Resumo

Este artigo pretende colocar na berlinda a intensa atuação de construtores ainda hoje na penumbra da história recente de São Paulo. Conhecidos como ‘Práticos Licenciados’ ou ‘Arquitetos Licenciados’ (construtores sem diploma de engenheiro-

arquiteto) os mesmos foram mão-de-obra dominante no âmbito da construção civil paulistana, mormente entre 1870 e 1933.1 Desse modo, no bojo da vida citadina, a atuação dos mesmos descortina os debates sobre os rumos da cidade, suas mazelas sociais, disputas materiais e simbólicas, seus múltiplos sujeitos, venturas e

desventuras. Nosso intuito é deslindar alguns fios desta complexa trama, seguir seus rastros, ritos e mitos, sobretudo no que tange aos embates pela definição dos campos profissionais e simbólicos da profissão de arquiteto.

Palavras-chave: Arquitetos Licenciados, São Paulo, história, profissão, urbanização

Abstract

This article discusses the path of a still overlooked group known as 'Licensed praticals' or ‘Licensed Architects’- city builders without higher education degrees whose role was dominant in São Paulo between 1870 and 1933. Thus, in the midst of city life, the performance of these reveals the debates on the city, its social ills, material and symbolic disputes, their multiple subjects , fortunes and misfortunes. Our goal is to unravel a few threads of this complex plot, following their traces, rites and myths analyzing conflicts in shaping the profession of architects.

Keywords: Licensed Architects, São Paulo, History, profession, urbanization

O cotidiano em construção: entre mudanças e permanências

O decorrer do dia 1 de março de 1909 parecia não reservar surpresas aos funcionários da Diretoria de Obras Públicas da Prefeitura Municipal de São Paulo. Acostumados com uma burocracia em franca expansão, os mesmos recebiam diariamente centenas de requerimentos solicitando alvará de licença para construir nos mais diversos bairros de uma cidade que duas décadas antes ainda se limitava aquém dos vales dos rios Anhangabaú e Tamanduateí, nas ruas do antigo triângulo colonial. Coordenados desde 1899 pelo engenheiro Victor da Silva Freire, homem de confiança do Prefeito Antônio Prado e prócere da difusão de um ideário urbanístico moderno na capital

1 O recorte cronológico adotado é balizado por pesquisas prévias e em andamento na Série Obras Particulares (SOP) – coleção documental pertencente ao Arquivo Histórico Municipal de São Paulo (AHMWL) cujos requerimentos de alvarás de licença para construir constituem fonte crucial para a história da arquitetura e do urbanismo paulistano desde

  1. No que tange à data final, 1933, a baliza é o decreto de regulamentação da profissão de engenheiro, arquiteto e agrimensor, que começa a lançar no ostracismo os construtores não diplomados.

paulista, os engenheiros-fiscais e alinhadores da Diretoria de Obras analisavam caso por caso recorrendo, se necessário, aos arbítrios do diretor Victor Freire e quiçá do próprio prefeito Antônio Prado. No verso de cada pedido, num procedimento burocrático ainda comum nas repartições públicas atuais, os funcionários anotavam cuidadosamente os detalhes do local a receber o canteiro de obras. Rua, terreno, alinhamento, metros quadrados a serem edificados e toda sorte de normas edilícias em voga desde o último quartel do século XIX. Em questão estava a salubridade, a viabilidade e procedência dos arruamentos e loteamentos, em suma, todo o aparato legal disponível (e diga-se relativamente limitado) para o controle público da vertiginosa expansão do espaço urbano paulistano encabeçada pelos investimentos da iniciativa privada. Devassando as análises dos engenheiros-fiscais nos versos de cada pedido, é possível vislumbrar parte do cotidiano não só da Diretoria de Obras, mas também dos sujeitos que falam através das hoje centenárias e amareladas páginas da Série Obras Particulares (SOP) como segue:

Cidadão Dr. Prefeito Municipal,

Diz Joaquim Antônio de Almeida que desejando construir uma casa sita a Avenida C. Maranhão, nº 1, vem respeitosamente pedir o necessário alinhamento,

E.R.M

São Paulo, 1 de março de 1909 Pela parte, Raul dos Santos 2

O tom corriqueiro do pedido parece não destoar do que comumente chegava à repartição. Todavia uma análise a posteriori deslinda a trama das relações entre poder público e privado, além de trazer à luz os nomes envolvidos nas querelas. Comecemos nossa breve análise com o tom formal, mas um tanto intimista, do requerente ao endereçar o pedido diretamente à figura de Antônio Prado, o “Cidadão Dr. Prefeito Municipal”, algo comum numa rede burocrática ainda em consolidação em São Paulo na passagem do século XIX para o XX. O requerimento carrega ainda a marca da permanência do que era comum nas epístolas da Monarquia Imperial (1822-1889) na sigla “E.R.M”, “Espera Receber Mercê”. Permanência também verificada na expressão “respeitosamente pedir necessário alinhamento”, termo usado desde meados do século XIX para que as Imperiais Câmaras Municipais viabilizassem o alinhamento entre as testadas dos lotes e a via pública. No entanto, em 1893, a Câmara Municipal de São Paulo altera o procedimento exigindo a submissão de requerimento e projeto (planta, elevação e corte), instituindo assim, além do alinhamento, o expediente do Alvará de Licença para construir e reformar ao longo dos logradouros paulistanos. Ao que parece, na esteira da lentidão das mudanças do imaginário, os cidadãos da Paulicéia em profusa transformação ainda sentiam sua cotidiana vida material com os mecanismos conceituais de outra época, ou seja, com as permanências da mentalidade Oitocentista daquela que era conhecida até 1872 como uma cidade feita de barro. Ao mesmo tempo, eram tragados em definitivo pela

2 SOP – Série Obras Particulares – AHMWL-Arquivo Municipal Washington Luís - São Paulo - OP1909. 001.003. Para detalhes do projeto da referida casa ver Figura 1.

inserção de São Paulo e do Brasil nos quadros da Economia-Mundo Capitalista no auge da Era dos Impérios, das grandes migrações e na iminência das maiores catástrofes humanas encarnadas nas Guerras Mundiais (HOBSBAWN,2007). Os habitantes de São Paulo vivem no limiar de dois mundos, das cidades mudando de escala, das ruas escuras às benesses da energia elétrica, do bonde puxado por mulas ao bonde elétrico, de uma cidade recém-saída da mão-de-obra escrava para a marcante presença da mão-de-obra estrangeira. Contudo, os documentos de época parecem não corroborar certa euforia historiográfica ao lidar com a passagem para o século XX. As mudanças, mesmo crivadas pelo gérmen transformador das Revoluções, carregam durante algum tempo permanências que ajudam a desvendar fragmentos da sociedade de uma época. Para tanto, voltemos ao requerimento anteriormente citado. Dois dias

depois, no dia 4 de março, o diretor Victor Freire analisa o pedido e encaminha para o parecer de seu subordinado o engenheiro José Sá Rocha.3 Este, depois de uma presumível visita ao local, defere o seguinte e revelador despacho:

Sr. Diretor,

Esta Rua Maranhão no Cambucy – não é reconhecida pela Câmara

– Entretanto foi ha pouco tempo determinado pela Prefeitura que embora aprovando a planta não se daria alinhamento – devendo ainda o interessado assignar um termo pelo qual se obrigue a nada reclamar da Prefeitura caso esta entenda fechar a rua se assim lhe convier.

O imbróglio é conhecido no dia a dia da repartição, ruas sem registro abertas ao sabor dos proprietários, regras de higiene e salubridade não respeitadas, loteamentos desconhecidos e toda sorte de impasses relativos ao avanço do perímetro urbano da cidade. Neste sentido, no intuito de evitar a clandestinidade na construção da cidade e qualquer tipo de ônus aos cofres municipais, os fiscais se resguardam exigindo do interessado a assinatura de uma declaração na qual se comprometa a não “reclamar” qualquer direito à Prefeitura. Entrementes, para que se identifiquem os agentes que engendram o embate entre o fisco público e as ações da iniciativa privada, lembremos algo essencial: Quem assinou o requerimento? Quem assinou o “termo de obrigação” exigido pelo engenheiro Sá Rocha? No requerimento, assinando pelo proprietário interessado, consta o nome de Raul dos Santos; no “termo de obrigação”, como testemunhas do interessado Joaquim Antonio de Almeida verificam-se os nomes João Eusébio Peixoto, José Kanz e Fernando Simões. Não há qualquer menção à função dos mesmos e nem do tipo de conexão que os sujeitos citados possuem entre si, mas suas atuações frequentes e a análise de outras fontes primárias nos fornecem as pistas e apontam para a linha mestre desta breve análise, a atuação dos construtores “anônimos” da cidade de São Paulo.

Historiografia e esquecimento

3 Figura central entre os funcionários que lidavam com os imbróglios envolvendo proprietários, construtores e poder público na primeira década do século XX. Faz-se necessária uma análise mais detida sobre o papel destes agentes públicos a serviço da Diretoria de Obras.

Arautos da chamada “arquitetura menor” para a historiografia da Arquitetura e do Urbanismo contemporânea e ainda no limbo do esquecimento (mas conhecidos em demasia em seu tempo), os sujeitos acima são exemplos da complexa teia do quadro profissional da construção civil paulistana no referido período, a esmagadora presença de “leigos” na linha de frente da expansão urbana diante do paulatino e implacável discurso pela regulamentação da profissão de engenheiros e arquitetos. Raul dos Santos, João Eusébio Peixoto, José Kanz e Fernando Simões eram conhecidos construtores que não só atuavam como controladores de obras em canteiros, como também se consolidaram como empreiteiros agenciadores de obras em diversos pontos da cidade. Uma vez superada as dificuldades da identificação e para que possamos proceder às fluidas definições do campo profissional de tais sujeitos desde o último quartel do século XIX, faz-se necessário pontuar brevemente o tema na historiografia.

Figura 1. Projeto para a construção de uma casa simples na rua Coronel Maranhão, nº 1 no Cambuci em 1909.

Propriedade de Joaquim Antonio de Almeida. Projeto do ‘Arquiteto Licenciado’ Raul dos Santos.

Importantes pesquisas nos ensinam que a arquitetura civil e doméstica desde tempo coloniais era reduto de mestres-de-obras (CAMPOS,1997). De tradição lusa de longa data, de tradição germânica aqui estabelecida a partir das primeiras décadas do século XIX e de origem italiana, sobretudo a partir de 1880, os mestres dominam o cenário arquitetônico até a consolidação do ensino superior de Engenharia e Arquitetura através das primeiras levas de formados pela Escola Politécnica de São Paulo e pelo Mackenzie College nos primeiros anos do século XX. À tal constatação, no mais das vezes descrita de maneira anacrônica como um caminho inexorável à “competente” e “devida” formação profissional de ensino superior, soma-se o grandiloquente discurso da São Paulo eclética construída pelos grandes engenheiros-arquitetos estrangeiros e sobretudo pelo brasileiro – mas de formação estrangeira – Francisco de Paulo Ramos

de Azevedo. Tal é a narrativa que domina as introduções de inúmeros trabalhos que tratam da história do período. Dos lucros de capitais invertidos da exportação de café aos investimentos de famílias tradicionais, engendrou-se a narrativa da São Paulo moderna dos ilustres escritórios técnicos não só de Ramos de Azevedo, mas também de Giulio Micheli, Maximilian Hehl, Samuel das Neves e Victor Dubugras. Da vila de taipa de pilão para a cidade da alvenaria de tijolos em menos de 30 anos (1880-1910), em suma, da cidade símbolo do “progresso” brasileiro. Não há como negar certo encadeamento verossímil na mesma narrativa. Porém, a sedução de tal discurso nos levou a inúmeros esquecimentos. Como se passou do domínio dos mestres ao primado dos arquitetos diplomados? Como se formou um campo profissional de construtores na passagem da secular e dominante mão-de-obra escrava para o trabalho assalariado? Finalmente, e talvez a questão mais importante, o que era e o que representava ser construtor e construir em São Paulo? No imbricar das questões levantadas as tensões sociais inerentes ao jogo de forças, das afirmações de classe; a constatação de que não há neutralidade em tais transformações. É o que se verifica nos requerimentos aqui em questão.

Ainda nas caligrafias de um século atrás, busquemos algumas respostas para as questões levantadas analisando a inserção de inúmeras pessoas no negócio da construção civil. E é mais uma vez em nosso caso exemplar, mote central destas breves linhas, que buscamos os fios e rastros de tal trama. O ‘termo de responsabilidade’ de Joaquim Antônio de Almeida dá o tom da inserção dos construtores já citados:

(...) Pelo presente termo - declara o signatario reconhecer que a licença que a Prefeitura venha a conceder-lhe para construir no referido terreno não implica para a Municipalidade obrigação alguma de dar acesso a esse terreno, seja pela já nomeada Avenida que não é reconhecida como tendo existência oficial e que poderá ser mandada fechar quando se entender conveniente, seja por outro qualquer meio. Declara outrossim que nenhuma indennisação lhe será devida pela municipalidade se a Prefeitura mandar fechar a Avenida acima nomeada. Para constar e todos os efeitos lavrou-se este termo que será assignado pelo Snr. João Eusébio Peixoto a rogo do proprietário por não saber ler nem escrever e pelas testemunhas Sns. José Kanz e Fernando Simões(...)4

Além de evidenciar os mecanismos de poder estabelecidos pela Diretoria de Obras da Prefeitura (e o típico analfabetismo de uma República feita de poucos homens de letras e de milhões de gentes na obscura incerteza da exclusão social), nos interessa aqui entender a recorrência dos nomes identificados não só no termo citado, mas em milhares de requerimentos analisados entre 1870 e 1914. Peixoto, Kanz e Simões são construtores que figuram como testemunhas não só de proprietários, aparecem também testemunhando as ações da Diretoria de Obras. Não eram funcionários da mesma, mas diante de sua larga atuação como construtores, desenvolveram um métier de atravessadores/facilitadores entre proprietários e a burocracia da legislação em consolidação, vale dizer que os mesmos tinham uma posição privilegiada diante do órgão público que passava a ditar as regras do ato de construir. Fernando Simões seria o único dos três que viria ganhar, décadas depois, um registro de “Arquiteto Licenciado” pelo Livro de Registro de Práticos Licenciados do CREA na sua seção

4 Termo de Responsabilidade anexado ao requerimento acima citado OP.1909.001.003 – AHMWL-SP.

municipal. Simões não era um construtor diplomado e não sê-lo não era ainda um problema para os profissionais que atuavam em São Paulo desde o fim do século XIX. Em outras palavras, a maioria esmagadora dos construtores de São Paulo nunca teve outra formação que não a “leiga”, entendendo a expressão como aquela que define o construtor destituído de uma formação acadêmica superior. Portanto, entender a condição e a larga atuação dos mesmos é perceber, nos termos utilizados para designá-los, um período de indistinção e de formação do campo profissional do trabalhador da construção civil. Um período de transição que envolve a transferência da competência de construir das mãos dos chamados práticos para o âmbito da erudição acadêmica.

A construção da indistinção: de ilustres construtores à Práticos Licenciados

Em seu recente dicionário de profissionais da construção civil e doméstica da cidade de São Paulo desde o período colonial, Carlos Faggin (2009) observa:

Estamos autorizados a concluir que a erudição em nossa arquitetura é coisa recente. A improvisação prevaleceu, mas com ela a determinação e a disposição de fazer, apesar de tudo. E fez- se.

O trecho acima, da introdução do “Dicionário” realizado por Faggin, reitera uma visão pouco questionada e muitas vezes imperceptível aos olhos do mundo acadêmico, aquela na qual só há erudição nos quadros do ensino institucionalizado de âmbito universitário. No que diz respeito aos construtores de São Paulo, só a partir de regulamentação da profissão - em 1933 - que o número de construtores não diplomados passou a declinar no quadro da produção arquitetônica paulistana. Portanto, como aponta Faggin, só a partir da década de 1930 que se completa a transição entre formação “leiga” e formação “erudita”. Em outras palavras, durante “350” anos a cidade foi construída por leigos e “apesar de tudo, fez-se”. Ora, a despeito do ‘juízo de valor’ exposto acima, a erudição pressupõe não apenas um saber acadêmico, mas a consolidação de um discurso e de uma prática que se não exclui os construtores não diplomados, escamoteia as nuances dos profissionais aqui em questão. Muitos dos construtores hoje esquecidos na história de São Paulo eram

autodidatas, conforme atestam as memórias familiares do engenheiro Nilton Simões, neto por via materna e paterna de dois construtores práticos licenciados.5 Simões aponta que seu avó materno, Alberto Tanganelli, “arquiteto licenciado” pelo CREA em 1933, natural de Castiglion Fiorentino na região da Toscana e nascido em 28 de maio de 1887, chegou ao Brasil aos 11 anos de idade. Ainda menino aprendera com o pai os fundamentos básicos do canteiro de obras e como servente começou a trilhar os passos que o levariam a uma longa carreira na profissão. A priori, o pai de Tanganelli imigrara já na condição de mestre-de-obras, tendo encontrado na cidade de São Paulo um mercado da construção civil em franca expansão. Uma vez nos canteiros, o jovem aprendeu na prática lições de estética e harmonia, geometria e cálculo. Já estabelecido

como “competente” profissional e gozando do prestígio adquirido por outros tantos italianos, Tanganelli versava sobre os fundamentos da arquitetura e das práticas do canteiro, citando lições de Vignola. Argumentava também sobre as benesses e o uso

5 Entrevista concedida em 25 de janeiro de 2011 pelo Engenheiro Newton Simões, presidente da Racional Engenharia. Neto pela via materna de Alberto Tanganelli e pelo lado paterno de Raul Simões, também prático licenciado e irmão de Fernando Simões.

crescente do concreto armado nas edificações, aludindo ao trabalho do Eng. Alfredo Pujol e suas experiências com a nova técnica construtiva. Versando ainda suas memórias sobre o avô Tanganelli, Simões expõe um pitoresco caso. Provavelmente nos idos dos anos de 1930, o avô comprara um terreno na região de Santana. Num domingo em família colocou todos no seu Ford ‘Bigode’ e resolveu visitar o dito terreno. Uma vez lá, estacou encolerizado diante do terreno, um belo pântano típico das regiões de várzea do rio Tietê, um grande engodo, fora tapeado pelo vendedor. De uma rigidez excessiva, totalmente explosivo e passional, o toscano Tanganelli foi à casa do “golpista” e se engalfinhou com o mesmo até arrancar-lhe um pedaço da orelha com uma mordida. A história é digna de uma boa crônica sobre a expansão urbana de São Paulo e suas desventuras. No entanto, faz-se necessário não cair nas belas armadilhas literárias das memórias contadas pelo neto de Alberto Tanganelli. A despeito dos arroubos e exageros de uma trama romanesca, a realidade de Alberto Tanganelli foi a regra e não a exceção entre os construtores de São Paulo. De fato, a erudição e o domínio das técnicas construtivas tradicionais era parte do conhecimento, na teoria e sobretudo na prática, destes mesmos construtores, como já demonstrou no caso norte-americano Mary Woods (1999). Não cabe aqui nestas linhas uma análise mais profunda sobre a formação leiga, falemos um pouco mais sobre os termos, sobre a condição do construtor paulistano em fins de século.

Figura 2. Registro CREA, na sua seção municipal, de Alberto Tanganelli (avó materno do entrevistado Eng. Newton Simões) com a “Licença de Arquiteto” em 17 de outubro de 1934. Fonte: AHMWL-SP.

José Kanz, Fernando Simões, João Eusébio Peixoto, Alberto Tanganelli e tantos outros construtores, assim como as designações que os identificavam – empreiteiros, construtores, mestres de obra, controladores de obras, arquiteto-construtor, arquitetos licenciados e etc. – são a expressão da referida indistinção, entendida em parte como a

possibilidade de ocupar posições intermediárias que não eram mais contempladas pela tradicional condição do mestre de obras, e tão pouco eram atendidas pelo limitado quadro de profissionais acadêmicos que só aos poucos foram se afirmando sobre os práticos, em suma, a construção de uma indistinção que por longo período permitiu a atuação dos não diplomados. Ora, quando as pressões de classe do início da Era Vargas possibilitaram a aprovação do Decreto Federal n. 23.569, de 11 de dezembro de 1933 regulamentando a profissão de engenheiro, arquiteto e agrimensor, criou-se uma clivagem oficial antes existente só na prática, os construtores diplomados de um lado e nas conformidades da lei, e os construtores “práticos licenciados” de outro ainda com permissão de atuação desde que comprovassem mais de cinco anos no exercício da profissão e não cometessem nenhum tipo de erro e/ou infração, do contrário a total impossibilidade de se atuar nos termos da nova lei (FICHER, 2005). Era o declínio de um tempo em que o exercício da profissão esteve fora dos quadros do ensino institucionalizado, e fora das mãos dos profissionais diplomados. Muitos construtores alcunhados a partir de 1933 de “práticos licenciados” atuavam, a exemplo de Alberto Tanganelli, desde o começo do século XX, porém suas sólidas carreiras foram lançadas literalmente no túmulo do esquecimento, uma vez que vários práticos obtiveram apenas a permissão para construir em cemitérios. A clivagem exposta acima nos coloca outro esquecimento. Projetar os termos “arquiteto”, “mestre-de-obras”, “empreiteiro”, “engenheiro-construtor” e outros no período aqui referido (1870-1933) é incorrer em retumbante anacronismo, uma vez que não eram termos com a exatidão das definições atuais (PARETO JR, 2011). E vai além, diante da intensa expansão urbana e da necessidade de mão-de-obra especializada, inúmeros foram os construtores que se valeram de “títulos” de autodenominação. Mais uma vez, os requerimentos da Série Obras Particulares nos dão a dimensão e variedade de termos utilizados pelos agentes da construção civil: “Mestre-construtor”, Architecto- Empreiteiro”, “Architecto-Construtor”, “Controlador de Obras”, e até mesmo o título visto comumente entre os diplomados: “Engenheiro-Architecto”. De fato, tais termos designavam aqueles construtores que tinham alçado voo mais largo e que, muitas vezes, tinham deixado a condição de pedreiros para engendrarem redes associativas de construtores, como o caso dos já citados José Kanz e Fernando Simões, responsáveis entre 1906 e 1914 por 2.117 projetos num total de 27.790 recebidos pela Diretoria de Obras no período (PARETO JR, 2011). Ambos expressam a dinâmica de atuação dos “leigos” ou “anônimos” sendo responsáveis por praticamente 8% do total de obras legalmente construídas na cidade. A indistinção dos termos era a possibilidade de distinção num mercado de crescimento avassalador, num momento de profunda transformação não só em São Paulo, mas em toda a sociedade vivente no âmbito da economia capitalista. Os conhecidos (na época) construtores de outrora e alcunhados “práticos” a posteriori viveram entre dois cruciais momentos da história contemporânea, da cidade do século XIX e sua ordem salubrista à velocidade vertiginosa e excludente das metrópoles do século XX. Foi no limiar de tais mudanças que toda uma geração de construtores se afirmou, esboçou um campo profissional e um nicho de mercado de trabalho. E não foram apenas os italianos e o prestígio passageiro dos mesmos junto às elites tradicionais. Foi também a contribuição germânica - anterior à italiana - fulcral na difusão do gosto eclético e das novas técnicas construtivas. Sem contar a continuidade dos já conhecidos mestres portugueses tão caros à arquitetura colonial e mesmo dos muitos pedreiros pretos, pardos e pobres que foram anulados pela hegemonia das narrativas sobre imigrantes brancos e mercado de trabalho em São Paulo (SANTOS, 2008).Germânicos, italianos, portugueses e brasileiros - formados por Liceus de Artes e Ofícios ou simplesmente

pela prática cotidiana - foram essenciais não só para atender a demanda da construção civil, abriram também o caminho para a institucionalização do ensino profissional, uma vez que sua larga atuação em todas as regiões da cidade colocou na berlinda a necessidade de um debate sobre a competência de construir, fomentado essencialmente pelos diplomados que sofriam com uma feroz concorrência. Nesta lógica, vale lembrar que as tensões sobre a regulamentação da profissão sempre envolveram os interesses econômicos das chamadas “fatias” de mercado, ou seja, afastar a concorrência (no caso em questão) dos não diplomados. De qualquer maneira, compreender a formação do mercado da construção civil e da profissão de engenheiro/arquiteto no período em questão é analisar a trajetória dos práticos - e seus embates dialéticos na construção/desconstrução de um ‘círculo privilegiado’ da profissão(STEVENS, 2003) - e definitivamente inserir suas histórias no amplo quadro de definição das práticas da arquitetura e do urbanismo em São Paulo.

Referências bibliográficas

CAMPOS, Eudes. Arquitetura Paulistana sob o Império: aspectos da formação da cultura burguesa em São Paulo”. Tese de doutorado em “Estruturas Ambientais Urbanas”- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo,1997.

FAGGIN, Carlos A.M. Arquitetos de São Paulo: dicionário de artífices, carpinteiros, mestres-de-obras, engenheiros militares, engenheiros civis e arquitetos nos primeiros 350 anos contados da fundação da cidade. São Paulo: FAUUSP, 2009.

FICHER, Sylvia. Os Arquitetos da Poli: Ensino e Profissão em São Paulo. Edusp: São Paulo, 2005.

HOBSBAWN, E.J. A Era das Extremos,1914-1991. São Paulo: Cia das Letras,2001

PARETO JR. L. O cotidiano em construção: os Práticos Licenciados em São Paulo, 1893-1933. Dissertação de Mestrado. FAUUSP, 2011.

SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza: 1890-1915. São Paulo:Anablume/Fapesp,2008.

STEVENS,Garry.O círculo privilegiado: fundamentos sociais da distinção arquitetônica. Brasília:UNB, 2003.

WOODS, Mary N. From Craft to Profession. The Practice of Architecture in Nineteenth-Century America.Berkeley/Los Angeles/London, University Of California Press,1999.