Resumo

Roberto Burle Marx, artista-paisagista que em consonância com a modernidade proposta pelas artes e pela arquitetura no século XX, buscou atribuir identidade ao paisagismo moderno brasileiro combinando a inovadora expressão plástica com o uso de espécies nativas brasileiras. O papel desempenhado por ele tanto na elaboração de jardins para edifícios quanto na produção do espaço urbano é de suma importância histórica. Seu discurso modernista, representado pelos seus jardins, praças e parques, associado as transformações de sua expressão artística, estão materializados nas propostas para capital federal há mais de cinquenta anos. Em julho de 2011, o governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, aprovou o decreto nº 33.040, que reconhece o valor patrimonial e protege nove jardins de Burle Marx na capital: Superquadra 308 Sul, Banco do Brasil, Palácio do Itamaraty, Palácio do Jaburu, Ministério da Justiça, Praça dos Cristais, Tribunal de Contas da União, Teatro Nacional e Parque da Cidade. O presente artigo narra uma inédita trajetória do artista na cidade e apresenta uma listagem de todas as suas propostas para a capital federal, incluindo os projetos que não foram realizados, traçando um panorama de suas proposições brasilienses e evidenciando as marcas deixadas por ele na história da cidade.

Palavras-chave: Burle Marx, paisagismo, espaço urbano, biografia, patrimônio

Abstract

Roberto Burle Marx , a landscaper artist who ,in line with modernity proposed by arts and architecture in the twentieth century , sought to assign identity to the Brazilian modern landscaping combining innovative artistic expression with the use of native Brazilian species . The role played by him both in developing gardens for buildings as in the production of urban spaces is of great historical importance . His modernist discourse , represented by its gardens , squares and parks , associated to its artistic expression transformations , are embodied in the proposals for the federal capital for over fifty years. In July 2011 , the governor of the Federal District , Agnelo Queiroz , adopted Decree No. 33,040 , which recognizes the asset value and protects nine gardens of Burle Marx in the Capital : Superquadra 308 South , Bank of Brazil , Itamaraty Palace , Palace of Jaburu , Ministry of Justice , the Crystal Plaza , Court of Audit , National Theatre and City Park. This article chronicles an unprecedented trajectory of the artist in the city and shows a listing of all its proposals for the federal capital , including projects that were not acomplished, drawing a picture of his brasilienses propositions and showing the marks left by him in the history of city.

Keywords: Burle Marx, landscaping, urban space, biography, heritage

O edifício e a cidade: diferentes representações em escalas distintas

Apesar da formação em pintura, praticamente toda a produção paisagística Roberto Burle Marx (1909-1994) é vinculada ao desenvolvimento da “nova” arquitetura, ou seja, foi a partir do contato com os arquitetos modernistas que Burle Marx adquiriu a base para criar seus jardins: o edifício moderno.

Colaborador de importantes nomes da arquitetura moderna brasileira, tais como Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Rino Levi, os irmãos Roberto e tantos outros, Marx encontrou no diálogo do edifício com o jardim sua expressão pessoal, que passou a ser a síntese da linguagem paisagística moderna. Assim, além de inovar na forma dos jardins, elevava a aparência do edifício a uma dimensão superior.

No entanto, ao contrário da produção de muitos paisagistas que restringem o fazer paisagístico a uma complementação de uma produção arquitetônica, Burle Marx expandiu seu trabalho na dimensão do urbano. A mesma excelência da expressão formal que ele conseguiu nos edifícios dos colegas modernistas, ele transmitiu na síntese das propostas para o espaço da cidade. Portanto é possível afirmar que seus trabalhos nos edifícios e na cidade são indissociáveis tanto na forma artística quanto quanto na expressividade do espaço criado, além de sempre ocorrem simultaneamente durante sua vida.

Marx insere-se em uma época de produções paisagísticas ecléticas, em que o jardim clássico e o romântico dominavam os projetos paisagísticos de praças e palacetes no Brasil. Seus primeiros trabalhos, mesmo inovando com a utilização de vegetação autóctone brasileira, refletem uma configuração ainda vinculada aos cânones clássicos, com marcante geometrização e simetria das formas, como se pode ver nas primeiras propostas feitas para os jardins e praças de Recife.

No projeto dos jardins do Ministério da Educação e Saúde (Fig. 1), no Rio de Janeiro em 1938, Marx consolida o uso de formas irregulares, também conhecidas como ameboides ou biomórficas, que possuem segundo Alvarez (2007) uma estreita referência na arte de Jean (Hans) Arp (1886-1966) e Joan Miró (1893-1983). A fuga da rígida forma geométrica marca a tendência que domina os projetos do final da década de 30 e da década de 40, tais como os da Praça Salgado Filho (RJ, 1938), do Instituto de Resseguros do Brasil (RJ, 1939), do Conjunto da Pampulha (MG, 1942), da Praça Visconde de Mauá (RJ, 1944), da Residência Odete Monteiro (RJ, 1948).

Figura 1. Jardins do Ministério da Educação e Saúde. Fonte: Nucléo Ap Porto, 2009

Contudo, a produção do paisagista não se restringe apenas às formas biomórficas. A partir da década de 50 “se manifestam com notável constância projetos com uma ordenação geométrica mais precisa” (MOTTA, 1983, p.86). Os exemplos da Praça da Independência (PB, 1952), a Praça Bernardelli (RJ, 1955), Residência Francisco Pignatari (SP, 1956) evidenciam que o tratamento orgânico e o geométrico coexistem em um mesmo espaço.

A partir da década de 70, os trabalhos de paginação de piso com elementos abstratos, intensificam-se e tornam-se constantes. O movimento de arte Neoconcreta, surgido no Rio de Janeiro no fim dos anos cinquenta como uma reação a rigidez do concretismo, está presente nas pesquisas do paisagista que buscava romper com o desenho puro geométrico. Santos (1999) define que essa expressão representa a:

[...] complexidade geométrica na qual o enigma das manchas, evocando múltiplas texturas, a presença perturbadora de cor e imediatismo dos materiais brutos se reúnem em uma composição anunciadora da arte Abstrata Lírica no seio da cidade. A progressão dos planos sobrepostos ou sequência de linhas quebradas são parte de um continuum em constante movimento [...]. (SANTOS, 1999, p.)

Os grandes projetos públicos são a marca deste período, cujo marco é o Passeio de Copacabana (Fig. 2). A partir de então, surgem nas principais cidades brasileiras o que Santos (1999) chama de jardim “mineral”, nos quais a expressividade das plantas de forração da fase biomórfica é substituída por uma radicalização do desenho da paginação de piso principalmente em pedra portuguesa. Outras obras importantes incluem-se nesta experiência, como o Largo da Carioca (1981) no Rio de Janeiro, o Biscayne Boulevard (1988) em Miami e várias propostas em Brasília, entre as quais a Praça das Fontes e a Praça dos Cristais na década de 1970.

Figura 2. Projeto do Calçadão de Copacabana. Fonte: Nucléo Ap Porto, 2009

Ressalta-se, contudo que todas diferentes formas de expressão citadas coexistem e mediante os exemplos evocados, esclarece e dá à justa medida de sua dimensão artística e interferência tanto na arquitetura quanto na paisagem urbana.

A trajetória de Burle Marx em Brasília

Ao se buscar informações sobre a trajetória profissional de Burle Marx em Brasília, constatou-se que os estudos realizados apresentavam lacunas, não relacionando obras realizadas ou projetos elaborados. As listas das obras do artista em Brasília não conferem entre si, o que demandou a conferência de cada uma e a confrontação das mesmas com as informações contidas nos arquivos do Escritório Burle Marx e Cia Ltda.

A partir da pesquisa em livros, reportagens, consultas ao arquivo mencionado e à recorrência a entrevistas, foi possível traçar um percurso do paisagista na Capital Federal. O envolvimento de Roberto Burle Marx com Brasília começou antes mesmo que futura capital saísse do papel. A participação do paisagista nos primeiros trâmites do concurso do projeto de Brasília juntamente com Affonso Eduardo Reidy é

descrito por Kamp (2005)

[...] Então, depois de escolher e mapear cinco sítios, num dos quais Brasília seria construída, a missão seguinte do marechal José Pessoa, presidente da Comissão de Localização da Capital, foi convidar Affonso Eduardo Reidy para o planejamento da cidade junto com Roberto Burle Marx. Foram realizadas várias reuniões no ateliê do Leme, com a participação de Oscar Niemeyer, Rino Levi, Jorge Moreira e outros arquitetos de renome. Decidiram fazer um concurso com um júri internacional, presidido por William Holland, concurso ganho por Lucio Costa, autor do plano-diretor da cidade [...] (KAMP, 2005, p.132).

Segundo Bruand (1991), Reidy, apoiado por Burle Marx, sugeriu que o projeto fosse desenvolvido por um arquiteto estrangeiro, cogitando um possível convite a Le Corbusier. No entanto “as circunstâncias tinham mudado desde então; nesse meio tempo, a arquitetura brasileira tinha-se imposto em escala mundial e os meios profissionais tinham plena consciência disso, [...] a reação quase unânime dos colegas obrigou Reidy e Burle Marx a abandonarem a ideia” (BRUAND, 1991, p.355).

A parceria com nomes importantes do Movimento Moderno brasileiro, como Lucio Costa e Oscar Niemeyer, possibilitou a Burle Marx a participação em vários projetos paisagísticos de obras públicas na capital. Considera-se sua primeira proposta para Brasília o projeto do Parque Zoobotânico, de 1960-61. Nele, Marx buscava integrar a flora e a fauna de diferentes regiões, inovando com “o desejo de evidenciar o significado vital, ecológico, científico e artístico” do paisagismo (MOTTA, 1983, p.117). A área prevista localizava-se nas proximidades do Eixo Monumental, local onde atualmente encontra-se o Estádio Mané Garrincha. Segundo Motta (1981), Burle Marx, com croquis, apresentava as linhas gerais do projeto que compreendia aspectos peculiares a regiões secas, como o sertão, e úmidas, como a Amazônia. O desejo de expor a diversidade da flora e fauna brasileira em um só local pode ser encarado como um ato de afirmação e valorização da identidade nacional, ideal compartilhado pelos intelectuais modernistas de então.

Mesmo com um estudo preliminar e um detalhado programa de necessidades, o Parque Zoobotânico não foi implantado. Nos anos seguintes, porém, Marx dedicou-se a projetos de particulares em Brasília, realizando os jardins da Embaixada dos Estados Unidos (1960) e os da Embaixada do Canadá (1961). Em 1962, propôs para o Banco do Brasil no Setor Bancário Sul, na área pavimentada que o circunda vários canteiros de diferentes tamanhos que exibiam uma vegetação exuberante.

Somente em 1965, voltou a projetar jardins para o governo, com o projeto do Ministério das Relações Exteriores, também conhecido como Palácio do Itamaraty (Fig. 3). O edifício de autoria do arquiteto Oscar Niemeyer evidenciou-se ainda mais com os jardins aquáticos e internos propostos por Burle Marx, sendo esses considerados uma entre as obras mais importantes do paisagista em Brasília.

Figura 3. Palácio do Itamaraty e jardins externos. Fonte: Arquivo Público DF, 1977 Sobre este projeto específico, Haruyoshi Ono afirmou que

[…] o embaixador Wladimir Murtinho foi quem o levou para trabalhar lá porque, até então, Roberto não tinha conseguido nenhum projeto por lá, por causa de desentendimentos no passado com o presidente Juscelino Kubitschek (ZAPPA, 2009, s.p.).

De acordo com Augusto Burle (2011) o motivo da briga com Kubitschek seria decorrente de pagamento não recebido pelo projeto do conjunto da Pampulha, quando o presidente era ainda prefeito de Belo Horizonte. Outra polêmica dos anos 60 inclui o desejo que Burle Marx tinha de implantar um parque na área correspondente à esplanada dos ministérios. Kamp (2005) descreve que o parque

[...] era dividido em cinco grandes segmentos, representando a flora das regiões do Brasil com suas plantas mais características. Um grande lago cortaria todo o conjunto e este em função da diferença de nível, seria dividido em pequenas barragens de onde a água desceria, para formar um verdadeiro véu e contribuir para melhorar sensivelmente o microclima do seu entorno. No último segmento toda água excedente seria filtrada e aproveitada nas instalações do Congresso Nacional. (KAMP, 2005, p. 155)

Sobre este projeto, Haruyoshi Ono recordou:

[...] Roberto sempre quis plantar naquela área, que era bem inóspita e merecia uma arborização. Ele via as pessoas caminhando ao sol. Só tinha o gramado. Muitos anos depois, quando José Aparecido foi governador e Roberto fazia parte do Conselho da Cidade, juntamente com Oscar Niemeyer e Lucio Costa, nosso escritório foi chamado pelo governador para fazer o paisagismo dessa área, que ia da Rodoviária até o Congresso. Fizemos um estudo e chamamos o Lucio Costa para ver o que ele achava. Pusemos pequenos renques de

palmeiras entremeados por alguma arborização, grupinhos de árvores para as pessoas terem uma área de sombra ao andar nas calçadas. Lucio Costa olhou e disse: “É, está muito bonito, mas não concordo com você, Roberto. Preferia que fosse uma área aberta para que daqui a gente possa ver os volumes arquitetônicos, e pelos lados também”. Na mesma hora Roberto aceitou e comunicou ao governador. Encerramos o assunto. Para Roberto, sempre que houvesse um conceito que o convencesse, ele aceitava. (ZAPPA, 2009, s.p.)

Kamp (2005) relata que ainda em 1965, Burle Marx promoveu dois grandes trabalhos de decoração no Palácio do Planalto, um para receber o presidente da Itália, Giovani Gronchi, e outro para o Grão-Duque de Luxemburgo. Nesta última obra, havia “a construção de torres de cinco metros de altura, ornamentadas com flores e frutas. Para a decoração foram feitos nove suportes de bambu, com plantas vivas, orquídeas e bromélias, entre folhas vermelhas e douradas, boa parte extraída da flora do cerrado, muito rica e totalmente desconhecida” (KAMP, 2005, p. 179 e 181).

Apesar das atuações na cidade nos anos 60, foi na década de 70 que Burle Marx desenvolveu o maior número de projetos de grande importância, como os jardins do Ministério das Forças Armadas (Praça dos Cristais) (1970), do Ministério da Justiça (1970), do Tribunal de Contas da União (1972), da Superquadra 308 Sul (1972), da Residência da Vice-presidência da República (1975), do Teatro Nacional Rodrigo Santoro (1976) e o Parque Pithon Farias (1976).

Especula-se ter havido um desentendimento entre Burle Marx e Oscar Niemeyer nesse período. Todavia, Haruyoshi Ono afirmou durante uma entrevista para o presente trabalho em 2011, que tudo não passou de divergência de opiniões, sem que houvesse, de fato, rompimento entre Niemeyer e Marx. Em contrapartida Santos (1999) afirma que Niemeyer não aprovava o envolvimento de Marx com os militares “não lhe agradava nada a neutralidade política de Burle Marx frente a ditadura militar e a forma como se movia entre os círculos militares de Brasília” (SANTOS, 1999, p. 197).

Fora as especulações, os anos de 1970 não foram somente a época de ouro da concepção dos jardins de Burle Marx em Brasília, mas também de seu intenso envolvimento com eventos na cidade. Apesar de receber medalhas e títulos de diversas instituições nacionais e internacionais desde 1941 (Medalha de Ouro da Escola Nacional de Belas Artes), foi somente em 1971 agraciado pelo Itamaraty com a Comenda de Ordem do Rio Branco em Brasília.

O reconhecimento do artista na capital federal prosseguiu com a exposição de pinturas, desenhos e tapeçarias na Sala de Exposições do Setor de Difusão Cultural e na Sala de Exposições da Avenida W3 Sul, em 1975, promovida pelo Governo do Distrito Federal por meio da Secretaria de Cultura e da Fundação Cultural do Distrito Federal. Neste mesmo ano, Burle Marx participou da mostra de aquisição para o Acervo do Museu do Artista Brasileiro, promovida pelo Conselho de Artes da Fundação Bienal de São Paulo e Fundação Cultural de Brasília. E em 13 de setembro deste ano, foi convidado pela Fundação Cultural do Distrito Federal para proferir uma palestra com o tema “A influência das mudanças sociais nos jardins”.

Os anos 80, ao contrário da década anterior, foram para Marx de realização de poucos

projetos em Brasília, resumindo-se a propostas particulares e reformas de projetos anteriormente implantados. Porém, neste período o paisagista foi convidado como conselheiro de cultura da capital. Segundo depoimento de Haruyoshi Ono: “ele ia diversas vezes a Brasília participar das reuniões de conselho”. Essas muitas vezes entediantes eram acompanhadas pelo exercício de preciosos desenhos em que Marx realizava em rascunho. Sua presença como conselheiro pode ser confirmada em uma publicação da Revista Módulo de 1989:

Muito me alegrou o fato do Governador de Brasília, José Aparecido ter-me chamado para fazer parte do Conselho que trata dos atuais problemas da cidade. Fiquei contente, sobretudo, pela possibilidade de refazer uma série de projetos que, seja pela ausência de orientação por parte dos administradores ou pela falta de uma continuidade no tratamento, tornaram-se irreconhecíveis com o passar do tempo. [...] Hoje, a possibilidade de restaurar esses projetos com o apoio integral do Governador deixa-me muito satisfeito porque todas essas obras representam momentos importantes da minha vida como paisagista. Não acredito que possa mexer em tudo mas creio que muita coisa poderá ser feita. (MARX, 1989-90, s.p.)

Nesta época foram realizadas duas exposições de suas pinturas na cidade, em 1985 na Galeria de Arte e 1989, na Praxis Galeria de Arte, que contou com sua presença e de várias personalidades, como o famoso escritor português José Saramago (Fig. 4).

Figura 4. Exposição na Praxis Galeria de Arte. Fonte: Arquivo Público DF, 1988

A década de 90 foi marcada pelo processo de degradação de seus jardins realizados em Brasília. Em 15 de maio de 1990, o Jornal BSB Brasil publicou uma entrevista com Roberto Burle Marx durante sua visita a Brasília para inauguração do Burle Marx Habitat, bloco de apartamentos construídos pela Paulo Otávio Empreendimentos na quadra 107 Norte. Nesta ocasião revelou que não estava muito satisfeito com o tratamento dado aos jardins da capital.

Tenho visto muitos jardins mal cuidados como o do Ministério da Justiça, ou da Praça dos Três Poderes onde observa-se que os requisitos básicos para a conservação não estão sendo cumpridos. [...] Ontem mesmo, passando em frente ao Itamaraty, observei que o jardim está otimamente tratado, mas

as coberturas dos esgotos foram pintadas de branco, chamando a atenção para um detalhe que não deveria ser notado. Isto demonstra falta de orientação segura no que se refere a jardins (BURLE MARX, Jornal BSB Brasil, 15/05/1990).

Com seu falecimento em 4 de junho de 1994, vários jornais na cidade noticiaram seus feitos memoráveis e suas obras em meio a depoimentos de personalidades ilustres e amigos próximos. Um dia após a sua morte o Jornal de Brasília, publicava o desabafo de Darcy Ribeiro “raramente surgem pessoas que merecem ser tratadas como gênio”, de Oscar Niemeyer “a morte de Burle Marx é uma perda muito grande devido a importância de suas obras” e de Lucio Costa “o Brasil e o mundo perdem um grande homem. Eu perco um grande amigo”.

Todavia, passadas as comoções da perda do mestre paisagista, seus jardins foram perdendo destaque e degradando-se cada vez mais. Em 1995, o Correio Brasiliense publicou uma reportagem intitulada “Brasília esqueceu Burle Marx” de autoria de Heloisa Daddario. Com certa indignação a reportagem começa da seguinte forma:

[...] As pedras dos jardins do Teatro Nacional são usadas como pés para fogareiros para mendigos. O espelho d’água do Banco do Brasil serve como tanques para lavadeiras nos fins de semana. Nos dias de calor, vira piscina. [...] O Parque da Cidade, de sua autoria foi tão transformado que o paisagista quando esteve aqui, um ano antes de morrer, chegou a dizer que o parque não tinha mais nada a ver com seu projeto. (DADDARIO,1995, p.6).

Manutenções pontuais em alguns jardins, sem qualquer planejamento geral, foram feitas ao longo dos anos, mas os resultados não são significativos. Em 2007, no entanto, por iniciativa da Prefeitura Militar de Brasília com outras parcerias, iniciaram-se as obras de restauração da Praça dos Cristais (figura 5). Reinaugurada em 2009, no ano do centenário de Burle Marx, a praça restaurada trouxe vários questionamentos quanto à preservação das outras obras na cidade e a necessidade de tombar os modernos jardins da capital federal.

Figura 5. Praça dos Cristais após restauração. Fonte: Autora, 2011

A relação das propostas para a capital federal e o reconhecimento do valor patrimonial

É importante ressaltar que o levantamento completo das obras brasilenses de Marx nunca foi feito. Há apenas listagens de diversos autores evidenciando as principais

propostas. Tem-se, então, um levantamento preliminar baseado nos levantamentos dos autores Motta (1981), Eliovson (1991) e Leenhardt (1992). Contudo, já em primeira análise, percebe-se a ausência do projeto paisagístico para Superquadra 308 Sul e algumas dúvidas sobre o que foi efetivamente construído.

A primeira composição da lista foi conferida mediante pesquisas nos arquivos do Escritório Burle Marx & CIA LTDA localizado no Rio de Janeiro-RJ. Atualmente, o escritório conta com o maior acervo dos projetos de Burle Marx e disponibiliza aos pesquisadores as plantas digitalizadas de vários. Sendo assim, realizou-se uma pesquisa prévia no cadastro do escritório das propostas para Brasília, o que permitiu listá-los conforme a tabela 1.

Tabela 1. Obras de Roberto Burle Marx em Brasília. Fonte: Autora, 2012

Ano Obras Ano Obras

1958 Palácio da Alvorada 1974 Câmara dos Deputados – Painel

Embaixada dos Estados Unidos Residência dos Diretores da Caixa Econômica

1960

Banco do Brasil Embaixada da Áustria

Programa Parque Zoobotânico 6° COMAR (Comando da Aeronáutica)- Prédio do Comando

Residência Arnaldo Carrilho

Parque Recreativo Rogério Pithon Farias

1962

1963

1964

1965 Ministério das Relações Exteriores 1980 Confederação Nacional dos Trabalhadores do

Comércio

Ministério das Relações Exteriores – 8° Pavimento 1981 Tribunal Superior do Trabalho Quadras 407 e 408 Sul 1982 Residência Edgard H Hasselmamn

1966

1967

Anexo da Câmara dos Deputados – Estacionamento Parkshopping de Brasília Palácio da Alvorada 1985 Residência Joseph Safra

Ministério das Relações Exteriores – Esculturas Residência Moema Leão de Souza

M. Relações Exteriores – Estacionamento Parque Pithon Farias - Praça das Fontes

Tribunal Federal de Recursos Ministério do Exército – reforma Anexo da Câmara dos Deputados – Estacionamento Teatro Nacional – reforma

1968

1969

Instituto Central de Artes da UnB Mercado das Flores

Santuário D. Bosco Quadras Econômicas da F.P.T.G.

1970 Ministério do Exército Grand Circo Lar

Ministério da Justiça

1972

Superquadra 308 Sul 1991 Residência Unibanco

Ministério da Agricultura 1993 FUNCEF – Fundação dos Economiários Federais

Palácio do Desenvolvimento 1994 BID

Tribunal de Contas da União s. ano

Trevo em Brasília – SHI Península

1973

Escola Fazendária Eron Palace Hotel BNDE

Banco Central Congresso Nacional

Nota-se um aumento substancial de propostas em relação ao levantamento dos autores

Motta (1981), Eliovson (1991) e Leenhardt (1992). Entretanto, percebe-se que vários projetos aparecem repetidas vezes em diferentes anos. Entende-se que a repetição ocorreu porque provavelmente Burle Marx tenha elaborado mais de uma proposta, revisto propostas anteriores ou até mesmo realizado reformas em alguns projetos.

Durante esse levantamento, percebeu-se que faltam alguns projetos no arquivo (provavelmente se perderam ou não passaram de propostas preliminares). Haruyoshi Ono afirmou que não havia um trabalho efetivo para o arquivamento de propostas na década de 60, sendo esse trabalho iniciado tardiamente, e por isso, muitas propostas perderam-se.

Em julho de 2011, o governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, aprovou o decreto nº 33.040, que protege nove jardins de Burle Marx na capital. Todos os jardins tombados são destinados ao público e estão localizados dentro do perímetro de tombamento do Plano Piloto (Fig. 6).

Figura 6. Localização dos jardins tombados: 1) 308 Sul; 2) Banco do Brasil; 3)

Palácio do Itamaraty; 4) Palácio do Jaburu; 5) Ministério da Justiça; 6)Praça dos Cristais; 7) Tribunal de Contas da União; 8) Teatro Nacional; 9) Parque da Cidade. Fonte: Processo de Tombamento, 2009

O processo de tombamento encontra-se atualmente arquivado na Secretaria de Cultura do DF e possui uma extensa parte teórica estruturada em dois capítulos principais: “O artista” e “O Paisagismo para Brasília”. A primeira parte do trabalho centra-se na biografia e na produção dos jardins de Marx até a década de 90, incluindo a descrição das plantas descobertas por ele e os prêmios e honras que lhe foram concedidos.

[...] a importância do conjunto dessa obra como representação nacional, o seu valor artístico, paisagístico e histórico, assim como o renome de Burle Marx como seu paisagista justificam o tombamento desses jardins históricos como patrimônio histórico e cultural. Esse instituto irá assegurar a constituição de medidas de preservação, conservação e gestão, essenciais para manutenção desse acervo de relevado valor cultural, paisagístico e turístico digno da capital do País e da cidade de Brasília (PROCESSO DE TOMBAMENTO, 2011, s. p.).

O ponto forte do documento está na descrição da relação dos projetos paisagísticos de Burle Marx para Brasília e no estudo referente aos jardins tombados, esses muito bem detalhados, são acompanhados da lista de espécies utilizadas em cada projeto e de fotos atuais. Anexo ao processo tem-se as cópias dos projetos originais de cada jardim. O tombamento, mesmo recente, apresenta resultados. Alguns jardins contam hoje com placas de identificação e informações gerais para auxiliar os visitantes.

O processo de tombamento, além de simbolizar o reconhecimento da importância dos jardins do artista, fundamental para a valorização de sua obra, permite que a capital federal seja conhecida tanto por sua arquitetura imponente e pelo desenho urbano inovador, quanto pelo seu primoroso paisagismo.

Referências bibliográficas

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  1. Ed. Salamandra.

JORNAL BSB BRASIL. Burle Marx, Planta Exótica, s. p., Brasília, 15/05/1990. JORNAL DE BRASÍLIA. Morre aos 84 anos o paisagista Burle Marx, s. p., Brasília-

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LEENHARDT, Jacques. Nos Jardins de Burle Marx. Editora Perspectiva, São Paulo, 1992.

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ZAPPA, Regina. Regina Zappa Entrevista Haruyoshi Ono – 19 Maio 2009. In: Roberto Burle Marx: Uma Experiência Estética - Paisagismo e Pintura. Editora Queen Books, Rio de Janeiro, 2009.