimensão estética e das implicações artísticas da intervenção no espaço permeou grande parte do pensamento e da prática urbanística ao longo de sua consolidação e desenvolvimento como campo disciplinar. Computa-se, em especial no período entre guerras, a existência de um número considerável de escritos (ensaios, manuais, tratados, regulamentações, etc.) que abordaram a questão estética na prática urbanística, assim como planos pautados em princípios e teorias correspondentes. No entanto, uma grande parte desse acervo intelectual permaneceu esquecida ou ignorada.

O legado do urbanismo francês da primeira metade do século XX

Até muito recentemente, a maior parte da historiografia do urbanismo dedicada ao século XX, em especial ao período anterior à segunda guerra mundial, privilegiou seu enfoque no relato do modernismo funcionalista3 propagado pelos C.I.A.M.4 Destacam-se seus principais representantes, notadamente a figura de Le Corbusier, ampliando-se o foco em sua gênese e em suas repercussões. Esse “recorte” temático

observado em alguns dos principais textos históricos urbanísticos é de tal forma flagrante que, à parte raras referências a contribuições de nomes rapidamente citados, como os de Marcel Poète e Alfred Agache, têm-se a impressão de que nada mais de

3 Pode-se citar, entre outras, as obras de Giedion, Benevolo, Zevi, Hitchcock e Pevsner.

4 Congressos internacionais de arquitetura moderna, ocorridos entre 1928 e 1956. Pode-se citar, entre outras, as obras de Giedion, Benevolo, Zevi, Hitchcock e Pevsner.

relevante tenha acontecido dentro do campo disciplinar no período. Ora, tal suposição está longe de refletir a riqueza e a intensidade com que o urbanismo se desenvolveu entre 1900 e a segunda guerra mundial. De fato, tal período foi de suma importância para a constituição e desenvolvimento da disciplina urbanística.

Em primeiro lugar, esse momento é caracterizado pelos esforços de institucionalização e profissionalização desse novo e complexo campo disciplinar, por meio da criação de associações profissionais e de escolas de urbanismo. Ele também foi marcado pela intensa circulação mundial de ideias, pela realização de importantes eventos, exposições e congressos, pela elaboração de uma quantidade considerável de planos urbanísticos (por comandas governamentais ou concursos internacionais) e pela concretização de parte desses projetos. Também do ponto de vista da legislação ocorreram avanços marcantes, como a promulgação de leis urbanísticas e códigos construtivos. Finalmente, destaca-se a prolífica atividade teórica marcada pela publicação de livros e de manuais técnicos, intensificada também pelo surgimento de periódicos dedicados ao tema do urbanismo.

Evidentemente, a intensidade produtiva de que se falou variou entre atores, países e períodos durante tal intervalo de tempo, mas, no quadro geral, podem-se elencar importantes contribuições que vão além do urbanismo incensado pela “Carta de Atenas”. Algumas “escolas de urbanismo” desenvolveram posturas que em muitos pontos foram claramente contrárias às proposições iconoclastas e futuristas de um Le Corbusier. Entretanto, malgrado sua importância para o desenvolvimento e consolidação da disciplina, grande parte dessas contribuições parecem ter sido eclipsadas pelo “motor da história” em favor de uma historiografia do urbanismo “modernista”, assumidamente apologética e unilateral5.

De todas as contribuições desse período, nenhuma parece ter sido tão obscurecida quanto a da “Escola francesa de urbanismo”, em especial a obra dos atores que viriam a integrar a Société Française des Urbanistes (S.F.U.), fundada em 1911. Chega a surpreender a proporcionalidade da produção historiográfica que lhe foi dedicada, se considerarmos sua importância e difusão mundial nesse momento, dada a constatação do número de importantes atores envolvidos (Alfred Agache, Henri Prost, Eugène Hénard, Léon Jaussely, Nicolas Forestier...), bem como da intensidade de sua produção teórico-prática exercida em diversos países e continentes.

Ao longo da primeira metade do século XX, a “escola francesa” possuiu papel de destaque e de referência primordial, tanto do ponto de vista da produção bibliográfica, quanto da criação e da execução de planos urbanísticos, além da criação de instituições, legislações e promoções de eventos. O urbanismo francês representava, em larga medida, um savoir-faire acumulado durante décadas de intensas contribuições entre diversos campos disciplinares, resultando na almejada constituição de um corpo profissional especializado:

A escola francesa teve papel preponderante pelo debate teórico, realizações de planos, e pela irradiação internacional. Exportou saber e formação e seus urbanistas trabalharam na organização de muitas cidades pelo mundo, conferindo-lhes determinada homogeneidade cultural, técnica e distributiva, ainda hoje reconhecível (LAMAS, 2010, p. 260).

Tabela 1: Amostragem de publicações francófonas de interesse urbanístico entre 1893 e 1952, demostrando a

5 A imparcialidade histórica parece ter sido afetada pela ideologia, uma vez que a maior parte dos historiadores citados anteriormente, Giedion em particular, era partidária dos ideais do modernismo funcionalista. Entende-se que toda história advém de um recorte e de uma construção, porém, no caso citado, a historiografia tomou ares de “manifesto”.

intensidade da produção teórica do período6.

+———–+—————————+—————————+ | > Ano | > Autores | > Título da | | | | > publicação | +===========+===========================+===========================+ | > 1893 | > Eugène Haussmann | > Mémoires du Baron | | | | > Haussmann 1853-1870 | +———–+—————————+—————————+ | > 1894 | > Charles Buls | > Esthetique des villes | +———–+—————————+—————————+ | > 1895 | > Elisée Reclus | > L' évolution des | | | | > villes | +———–+—————————+—————————+ | > 1900 | > Gustave Kahn | > Esthétique de la rue | +———–+—————————+—————————+ | > 1902 | > Camillo Sitte/ Camille | > L'art de batir les | | | > martin (tradução) | > Villes (incluído devido | | | | > ao impacto das | | | | > “adaptações” de | | | | > Martin). | +———–+—————————+—————————+ | > 1903- | > Éugene Hénard☆ | > Études sur les | | > | | > tranformations de Paris | | > 1909 | | > (fascículos) | +———–+—————————+—————————+ | > 1904 | > Georges Benoit-Levy☆ | > La Cité-Jardin | +———–+—————————+—————————+ | > 1906 | > Jean-Claude Nicolas | > Grandes villes et | | | > Forestier☆ | > systèmes de parcs | +———–+—————————+—————————+ | > 1908 | > Magne, Émile | > est ti e des i es | +———–+—————————+—————————+ | > 1910 | > Georges Risler☆ | > Les espaces libres dans | | | | > les grandes villes et | | | | > les cités-jardins | +———–+—————————+—————————+ | > 1913 | > Robert de Souza☆ | > L´avenir de nos villes, | | | | > études pratiques d´ | | | | > esthétique urbaine. | | | | > Nice capitale d´hiver | +———–+—————————+—————————+ | > 1915 | > Alfred Agache☆, Édouard | > Comment reconstruire | | | > Redont☆, Marcel | > nos cités détruites, | | | > Auburtin☆, Georges | > notions d'urbanisme | | | > Risler☆. | > s'appliquant aux | | | | > villes, bourgs et | | | | > villages | +———–+—————————+—————————+ | > 1916 | > Louis Van der Swaelmen | > r i inaires d a rt i i | | | | > e is en re ati n a e e | | | | > as ini e de la Belgique | +———–+—————————+—————————+ | > 1917 | > Tony Garnier | > Une cité industrielle: | | | | > étude pour la | | | | > construction des villes | +———–+—————————+—————————+ | > 1917 | > Marcel Auburtin☆, Raoul | > La cité de demain dans | | | > Blanchard | > les régions dévastées | +———–+—————————+—————————+ | > 1917 | > Alfred Agache☆ | > Nos agglomérations | | | | > rurales comment les | | | | > aménager | +———–+—————————+—————————+ | > 1920 | > Geo B. Ford☆ | > L'urbanisme en | | | | > pratique | +———–+—————————+—————————+ | > 1920 | > Henry Crozat | > La cité ideale ou | | | | > l'urbanisme social | | | | > rationnel | +———–+—————————+—————————+ | > 1920 | > Léon Auscher, Georges | > Urbanisme et tourisme | | | > Rozet | | +———–+—————————+—————————+ | > 1923 | > Societé Française des | > Où en est l'urbanisme | | | > Urbanistes (SFU) ☆ | > en France et à | | | | > l'étranger | +———–+—————————+—————————+ | > 1923 | > Edouard Joyant☆ | > Traité d´urbanisme | +———–+—————————+—————————+ | > 1926 | > Le Corbusier | > Urbanisme (inserido | | | | > como exemplo de uma | | | | > vasta produção) | +———–+—————————+—————————+ | > 1927 | > Amedée Bonde | > Traité pratique de | | | | > l´amenagement, de | | | | > l´extension et de | | | | > l´embeillissement des | | | | > villes | +———–+—————————+—————————+

6 Algumas observações para a leitura da tabela: uma parte dos estudos aqui citados possui capítulos versando sobre o tema da dimensão estética do urbanismo, quando não lhe são inteiramente dedicados; privilegiou-se os manuais de urbanismo em detrimento dos estudos históricos, como a importante obra de Marcel Poète; Com o símbolo ☆, ao lado do nome de alguns autores, indicou-se associação à S.F.U.

+——–+—————————–+—————————–+ | > 1927 | > Henri Sellier☆, A. | > Le problème du logement | | | > Bruggeman | | +========+=============================+=============================+ | > 1929 | > Albert Guerard | > L'avenir de Paris, | | | | > Urbanisme français et | | | | > urbanisme américain | +——–+—————————–+—————————–+ | > 1932 | > Alfred Agache☆ | > La remodélation d'une | | | | > capitale | +——–+—————————–+—————————–+ | > 1933 | > René Danger☆ | > Cours d´urbanisme | +——–+—————————–+—————————–+ | > 1936 | > Tony Socard (maître de | > La beauté des villes | | | > these: Marcel Poete) | > (these Institut | | | | > d´urbanisme de Paris) | +——–+—————————–+—————————–+ | > 1936 | > André Vera | > L´urbanisme ou la vie | | | | > heureuse | +——–+—————————–+—————————–+ | > 1937 | > Georges Meyer-Heine | > Urbanisme et esthétique: | | | | > essai pratique de | | | | > réglementation d'aspect | +——–+—————————–+—————————–+ | > 1941 | > Gaston Bardet | > Problèmes d'Urbanisme | +——–+—————————–+—————————–+ | > 1941 | > Le Corbusier | > La charte d´athenes | +——–+—————————–+—————————–+ | > 1943 | > Gaston Bardet☆ | > Principes inédits | | | | > d'enquête et d'analyse | | | | > urbaine | +——–+—————————–+—————————–+ | > 1945 | > Gaston Bardet☆ | > L'urbanisme | +——–+—————————–+—————————–+ | > 1947 | > Guitard, EH | > Précis d´ esthétique | | | | > urbaine | +——–+—————————–+—————————–+ | > 1948 | > Gaston Bardet☆ | > Le nouvel Urbanisme | +——–+—————————–+—————————–+ | > 1952 | > Lavedan, Pierre☆ | > Histoire de l´urbanisme, | | | | > époque contemporaine | +——–+—————————–+—————————–+

Além da riqueza dos saberes acumulados, suas experiências urbanísticas efetivaram- se antes, e com maior coerência, do que o funcionalismo doutrinado pela Carta de Atenas. Isto se deveu, em grande parte, ao pragmatismo de suas propostas, que se opunham ao radicalismo utópico da ideia de “tábula rasa”, da negação do tecido urbano existente. Sem descuidarem das questões da cidade moderna, tais como higiene e circulação (como se explicita na divisa da SFU: “assainir, ordonner, embeillir” ), os urbanistas franceses faziam do estudo do contexto histórico,

econômico, social e morfológico existente, a “enquete”7, o princípio de base para o desenvolvimento de seus planos:

A escola francesa de urbanismo que se criou na França a partir de 1900 é pragmática. Aqueles que a criaram tiveram a preocupação de atacar os males reais da cidade: é a razão pela qual eles fazem tão fortemente apelo à enquete social. Eles não são utopistas, preocupados em imaginar um tipo de cidade ideal que seria imposta ao mundo por eles. Apesar do sucesso que encontra o movimento britânico das cidades jardins em uma grande parte da opinião esclarecida de nosso país, o urbanismo francês não procura revolucionar a cidade. Ele procura torná-la mais humana e mais harmoniosa. (CLAVAL, in: BERDOULAY; CLAVAL, 2001, p. 248).

O urbanismo francês da primeira metade do século XX primava, assim, por uma compreensão da complexidade do contexto existente como embasamento projetual. Isso faz com que não seja possível considera-lo como uma mera continuação da arte urbana histórica barroca e neoclássica, e nem mesmo do legado haussmaniano.

7 Desenvolvimento de pesquisas preliminares acerca do contexto da futura intervenção, sintetizados na

Porém, sem descartar tais legados, os urbanistas da S.F.U. abriram-se às novas demandas da cidade moderna, buscando sedimentar um amálgama de princípios que conjugasse ciência e arte na disciplina urbanística. Constituía-se, assim, uma tentativa de síntese entre as práticas de embelezamento do passado e os ideais do urbanismo funcionalista:

(...) nossa sociedade tem o dever de lembrar em primeiro lugar que não somente a utilidade não saberia ser por si só beleza, mas também que não há beleza que não seja em si uma utilidade, e que sem esse duplo entendimento o urbanismo falhará cada vez mais (DE SOUZA, 1932, in: GAUDIN, 1991).

Apesar dessa assumida preocupação com a questão estética, a compreensão do urbanismo como disciplina científica era considerada igualmente importante. É preciso ter-se em conta a preocupação social e o senso pragmático característico de suas realizações. A dimensão estética era de fato considerada fundamental, mas como elemento constituinte de uma tríade, como explicita a já citada divisa da S.F.U.: “circulação, higiene, estética”.

Sem alongar-se mais, no âmbito desta comunicação, em detalhar suas principais características, questionam-se os motivos que teriam levado, senão ao “esquecimento”, a uma valoração historiográfica inversamente proporcional ao legado deixado por toda uma influente geração de urbanistas.

Causas do ostracismo do urbanismo francês na memória disciplinar

O triunfo internacional do urbanismo funcionalista, a partir de 1945, bem como suas consequências, e as subsequentes teorias de contestação e revisão do movimento moderno, são todos fenômenos bastante conhecidos e estudados. No entanto, raramente se questiona porque o urbanismo, tal como compreendido e praticado pela escola francesa antes da segunda guerra, teria sido radicalmente descartado a partir desse momento. Como se afirmou anteriormente, a historiografia urbanística, tampouco, ocupou-se em compreender a real dimensão desse conjunto de contribuições, atendo-se, preferencialmente, apenas nos atores que indiciariam a construção de uma possível gênese do urbanismo funcionalista. Nesse sentido, nomes

como o de Tony Garnier, por exemplo, não foram esquecidos8.

A existência de tal hiato pode ser justificada por uma série de questões, dentre as quais se buscará elencar aqui algumas suposições levantadas por autores como Berdoulay e Claval, Lamas, Rabinow e Gaudin. Em primeiro lugar, como se sabe, o impacto das intervenções do Barão Haussmann em Paris foi absolutamente intenso e decisivo, tornando-se, por longo tempo, a grande (e praticamente a única) referência francesa mundialmente reconhecida em termos de urbanismo. Procurou-se replicar o “modelo” parisiense (mas nem sempre a metodologia de Haussmann) em várias partes do mundo, surgindo, em diversas capitais, bulevares, jardins públicos, monumentos isolados em perspectiva, passeios arborizados em alinhamento, avenidas radiais, eixos monumentais em patte d´oie, etc. A ambição maior consistia em proporcionar a essas cidades certa allure de Paris, como se deu, por exemplo, no Rio de Janeiro.

Se, por um lado, nesse momento a França indubitavelmente “fez escola”, por outro lado ocorreu uma fixação modelar que veio em parte a sufocar o desenvolvimento e a divulgação de contribuições posteriores. Assim, a não ser por ligeira menção aos planos das exposições universais de Paris após Haussmann (1889, 1900, 1937), pouco se comenta, na historiografia urbanística, acerca do desenvolvimento do urbanismo francês entre a consolidação dos grands travaux de Haussmann e a “apoteose” da

8 No entanto, Eugène Hénard, uma das grandes inspirações de Le Corbusier, recebeu muito menor

figura de Le Corbusier na década de 1930.

A naturalização francesa do arquiteto suíço, aliás, também constitui um dos fatores que contribuíram para ofuscar o legado de outros atores urbanísticos atuantes na França. Colocando-se no papel de um líder dentro dos C.I.A.M., com sua personalidade carismática e suas polêmicas teses, atraía para si grande parte da atenção estrangeira. Aliado a seus notórios e inegáveis méritos na atuação em diversos campos da arte, da teoria, da arquitetura e do urbanismo, o predomínio da figura de Le Corbusier foi favorecido pelo enfoque tendencioso da historiografia moderna, como comentado anteriormente. Sua consagração também se deveu ao predomínio, em escala mundial, do urbanismo funcionalista após a segunda grande guerra. Berdoulay sintetiza nesses termos as questões acima expostas:

Os impactos paisagísticos e sociais das grandes operações lançadas pelo barão Haussmann em Paris, e, posteriormente, aqueles do urbanismo moderno que dominou por longo tempo em toda a França, em favor da reconstrução e da expansão das cidades após a segunda guerra mundial, tiveram tal amplitude e marcaram de tal forma os espíritos que o pensamento urbanístico entre esses dois períodos foi negligenciado, senão esquecido. É verdade que a personalidade dos líderes do urbanismo moderno, como Le Corbusier, contribuiu para relegar esse pensamento ao esquecimento, um pouco como se não houvesse nada de interessante entre Haussmann e eles mesmos (BERDOULAY, in: BERDOULAY; CLAVAL, 2001, p.5).

Observou-se, até o momento, que a existência de dois nomes de peso associados ao urbanismo francês, Haussmann e Le Corbusier, contribuiu para comprimir o valor e ocultar a pluralidade da contribuição francesa. Essa hipótese enfoca a importância dada ao destaque individual dos atores urbanos na construção da disciplina. Cabe aqui indicar também outros dois aspectos, um estético e outro político, que se supõe haver também contribuído para tal declínio.

A questão estética diz respeito ao academicismo plástico dos projetos da escola francesa. Julgava-se que tais urbanistas não estariam conectados com o espírito da modernidade e que, privilegiando linguagens artísticas ultrapassadas, eles não seriam capazes de solucionar as questões funcionais da cidade moderna. Assim, devido à utilização, por muitos de seus atores, de um vocabulário remanescente da linguagem tratadística clássica transmitido pela École de Beaux-arts, combinado a elementos de herança haussmaniana, alguns teóricos referem-se ao conjunto da arte urbana francesa

desse período como urbanismo “Beaux-arts” ou “acadêmico”9.

No entanto, apesar da linguagem arquitetônica utilizada por parte desses atores ser de fato de origem “acadêmica”, não se pode considerar que suas criações limitavam-se à mera aplicação de modelos consagrados. Existia uma preocupação técnica patente com a infraestrutura, a economia, a circulação, a higiene, os aspectos sociais. Seus profissionais também buscavam pôr em evidência os valores estéticos e simbólicos da cidade: a paisagem, as visadas, os conjuntos históricos, as perspectivas, o relevo, os espaços públicos, o “pitoresco” local, etc. Nesse âmbito, percebe-se que o partido estético construía-se sempre em relação ao contexto existente, porém sem que esse último implicasse em engessamento ou submissão. Ainda assim, o estigma do “passadismo” decaiu inexoravelmente sobre tais realizações, o que também contribuiu para o seu ostracismo.

9 Esse pré-julgamento encontra-se diretamente ligado à formação dos arquitetos que integrariam a primeira geração de urbanistas associados à S.F.U. Alguns deles receberam, inclusive, a máxima honraria para um aluno da École, o Grand Prix de Rome. Cita-se, por exemplo, Jacques Gréber, Léon Jaussely, Tony Garnier e Henri Prost.

O período mais produtivo dos principais atores da S.F.U., situado no entre guerras, encontrou uma França em crise econômica e política, limitando as oportunidades de efetivação de obras urbanas, malgrado o grande estímulo inicial representado pela promulgação da Lei Cornudet, em 191910. Muitos desses importantes atores buscaram

oportunidades de trabalho em outros países. Assim, algumas das grandes realizações urbanísticas francesas terminaram por se situar fora da própria França, em especial nas suas colônias e nos países em desenvolvimento da América Latina.

O trânsito internacional dos urbanistas franceses, que muitas vezes passavam a habitar nos países em que desenvolviam seus planos, também ocasionou um desfalque considerável da intelectualidade urbanística atuante dentro da França. Esse fato também contribuiu para o rápido “esquecimento” desse legado em seu país de origem. Porém, apesar da importância de todos os aspectos levantados acima, acredita-se que o grande “golpe de misericórdia” sofrido pela escola francesa tenha sido ocasionado por questões políticas. Como observa argutamente Lamas, o urbanismo francês passou a ser associado a grandes regimes autoritários, que ocasionaram a tragédia da segunda guerra mundial. Além disso, a “exportação” de uma urbanística “afrancesada” reforçou ainda mais o estigma de dominação “imperialista” associado a esses princípios e realizações. Como consequência, toda a produção da escola francesa acabou por integrar um conjunto de elementos simbólicos de um passado recente e traumático, ao qual se buscou rapidamente esquecer e superar após a segunda guerra. O urbanismo funcionalista, por outro lado, representava o futuro, o progresso, a igualdade social; o símbolo, enfim, de uma nova era:

O que se pode compreender (...) pelo interesse que a cultura moderna foi dedicando à inovação, à diferença e ao valor do novo contra o tradicional, da vanguarda contra o academicismo, e à conotação pejorativa que atribuiu à tradição. Além do mais, regimes conservadores, totalitários e fascistas haviam utilizado esses modelos urbanísticos nas realizações oficiais- como Portugal, Espanha, Itália e Alemanha nazi- o que conduziu, no rescaldo do pós-guerra, à natural identificação de formas urbanas com ideologias políticas e sociais e ao repúdio moral de umas e de outras. Nesta ordem de ideias, a urbanística moderna, de conteúdo democrático e social inequívoco, aparecia como a urbanística da libertação e da democracia (LAMAS, 2010, p. 240).

Finalmente, associado a todas as questões anteriormente citadas, relembra-se um fator mais conhecido: a absoluta urgência da reconstrução em larga escala de uma arrasada Europa pós-guerra, sobretudo para suprir o imenso déficit habitacional. Para o campo do urbanismo, a segunda guerra mundial pode ser considerada como um de seus momentos “divisores de águas”. Por meio do apelo à padronização da malha urbana “racional” e à construção em série, o urbanismo funcionalista parecera mais adequado à necessidade de rapidez e de economia condizente com esse momento crítico, o que terminou por consolidar o seu triunfo.

A reabilitação do interesse pelo urbanismo francês na historiografia urbanística contemporânea

Após expor algumas possíveis causas do ostracismo a que foi relegado esse conjunto de contribuições, cabe interrogar-se também acerca dos motivos de sua crescente reabilitação no cenário historiográfico do urbanismo.

Em primeiro lugar, deve-se ter em conta a superação histórica do urbanismo funcionalista como pensamento dominante na prática disciplinar. Dado o fracasso de

10 Lei que tornava obrigatória, para toda comuna reunindo acima de 10.000 habitantes, a elaboração de um plano urbanístico, conhecidos como “Plans d´aménagement, d´extension et d´embeillissement”. A elaboração dessa lei teve colaboração direta dos membros da S.F.U.

diversas experiências inspiradas nesses princípios, sobretudo posteriores a 1945, desde os anos 1960 sedimenta-se o reconhecimento de sua excessiva carga de utopia, de radicalismo e de simplificação da realidade urbana. Nesse contexto, a superação dessa corrente de urbanismo impulsionou a reavaliação das qualidades de outras abordagens preteridas.

A defesa da metodologia funcionalista e, posteriormente, a construção de críticas dirigidas a seus princípios, com a proposição de teorias alternativas, constituíram-se como temas centrais do pensamento urbanístico do século XX. Durante décadas, esse binômio (defesa/ crítica ao funcionalismo) mobilizou grande parte da produção intelectual da disciplina. Hoje, dentre a multiplicidade de temas que marca o urbanismo contemporâneo, observa-se uma significativa ampliação das pesquisas voltadas à redescoberta do legado do próprio século XX. Algumas dessas revisões históricas buscam desvelar o interesse das contribuições dos atores e teorias renegados pela primazia da ideologia propagada pelos C.I.A.M. Nesse contexto, atores urbanos como Hénard e Prost vêm sendo intensamente estudados.

Esse enfoque, relativamente recente, distingue-se dos importantes estudos desenvolvidos entre as décadas de 1960 e 1980, também interessados em investigar teorias e metodologias alternativas ao pensamento funcionalista. Apesar desses primeiros teóricos anti-funcionalismo partilharem do mesmo pressuposto da escola francesa, a saber, a conciliação dos valores da cidade tradicional com a complexidade e as demandas da cidade moderna, os savoir-faire em que buscaram a fundamentação de suas pesquisas geralmente excluíam a análise do aporte dessa e de outras produções do próprio século XX, voltando-se preferencialmente ao estudo morfológico dos tecidos urbanos históricos.

No contexto da revisão do legado urbanístico anterior à segunda guerra, outro aspecto que favorece a reabilitação do urbanismo francês, em especial, deve-se à já comentada “exportação” desses atores e saberes. Como, não raro, conta-se a atuação de tais profissionais entre os principais episódios da história urbanística de alguns países, tais realizações não chegaram a ser de fato “esquecidas”. Por exemplo, pode-se citar o interesse que Agache sempre despertou no Brasil, sendo objeto de inúmeras pesquisas e estimulando, inclusive, o estudo da importância da circulação internacional de ideias urbanísticas.

A contribuição do urbanismo francês: pertinências contemporâneas

Como se expôs, a primeira metade do século XX, momento de consolidação da disciplina urbanística, constituiu-se em um período mais rico e complexo do que faz crer a historiografia dedicada ao período. O urbanismo francês, responsável por uma vasta contribuição ao campo profissional, foi por longo tempo relegado ao ostracismo. Dentre suas relevantes contribuições, destaca-se a compreensão do urbanismo a partir de sua dimensão estética e seu rebatimento na prática do projeto urbano. Ao situar-se à parte das tendências utopistas, sejam futurísticas ou passadistas, adotando uma postura mais pragmática e menos ideológica, essa escola de urbanismo parece se assemelhar mais com as concepções atuais do urbanismo, do que a escola funcionalista que lhe era contemporânea.

Podem-se fornecer alguns exemplos dessa insuspeita “atualidade”: do ponto de vista conceitual, os franceses buscaram equilibrar os legados do passado e as exigências do futuro (a importância do patrimônio urbano é hoje incontestável). Eles almejavam, para além de suprir as necessidades funcionais da cidade, imprimir um caráter estético no espaço (a dimensão estética parece estar cada vez mais na “ordem do dia” do urbanismo contemporâneo). No âmbito metodológico, entendiam a colaboração profissional transdisciplinar como necessária a um campo sobremaneira complexo (a

transdisciplinaridade é uma das questões que perpassam a ideia de pensamento complexo na contemporaneidade). Dedicavam-se ao estudo aprofundado dos aspectos implicados no contexto, valendo-se deles para embasar a concepção projetual de seus planos urbanísticos (o estudo do contexto é ferramenta primeira da intervenção urbana). Tais princípios, em linhas gerais, ainda permanecem válidos no pensamento urbanístico contemporâneo.

Malgrado o preconceito estético que atingiu suas realizações, em parte devedora da tradição beaux-arts, os atores da arte urbana francesa buscaram ponderar os radicalismos ideológicos e utópicos. A abordagem formal presente em seus escritos e projetos parece ter trilhado um caminho intermediário entre a “tábula rasa” e a “patrimonialização” nostálgica, entre a utopia futurista e o pastiche do passado.

Assim, talvez o interesse desse legado possa ir além do desejo de reabilitação de seu justo lugar na memória disciplinar. O estudo de tais contribuições pode trazer à tona um valor operativo no âmbito da dimensão estética do projeto urbano. A postura pragmática cultivada pela escola francesa, a um tempo científica e artística, parece apontar um caminho possível de reconciliação entre os campos irmãos da arquitetura e do urbanismo.

Referências bibliográficas

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