Resumo

Este estudo avalia a tese de que o planejamento é uma estratégia de governo voltada para o ‘governamento’ das populações urbanas. Para discutir essa afirmação toma-se como referência a discussão pós-estruturalista sobre poder, estado e “governamento” nas sociedades contemporâneas. Tomando o planejamento como uma prática de governamento, o texto avalia a experiência Brasileira dos últimos dez anos e procura demonstrar como o planejamento enquanto prática de regulação urbana se tornou uma estratégia de legitimação do governar.

Palavras-chave: Governamentalidade, Planejamento, Poder, Governo

Abstract

This study evaluates the thesis that planning is a government strategy aimed at 'governing' urban populations. To discuss this statement the paper takes as a reference point the post- structuralist discussion of power, the state and government in contemporary societies. By taking planning as a practice of government the text assesses the Brazilian experience of planning over the last ten years, and shows how planning as a practice of urban regulation has become a legitimation strategy of government.

Keywords: Governmentality, Planning, Power, Government

Introdução

Este estudo parte do pressuposto de que o planejamento é uma estratégia de governo voltada para o ‘governamento’ das populações urbanas, tendo como referência a discussão pós-estruturalista sobre o poder (FOUCAULT 2008, LACLAU e MOUFFE 1985, LEMKE 2007, MITCHELL 1999, ROSE 1992, VEIGA-NETO 2005.) que fundamenta as noções de estado e de governo nas sociedades contemporâneas. O poder de acordo com esta discussão não é algo concreto, objetivado do qual se possa tomar posse ou ter propriedade, mas é uma relação social que se estabelece entre indivíduos, e se constitui na forma teias ou redes através do meio social. Estas redes de relações envolvem articulações multifacetadas entre os diversos agentes voltadas ao governo das consciências e das condutas dos indivíduos. Nessas redes o indivíduo não é apenas objeto, mas é também sujeito das relações de poder. No contexto da democracia a autonomia individual não se contrapõe ao poder político, mas é o fundamento para o seu exercício, já que os indivíduos se constituem como agentes das relações de poder.

O foco da atenção é o poder político, aquele tipo de poder relacionado com a esfera do Estado e, que no âmbito da análise marxista significa avalizar e garantir à reprodução das relações de produção. Aqui o poder político é entendido como um sistema de forças concentrado e monopolizado pelo Estado e que tem por função influenciar as demais das esferas da sociedade. Tendo por base as proposições pós-estruturalistas toma-se a ação do Estado como objeto de análise e a trata como elemento constitutivo da problemática do

governamento1. Focam-se as táticas e estratégias de governamento empreendidas pelas diversas instituições que compõem esfera da governança (pública e privada), e que objetivam a regulação das condutas sociais e individuais. O estudo investiga, em detalhe, as estratégias de governamento que são levadas a cabo através das práticas de planejamento e de gestão urbana. Atenção particular é dada ao modo como as tecnologias do poder, incorporadas às estratégias de governamento urbano, controlam e disciplinam as ações humanas no espaço das cidades. O objetivo é avaliar em que medida o planejamento se restringe a uma prática do poder ou pode se constituir numa prática de resistência e emancipação social.

O texto aborda as estratégias de governamento urbano tomando por base o conceito de governamentalidade desenvolvido por FOUCAULT (2008c), e investiga as relações de poder que se estabelecem entre os agentes no microcosmo das políticas de planejamento urbano. O conceito de governamentalidade visa chamar a atenção para o tipo de racionalidade embutida nas lógicas e nas ações que buscam conhecer e controlar diversos aspectos da vida da população como saúde, moradia, trabalho, lazer, felicidade e riqueza. A governamentalidade busca captar uma forma de poder que se torna preponderante no mundo moderno – chamada de poder político – e que resulta de um processo histórico de institucionalização de poderes dispersos e sua concentração no Estado. Esta forma de poder se caracteriza pela proliferação de aparelhos de governamento, e pela consolidação de um sistema de saberes acerca de quem, quando e como governar. Estes saberes irão se constituir nos conhecimentos técnicos essenciais que darão suporte à definição dos meios apropriados para o exercício da arte de governar e para a revelação das naturezas e idiossincrasias daqueles sobre os quais o governo será exercido.

De acordo com FOUCAULT (2008c), o conceito de governamento, busca denotar “uma matriz historicamente constituída, dentro da qual se articulam táticas e manobras dos agentes de governança que buscam manipular as crenças e as condutas das pessoas e dirigi-las para certas direções.” Estas manobras agem sobre as percepções, os interesses e as compreensões que as pessoas desenvolvem do mundo e condicionam suas condutas e formas de organizar o espaço físico. É no contexto destas relações que as diversas formas de governamento emergem e se tornam ações de poder hegemônicas. O processo histórico pelo qual as estratégias de governamento são constituídas é condição necessária para a formação das diferentes sociedades ao longo da história. O Estado aqui não é visto como uma instituição exterior e desligada da sociedade civil, mas como uma estrutura que se constitui ao longo e pelos mesmos processos que atuam para a constituição da própria sociedade. Para Foucault (2008c), o estado não pode ser uma estrutura central, única e privilegiada dentro da sociedade, com capacidades exclusivas e determinísticas para

1 Adota-se aqui a sugestão de Veiga Neto [...] “deixamos a palavra governo para designar tudo o que diz respeito às instâncias centralizadoras do Estado e usamos governamento para designar todo o conjunto das ações – dispersas, disseminadas e microfísicas do poder – que objetivam conduzir ou estruturar as ações. Nesse caso, então, governo pode ser grafado com inicial maiúscula – Governo (Municipal, Federal, Estadual, Provincial etc.) –, referindo- se à instância pública do Estado que centraliza ou toma para si a caução da ação de governar” (Veiga-Neto, 2002, p. 19).

exercer as funções estruturais de reprodução social e econômica, porque ele próprio é produto das relações de reprodução.

Para Foucault (2008a) a questão chave não é a estrutura do Estado, mas o processo histórico da sua governamentalização. As transformações recentes nos modos de ação do Estado, ocorridas através da virada neoliberal do final do século XX, são exemplos da governamentalização do Estado. O encolhimento do Estado e o consequente arrefecimento do seu poder de ação não são vistos como declínio da soberania do estado - nação, mas como a emergência de novas formas de governamento. Esse governamento se desenvolve a partir de uma nova matriz de relações que privilegia a autonomia, o livre-arbítrio e as responsabilidades individuais. Essa nova forma de governamento repassa e transfere para a esfera do privado o risco da reprodução social e torna as regras de mercado ubíquas e imanentes. Nessa formulação o governamento é uma concepção que ultrapassa a ideia de governo enquanto gestão ou administração do Estado, para incluir outras formas de governo como, o autocontrole individual, a orientação familiar, a administração da casa, a orientação da alma, etc. Dentro deste recorte o governamento é definido como conduta ou como conduta das condutas e busca sintetizar o governamento de si e o governamento do outro.

Este referencial analítico fundamenta as reflexões que são desenvolvidas nas seções seguintes do estudo. O presente texto é dividido em duas partes. Na primeira são discutidos os conceitos de Estado, governamento e governamentalidade e avaliadas as mudanças nas lógicas de governo que levaram à governamentalização do Estado moderno. Na segunda parte o planejamento é discutido como instrumento do processo de governamentalização. São discutidas quatro proposições sobre o planejamento enquanto prática de governamento, tendo com referência as experiências brasileiras de planejamento pós 1984.

Genealogia da Governamentalidade

O conceito de governamentalidade designa um conjunto de práticas de governamento que “têm na população seu objeto, na economia seu saber mais importante e nos dispositivos de segurança seus mecanismos básicos” (PLØGER 2008). A governamentalidade é entendida como uma estratégia de governamento voltada para criar sujeitos dóceis e governáveis e que utiliza de várias técnicas de controle, normalização e moldagem das condutas individuais. Como conceito, a governamentalidade identifica a relação entre o governamento do Estado (política) e o governamento do eu (moralidade) e, a construção do sujeito (genealogia do sujeito) com a formação do Estado (genealogia do Estado).

A noção de governamentalidade proposta por Foucault (2008a) é constituída por três abordagens. A primeira a descreve a governamentalidade, como um mecanismo estruturado, constituído por instituições, estratégias e táticas de ação. Nessa abordagem a governamentalidade é definida como o conjunto de aparelhos, procedimentos e cálculos que buscam exercer uma forma específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. A segunda descreve a governamentalidade como uma tendência. “Por ‘governamentalidade’ entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente conduziu, para a supremacia desse tipo de poder que podemos chamar de ‘governo’ sobre todos os outros – soberania, disciplina – e que levou à constituição de toda uma série de aparelhos específicos de governamento e ao desenvolvimento de uma série de saberes”. . A terceira abordagem descreve governamentalidade como processo. “Enfim, por ‘governamentalidade’, creio que se deveria entender o processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo viu-se pouco a pouco ‘governamentalizado” (FOUCAULT 2008a).

Foucault (2008c) procura demonstrar que a governamentalização é um processo histórico pelo qual: “da sociedade da lei e do Estado de justiça da Idade Média, se chega à sociedade da disciplina sob o comando do Estado administrativo e, desta, à sociedade de polícia, controlada pelos dispositivos de segurança que constituiu o Estado de governo”. Esse processo será denominado racionalização das práticas políticas e de governo e vai se tornar o principal mecanismo de mudanças da história moderna. Tal racionalidade política não é derivada de uma razão maior, transcendental e universal, mas é produto de engendramentos históricos que, no caso da modernidade produziu “este fenômeno fundamental na história do Ocidente: a governamentalização do Estado” (FOUCAULT, 1992).

A governamentalização do Estado significa, portanto o processo histórico de “racionalização das práticas governamentais no exercício da soberania política.” (FOUCAULT 2008b). As práticas do governamento levadas a cabo pelas agências do Estado são entendidas como um processo político contingente e um evento histórico singular que precisa ser explicado, pois não é um fato dado. O Estado não existe como um dado concreto e a priori, mas como uma constituição histórica e contingente de políticas que são implementadas através das instituições governamentais.

Estado e a Problemática do Governamento

Na concepção pós-estruturalista (FOUCAULT 2008, LEMKE 2007) o Estado não possui uma necessidade essencial ou não tem uma funcionalidade intrínseca dentro da sociedade, mas ele deve ser entendido como, (1) um “modo” no qual o problema do governamento é discursivamente codificado, (2) uma forma de separar a esfera política de outras esferas não políticas, (3) um suporte institucional pelo qual as das tecnologias de governamento são levadas a cabo em mútua articulação. Nestes termos o problema do governamento não se resume à questão do “poder do Estado”, mas em verificar como e em que medida o Estado se articula às atividades de governamento, ou seja: (a) quais são as relações que se estabelecem entre as autoridades políticas e as demais autoridades, (b) que fundos, forças, pessoas, conhecimentos ou instrumentos legais são utilizados, (c) por meio de que artifícios, técnicas ou táticas as ações políticas são operacionalizadas. No contexto da governamentalidade o Estado não é visto como a instituição central ou a superestrutura da sociedade, mas é apenas como produto de um complexo e mutante sistema de discursos e técnicas de regulação e poder que resulta do processo de governamento. Para Foucault o governamento é a questão central, pois determina um sistema de pensar – pelo qual as autoridades especificam os problemas – e um sistema de ação – através do qual o governamento é levado a cabo. Nessa reflexão, o governamento não é uma técnica que possa ser usada pelas autoridades públicas ou uma estratégia de ação do Estado, mas o contrário, o Estado é visto como uma tática de governamento – uma forma dinâmica de estabilização histórica das relações de poder na sociedade. Esta mudança de foco é o que Foucault chama de governamentalização. Nesta concepção a Governamentalidade é ao mesmo tempo interna e externa ao Estado, já que é a tática do governamento que faz

possível a definição e redefinição contínua do que compete ou não ao Estado, assim como o que é público ou privado. O Estado então entendido em sua existência e em seus limites a partir da tática geral da governamentalidade. Para Foucault (2008), o que é importante para nossa modernidade, para nossa atualidade, não é a estatização da sociedade, mas a governamentalização do Estado, pois segundo ele, vivemos na era da governamentalidade, desde o século XVIII.

Através da analítica do governamento’ Foucault pretende contribuir para uma teoria do Estado, pois ele entende que a formação do Estado nas sociedades capitalistas contemporâneas é um evento crucial do processo de governamentalização da sociedade. Esta analítica emerge da história da governamentalidade de onde são desenvolvidas três dimensões analíticas do estado na era governamentalização. A primeira reforça a importância central do conhecimento e dos discursos políticos para a constituição do estado. O estado é, portanto, definido como uma realidade transacional/temporária por resultar de um conjunto dinâmico de relações e sínteses que produz simultaneamente a estrutura institucional e o conhecimento do estado. Na segunda dimensão o autor se apropria do conceito de tecnologia – que incorpora artifícios políticos e simbólicos – e especifica as tecnologias políticas e as tecnologias de si. O estado nesta dimensão é visto como um modo de articulação no qual, certas tecnologias de governamento emergem, assumem uma durabilidade institucional temporária e se articulam de forma particular umas com as outras.

A terceira dimensão apresenta o Estado como instrumento e como efeito das estratégias políticas que definem o limite entre o público e o privado e, entre o estado e a sociedade civil. A ação do estado é um efeito das estratégias políticas, porque ela não pode ser atribuída a um único e coerente ator, mas é o resultado de práticas de governança conflitantes, contraditórias e competitivas, procedentes de diversas fontes especializadas de governamento público. Por isso o caráter contingente, relacional e temporário dos “planos estatais”. Pensar o Estado como parte de uma rede de relações de governança não significa considerá-lo uma categoria de análise secundária, mas pelo contrário, o estado é um instrumento estratégico por sustentar a diferenciação entre as esferas pública e privada, por subsidiar a ideia de nação e dar suporte à criação de limites (territoriais) de soberania. Além disso, o Estado é o instrumento que e determina as condições de acesso aos bens e recursos públicos. Por isso, ademais de instrumento, o Estado é visto como um campo estratégico – o lócus onde são definidas as diretrizes do macro governamento social e onde são tomadas as decisões que vão privilegiar certos atores e excluir outros. Esta é a chamada seletividade estratégica do Estado.

A Governamentalização e o Planejamento

A seguir são discutidas três proposições sobre o processo de governamentalização das sociedades modernas, extraídas do contexto analítico de Michael Foucault. O objetivo é analisar a pertinência histórica de algumas concepções filosóficas pós-estruturalistas para explicar questões do mundo contemporâneo e, refletir sobre as implicações destas formulações para a prática do planejamento urbano e regional. Cada proposição aborda uma questão específica e abre o debate sobre as implicações ontológicas e epistemológicas da teoria de Foucault sobre a natureza do conhecimento e sobre a prática daquilo que usamos chamar de planejamento no mundo atual.

Proposição 1

Nas formas modernas de governo, o dispositivo central da governança e da reprodução social, são as associações que são estabelecidas entre as autoridades “políticas” e os projetos, planos e práticas das autoridades de saber (econômico, legal, espiritual, médico, técnico) com o objetivo de administrar a vida coletiva (dos outros) tomando como base concepções sobre o que é bom, saudável, virtuoso, eficiente ou lucrativo.

No contexto da reflexão de Foucault, não há referência direta sobre a prática de planejamento como uma tecnologia ligada ao governamento. No entanto, é possível entender as políticas públicas de planejamento como manifestações da governamentalização do Estado moderno, na medida em que estas buscam comandar vida, organizar o espaço e controlar a ação do cidadão urbano. Em geral, estas políticas estão envolvidas com a busca de uma maior eficiência no uso e mobilização dos recursos (poder) e com a condução das condutas humanas. Como numa relação custo-benefício, o objetivo é “atingir o máximo resultado a partir de uma aplicação mínima de poder” (GOLDSTEIN 1994). O objeto da intervenção política são ‘condutas humanas’ que buscam preservar e promover a própria vida e, o fundamento que norteia a ação política é o conceito de biopoder. É nesse sentido que as políticas de públicas de desenvolvimento urbano podem ser vistas como o planejamento das condutas dos indivíduos em relação ao uso e a ocupação do espaço tendo em vista a preservação de suas vidas na cidade.

Para Foucault (2008b) o biopoder significa os empreendimentos dirigidos ao indivíduo em suas especificidades espaciais e temporais, com vistas à promoção da vida da coletividade da qual o indivíduo é parte. Foucault (2008b) observa que a invenção do conceito de biopoder, em meados do século XVIII, foi correlata à invenção do conceito de população que a partir de então veio significar uma coletividade de indivíduos que são pensados como uma unidade descritível, mensurável, conhecível e, por isso mesmo, governável. Cria-se então, através da ideia do biopoder, o objeto da política pública na era da governamentalidade: a população; população esta entendida como um ‘coletivo de indivíduos’ que deve ser preservada através das políticas de governamento, ou biopolítica, como designava Foucault (2005). A partir de então, a população passa a ser entendida como um corpo vivo, um corpo-espécie, que deve ser governado para promover a vida. Cabe ao Estado – ele próprio produto dos inventos do século XVIII – o papel de coordenar as políticas que irão promover a vida da população.

A ideia de promoção da vida significa para Foucault (2006) a dupla dimensão da vida biológica. Promover a vida implica primeiro, cuidar para que cada indivíduo permaneça vivo e produtivo e, segundo, procurar evitar a extinção da espécie. Estas mudanças em relação ao conceito de vida e a invenção de tecnologias de controle da mesma funcionam como elementos geradores da chamada virada biopolítica do século XVII, pela qual o aforismo “deixar viver – fazer morrer” dos tempos dos soberanos é substituído pela diretriz “fazer viver – deixar morrer”, dos tempos modernos.

Em resumo, as estratégias mobilizadas para governar as populações constituíram-se na ordem da biopolítica e desde então se apoiaram no biopoder. Como se sabe isso não significa o desaparecimento do poder disciplinar; mas envolve uma recombinação entre este e aquele, um rearranjo de complementaridade onde um atua para potencializar o outro.

Proposição 2

O governamentalidade é produto da racionalidade política. Ela define o que é governável e promove os meios para governar. Por isso, o planejamento como um modo de governamento só pode ser analisado em termos de suas racionalidades políticas. Estas racionalidades são constituídas por: (1) campos discursivos dentro dos quais o exercício do poder é cientificamente delimitado, (2) justificativas morais para modos particulares de exercer o poder pelas diversas autoridades; (3) noções sobre o que são formas, objetos e limites apropriados da política e, (4) modos de distribuir as tarefas de condução entre os diversos setores da sociedade.

No caso das políticas de planejamento destinadas a ‘disciplinar’ e ‘orientar’ o desenvolvimento urbano não é difícil perceber a racionalidade política que emerge através do discurso dos planos e das campanhas de educação do cidadão. O Estado intervém pela via dos planos (por isso) diretores para dirigir o modo como o indivíduo usa e ocupa o solo e até onde, como e quando o cidadão pode se mover no espaço urbano. Com um discurso competente, fundado em saberes técnico-científicos, o Estado usa a cidade como ambiente de aplicação e propagação de tecnologias que visam conduzir e controlar a ação do cidadão sempre em nome da minimização das ineficiências para a reprodução da vida e do capital.

Já as campanhas públicas funcionam como pedagogias culturais que usam o discurso mobilizador como tecnologia de governamento. As campanhas públicas buscam inculcar comportamentos adequados, atitudes racionais e formas de agir apropriadas. A racionalidade que se manifesta através do discurso da campanha pública, é constituída por um conjunto de enunciados que colocam em circulação determinados regimes de verdade que se articulam segundo determinados saberes. O que está sempre em jogo, nessas campanhas, são o governamento e as relações de poder, ambos sustentados discursivamente pela racionalidade.

Para Foucault (2006) não existe racionalidade pura, universal e exterior ao mundo das práticas. No caso das políticas governamentais de planejamento, a racionalidade é sempre contingente, permeada pelo poder e, dependente de interesses concretos em cada contexto espacial e temporal. Por isso toda a racionalidade das políticas públicas pode ser compreendida como estratégia discursiva destinada ao governamento das populações.

Como o objetivo das políticas públicas é realizar o melhor (o mais efetivo, mais econômico, mais permanente) governamento da população, então é necessário, promover o maior ordenamento possível dos elementos que as compõem. Tal ordenamento, na lógica das políticas de planejamento, baseia-se na ideia de ocupação ‘racional’ do território, na disposição ‘adequada’ dos usos sobre espaço urbano e em alguns casos na busca do direito universal de acesso à cidade.

No caso das políticas públicas de habitação social a lógica (ou a racionalidade) do governamento é sempre dirigida para o acesso à “posse” (propriedade) da casa (bem) e o ordenamento ocorre através das operações de aproximação, comparação, classificação da população carente (daquele objeto de troca). Assim, as instituições que buscam garantir o acesso à habitação são, por princípio, includentes, mesmo que, no decurso dos processos de comparação e classificação e viabilização das políticas, elas venham a excluir alguns desses carentes (ou muitos deles). Desse modo, pode-se afirmar que as políticas que propõem e

criam os espaços de inclusão são também as mesmas que criam os espaços de exclusão. Decorre, portanto que a igualdade de acesso não garante a inclusão, na mesma medida que, não afasta a sombra da exclusão.

No caso das políticas de planejamento a racionalidade que suporta as práticas de governamento funciona criando, ordenando e selecionando as realidades sobre as quais elas deverão intervir. Assim os problemas escolhidos para serem os objetos da ação política são cuidadosamente definidos e especificados ‘tecnicamente’ e as soluções envolvem a eliminação ‘técnica’ daqueles problemas. Mas ao criar estrategicamente o objeto da ação e ao convencer a população da existência de um problema, o governamento cria também uma ideia de ‘adequado’, ‘desejado’ e de verdade. Assim ao buscar atender as necessidades e desejos criados (pelas técnicas de manipulação do biopoder) as políticas acabam por reproduzir e recriar os mesmos problemas que pretendem eliminar ao definir, organizar, catalogar e não universalizar a realização da verdade prometida. A lógica que cria também recria os problemas do governamento.

Proposição 3

O saber é o fundamento das práticas do governamento e a gênese da constituição dos objetos da ação no planejamento. O governamento é o domínio da cognição, do cálculo, da experimentação e da avaliação.

O governamento é uma atividade problematizadora na medida em que representa as obrigações dos governantes em termos de problemas que buscam resolver. O pressuposto do processo de governar e das práticas de governamento está ligado aos problemas que se pretende governar, isto é os ‘erros’ que propõe corrigir e as ‘deficiências’ que propõe sanar. A análise do governamento ao longo da história sugere uma sequência de problematizações, na qual os intelectuais (políticos, cientistas, filósofos, militares, técnicos) avaliam e definem o que é real e o que é ideal e buscam diminuir a distância entre eles. Assim, são formulados conceitos acerca do que se considera, por exemplo, pobreza, problemas urbanos, decréscimo de produtividade, de competitividade, crises sociais, déficits educacionais etc. Identificam-se então as ‘carências’, elaboram-se propostas de ação que na sequência são conectadas ao instrumental disponível de governamento.

Como parte deste processo de governamento planos de Governo são elaborados e dentro deles estratégias de ação e técnicas de intervenção são constituídas para atuar em situações específicas definidas como problemáticas. É no reino dos planos, dos desenhos e das propostas elaboradas pelos experts (filósofos, políticos, fisiocratas, etc.) que se estabelece o que é ‘desejável’, ‘adequado’, ‘sustentável’ ‘viável’ e ‘alcançável’ e que objetivo deverá ser perseguido quando, como e por que. Esta é a esfera do estratégico, do programático e do dogmático onde o mundo do governamento é constituído. Esse é o lócus da decisão, onde se formulam os modos e objetivos da ação, e o que, em última análise, mais importa são os beneficiários e os excluídos dela.

A assimilação da racionalidade política pelos planos e programas do governamento não ocorre por um processo determinístico ou mecânico, mas por uma sutil objetivação que traduz valores morais, conhecimentos e idiomas do poder político, em uma linguagem técnica de ação. Essa tradução envolve o movimento de um espaço para outro onde as preocupações e as definições políticas são transformadas em tecnologias de intervenção.

No domínio do governamento os programas de Governo não são apenas formulações de desejos ou de intenções, mas são também afirmações de poder fundamentadas no saber. Primeiro, os donos do poder se arrogam autoridade sobre o conhecimento de certos problemas (da economia, da natureza, da saúde, da pobreza...) e conferem aos especialistas o mandato para deles tratar. Segundo, porque o conhecimento embutido nos programas são elementos essenciais para legitimar o exercício calculado do poder sobre tais problemas. Conhecimento nesse caso se confunde com o poder e este por sua vez com a ação. Terceiro, governar uma esfera política, requer um conhecimento necessário para poder representá-la e descrevê-la de modo a permitir a exposição de sua verdade e seu reenquadramento no âmbito dos cálculos políticos.

Uma prática essencial para produção e consolidação do conhecimento especializado são as tecnologias de governamento vinculadas às atividades de registro e de cálculo monopolizadas pelo Estado. Na concepção de Foucault (2005) o Estado não é um aparelho centralizado e dirigido por uma cúpula que detém um poder central, mas um extenso complexo institucional, onde várias centralidades se constituem e se articulam para compor o processo de governamento. Esse complexo é formado por vários aparelhos descentralizados onde os múltiplos centros de governamento funcionam produzindo informações e conhecimentos, levantando e avaliando dados e fatos específicos da realidade com vistas efetuar os controles apropriados sobre seus contextos de governamento.

O governamento é um processo intrinsecamente ligado às atividades de expertise, pois a constituição dos objetos e estratégias do governamento depende da cognição, do cálculo, da experimentação e da avaliação, domínios por excelência da competência técnica. Na área do planejamento a função do expert não se resume em elaborar a rede de normas e controles do desenvolvimento urbano, mas em subsidiar os diversos esforços para consolidar uma administração calculada dos vários aspectos da vida e da conduta do cidadão nas cidades. São os diversos conhecimentos técnicos especializados que vão dar suporte à formulação das inúmeras táticas de educação, persuasão, indução, incitamento e motivação do cidadão que são levadas a cabo através das politicas de planejamento das condutas no espaço urbano.

Os planos de governo assumem que a realidade do mundo (o real) é um aparato mecânico e programável, sujeito a regras fixas e a processos previsíveis e recorrentes sobre os quais é possível agir e melhorar. Tais planos tornam os objetos do governamento ‘coisas’ palpáveis de modo a permitir que seus males sejam suscetíveis a diagnoses, prescrições e cura pela via dos cálculos e das intervenções normalizantes.

Em resumo, o conhecimento define, recorta e modela cada aspecto da vida social e ao fazê- lo a torna a vida em sociedade algo passível de ser governado, isto é, de ser administrado, planejado e disciplinado. O urbano – tal como o entendemos em suas características, especificidades e problemas – pode ser entendido como produto do conhecimento racional, que torna objeto de intervenção, uma entidade governável. A cidade vista através dos conceitos de urbano, urbanização, planejamento, etc., é um conhecimento forjado na ideologia da isenção e da racionalidade científica. Esse conhecimento tem por objetivo criar uma imagem do mundo real que nos permita pensá-lo e entendê-lo, de modo a tornar as

questões do cotidiano das cidades algo passível de ser planejado, isto é controlado, corrigido, e redirecionado.

Conclusão

A teoria do poder de Foucault não parte da opressão ou dos regimes de dominação para identificar as formas que condicionam e/ou limitam a liberdade, mas é um projeto que busca fornecer ferramentas de análise para entender o poder, suas relações com a racionalidade e com o conhecimento. Sua teoria destina-se, sobretudo, à produção conhecimento que permita fornecer subsídios para a promoção de mudanças.

Vale destacar que a atitude normativa que ao longo da história da disciplina do planejamento tem sido dominante tanto na teoria quanto na prática, em geral, pouco tem contribuído para alavancar a qualidade da vida nas cidades. Os ideais de modernidade, democracia e justiça social, em geral, distantes e às vezes inalcançáveis, poderão ser apreendidos através da mudança do foco epistemológico da disciplina. Considerando Foucault, isto significa rever o percurso da racionalidade normativa e buscar o caminho da racionalidade prática para orientar as ações do planejamento (FLYVBJERG 2003). Se de um lado a racionalidade normativa oferece ideais nobres de luta, por outro ela não fornece qualquer indicação dos caminhos a serem percorridos para o alcance daqueles ideais. Na análise aqui desenvolvida, este é o dilema dos urbanistas idealistas que formulam planos e propostas normativas: sabem o que querem alcançar e onde querem chegar, mas não sabem como chegar lá, pois na maioria das vezes os ideais normativos estão alheios ao mundo da cidade real.

Foucault desenvolve um tipo de análise que pode ser útil para um melhor entendimento do processo de planejamento na prática e para o desenvolvimento de uma perspectiva concreta para a promoção de mudanças sociais e democráticas através do planejamento.

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