Resumo

Para lançar questões acerca do papel de ação e de mediação dos urbanistas, no presente artigo, buscamos, ainda que de forma lacunar e tópica, avaliar as pressões sociais e as condições de possibilidades de formação do campo do urbanismo, de maneira geral, nos servindo, de certo modo do diálogo intelectual que parecem ter mantido Françoise Choay e Michel de Certeau. A primeira, uma filósofa que vem permitindo ao urbanismo refletir sobre a sua própria história e formação como campo específico de ação. O segundo, um historiador, que auxiliou os historiadores a pensar a “operação historiográfica” que empreendem, sublinhando o seu caráter situado e não objetivo ao estabelecer suas narrativas, seus modos de temporalização e espacialização. Esperamos, com isso, lançar insumos para um entendimento mais complexo do papel social dos urbanistas em nossas cidades no debate contemporâneo, a começar no interior do próprio campo profissional.

Palavras-chave: urbanismo, campo disciplinar, Françoise Choay, Michel de Certeau

Do lugar das mediações sociais e da figura do urbanista como mediador

Desde de junho de 2013, demandas sociais agudas das cidades brasileiras passaram a ser cada vez mais enfocadas em manifestações e protestos, ganhando expressão nas ruas e nos veículos de comunicação de massa.

Inúmeros foram os analistas – cientistas sociais, urbanistas, jornalistas, economistas, apenas para citar alguns – que apontaram, corretamente, o esgarçamento do tecido político e a maneira como uma sociedade que se pensava democrática não se percebia mais representada naquele momento.

Contudo, o que pareceu também particularmente digno de atenção nesse processo, sobretudo no ambiente universitário de muitas escolas de arquitetura e urbanismo, foi o relativo silêncio quanto as relações que esse esgarçamento do tecido político direta ou indiretamente entretêm com estes campos de ação profissional. Em outras palavras, a arquitetura mas, sobretudo o urbanismo como ofícios e como campos de saber, se renovaram ou se instituíram, de modo claro desde o século XVIII a partir da escuta, mediação e implementação de demandas sociais nas cidades. Ou seja, se hoje as agendas de respostas `as demandas sociais das cidades estão em “curto circuito”, o papel mediador e propositivo dos arquitetos, e do urbanismo e dos urbanistas no diálogo, na escuta e na elaboração de um universo possível de mudança ou na potencialização de respostas já esboçadas pelas coletividades não é visto com clareza e, portanto, socialmente eles sequer, são chamados a atuar.

Isso significaria dizer que dois séculos de ação política na construção da figura social do urbanista e dos papeis que desempenha, esse processo não é mais ou não é ainda - cabe se perguntar - percebido como legítimo, ou sequer é culturalmente percebido. .De fato, embora no último meio século os trabalhos se acumulem mostrando como a constituição da figura social de mediação das questões citadinas irá flutuar entre o perfil do profissional liberal ( arquiteto- urbanista), do funcionário técnico-administrativo ( arquiteto-urbanista) e, inclusive irá dar lugar `a própria construção moderna da figura do governante local (prefeito), no caso brasileiro este processo parece não fazer sentido.

Diante desse silêncio ou silenciamento, cabe, entretanto, se perguntar sobre o fenômeno. Estamos diante de uma crise deste saber-fazer que não é mais percebido socialmente como necessário? Ou no caso brasileiro, estamos diante de um campo do conhecimento e da ação social do urbanista que ainda não é (re)conhecido?

Para lançar questões para essa discussão, no presente artigo, buscamos, ainda que de forma lacunar e tópica, avaliar as pressões sociais e as condições de possibilidades de formação do campo do urbanismo, de maneira geral., nos servindo, de certo modo do diálogo intelectual que parecem ter mantido Françoise Choay e Michel de Certeau. A primeira, uma filósofa que vem permitindo ao urbanismo refletir sobre a sua própria história e formação como campo específico de ação. O segundo, um historiador, que auxiliou os historiadores a pensar a “operação historiográfica” que empreendem, sublinhando o seu caráter situado e não objetivo ao estabelecer suas narrativas, seus modos de temporalização e espacialização. Esperamos, com isso, lançar insumos para um entendimento mais complexo do papel social dos urbanistas em nossas cidades no debate contemporâneo, a começar no interior do próprio campo profissional.

A historicidade de um campo disciplinar e suas narrativas

Como se sabe, os estudos na área de história que passaram a se interessar pela historicidade do campo urbanístico e suas práticas, participava da “virada crítica” que começou a ser operado no campo da própria arquitetura e do urbanismo a partir da segunda metade do século XX.

Apesar da ação de tornar as cidades objeto de discurso crítico ser uma prática que, mesmo antes da nomeação de um saber específico – urbanismo – pudesse ser observada sobretudo na cultura lusa e ibérica, é apenas na década de 1960 que estudos irão tematizar a formação do próprio campo como uma construção histórica mais complexa. Ou seja, a partir de então o urbanismo passara a ser visto como um campo de múltiplos discursos em disputa, construídos por indivíduos historicamente e socialmente situados, balizados por suas culturas específicas e por suas possibilidades de crítica e enunciação.

Como bem aponta Viviane Claude, a respeito desses debates ocorridos, sobretudo, na França, é possível perceber, ao menos três maneiras de olhar a “história do urbanismo” a partir de então:

Primeiramente, ela aponta o enfoque a partir da “história dos conceitos” como aquela empreendida por Françoise Choay a partir da publicação de sua antologia, “Urbanismo: utopias e realidades”, em 1965.

A partir da década de 1970, ela indica também a relevância do olhar das ciências sociais e a maneira como elas tomam a cidade por objeto, observando, assim, “o conjunto de

razões que fez reunir diferentes forças sociais – independentes, escritores, negociantes, nobres, burgueses, engenheiros e médicos, por exemplo – em torno das mesmas palavras e das mesmas ideias, das análises idênticas e de um projeto comum de transformar o espaço urbano”. Trata-se esse, o víeis dos programas de trabalho de Jean- Claude Perrot e de Marcel Roncayolo, por exemplo.

Por fim, Viviane Claude, aponta que “a terceira maneira de se olhar a história do urbanismo (...) consiste na leitura da história social sob o prisma das políticas públicas, das doutrinas e dos meios profissionais que tomam lugar no curso [do século XIX], com atenção particular sobre os períodos de forte urbanização ou de reconstrução”. Na França, sobre esse aspecto, ela aponta a relevância que tomou os estudos sobre o “Musée Social” como centro político do urbanismo e sobre o “Instituto de Urbanismo” como polo de conhecimento e profissionalização desse.

Apesar dos diferentes enfoques e questões tematizadas, em todos esses casos, nota-se que as abordagens operadas pelos autores nessas diferentes “linhas” historiográficas vão se afastando, pouco a pouco, de narrativas estruturalistas e dualistas, para, ao contrário, à partir da atenção às fontes de pesquisa, aos atores individuais e às suas redes de sociabilidade construir interpretações possíveis dos diferentes discursos que tematizaram a cidade. Mesmo que, nesse processo, o olhar generalizante que permitia análises da longa duração, fosse rebaixado e os estudos passassem a enfocar, então, a multiplicidade de grupos menores e de trajetórias particulares.

Observa-se que essa estratégia metodológica visa justamente trabalhar com temporalidades mais complexas onde pesam, não um único sentido e/ou “processo” na “marcha” da história, mas, ao contrário, busca dar a ver a multiplicidade de demandas sociais em disputa em momentos e locais específicos. Observar esses modos de “fazer história”, ou em outras palavras, interpretar as práticas do urbanismo, se quisermos ser mais precisos, nos interessam particularmente, pois como observamos de início, nossas análises atuais carecem justamente dessa capacidade de agenciar “territórios” complexos.

A história do urbanismo como narrativas de práticas situadas, uma questão metodológica

A conhecida “virada crítica”, certamente se beneficiou de inúmeros debates que passaram a “desnaturalizar” a escrita da história, de Koselek a Chartier, e muito marcados pela inflexão relevante introduzida pelo trabalho de Foucault, particularmente, “Arqueologia do Saber”. Não é intenção do presente artigo discorrer de forma pormenorizada sobre os processos e autores que operaram essa revisão do campo epistemológico, durante os últimos cinquenta anos. No entanto, é importante chamar a atenção aqui que esse movimento não se tratava de uma intenção exclusiva dos “historiadores” stricto sensu, mas, ao contrário, de todo o campo do conhecimento. Ou seja, inclusive do urbanismo. Assim, podemos dizer que não foi “a reboque” das questões historiográficas que a revisão da própria forma como se escrevia sobre a formação do campo do urbanismo se deu, mas, ao contrário, foi a partir da troca mútua entre autores de diferentes campos de saber e que demarcaria a própria “virada” epistemológica que se observou a partir dos anos 1980.

Talvez, um dos exemplos mais evidentes desse processo seja a leitura atenta de alguns de textos de Michel de Certeau cotejando-os com outros de Françoise Choay. Certeau, em seu texto célebre sobre a noção de “operação histórica” publicada na série “História: novos problemas, novas abordagens e novos objetos” e editado por Jacques Le Goff e Pierre Nora no início da década de 1970, indicava a não neutralidade do historiador na composição de suas narrativas. Para discorrer sobre essa questão, Certeau articulava não apenas os debates fomentados pela obra de Foucault, como já apontamos anteriormente, mas é curioso notar que também o fazia a partir da leitura de um trabalho realizado por Choay, chamado “L’histoire et la méthode en urbanisme”, publicado em 1970 na revista dos Annales. Esse trabalho de Choay, grosso modo, dava sequencia as pesquisas apresentadas pela autora em “Urbanismo: utopias e realidades – uma antologia”, de 1965.

Em seu texto, Certeau recorre a Choay em, ao menos, dois momentos específicos. Primeiramente, para evidenciar o “fazer história” como uma prática, o que certamente foi levado a pensar a partir da “ação” propriamente dita dos urbanistas e pré-urbanistas que ocupavam Choay naquele momento. Embora, os textos de Choay, naquele período, tenham erroneamente sido vistos como textos ligados, sobretudo, à história das ideias, o quê, de fato, movera a autora foi a noção do urbanismo como um campo de ação que interfere nas formas materiais da vida coletiva. Ou seja, tanto seu texto para a revista dos Annales (1970) quanto sua conhecida antologia (1965) permitem observar que os urbanistas e pré-urbanistas eram estudados como indivíduos que possuem, não somente, suas visões de mundo e suas representações sobre a cidade, mas, que também eles praticam suas ideias no cotidiano de modo às vezes coerente e às vezes de modo ambíguo, incompleto, hesitante e, até mesmo, contraditório.

No final de seu texto de 1974, Certeau recorreria mais uma vez à Choay para discorrer sobre os “limites” da operação histórica quer fossem eles da possibilidade de enunciação das questões presentes nas fontes de pesquisa, quer fossem eles da própria possibilidade de articulação do historiador sobre seu objeto de estudo. Ele resume:

”[A história, como] em outros setores encontra-se a mesma complementariedade. No urbanismo, a história poderia ‘fazer, por diferença, aparecer a especificidade do espaço que estamos no direito de exigir dos urbanistas atuais’; permitir ‘uma crítica radical dos conceitos operatórios do urbanismo’; e, inversamente, com relação aos modelos de uma nova organização espacial, dar conta de resistências sociais através da análise de ‘estruturas profundas com lenta evolução’. Uma tática do desvio especificaria a intervenção da história. Por um lado, a epistemologia das ciências parte de uma teoria presente (na biologia, por exemplo) e encontra a história sob a forma do que não estava até há pouco tempo esclarecido, ou pensado, ou possível, ou articulado. O passado surge aí, desde o início, como ‘o quê falta’. A compreensão da história encontra-se ligada à capacidade de organizar as diferenças ou as ausências pertinentes e hierarquizáveis porque relativas a formalização científicas atuais”.

Em ambos os casos, torna-se evidente que, Françoise Choay, ao colocar lado-a-lado os textos daqueles que haviam sistematicamente tornado a cidade como objeto de reflexão

e ação, incitou não apenas os urbanistas, seus contemporâneos, a pensar sobre o campo tenso em que se davam as ações de seus precursores e que eram elas próprias, no jogo cotidiano, que davam forma a um campo de ação e de saber que passaria a se denominar “urbanismo”. Mais que isso, ela também incitou pensadores a refletir de modo geral sobre o campo do conhecimento e a “desnaturalizar” o processo de enunciação de teorias, mostrando como essas não se tratavam de verdades universais, mas, ao contrário, de possibilidades que certos indivíduos possuíam de realizar perguntas e ações frente às questões de seu próprio tempo.

É curioso notar, portanto, que o quê mobilizou as análises de Certeau sobre textos de Choay não seriam as categorias por era ela criada em seu texto introdutório para a antologia de 1965 – culturalistas, progressistas e suas variáveis –, mas sim a potencialidade do método comparativo e o esforço de situar os discursos analisados. De fato, no início da década de 1970, ao escrever o texto que seria citado por Certeau, Choay já empreendia, ela mesma, uma crítica ao seu escrito anterior e concluía que:

“Assim, a história deve agora contribuir para ajudar a superar a velha antinomia de planejamento urbano progressista e culturalista. Ela abre novos horizontes para "planejadores" em uma nova entrada epistemológica, descobrindo as duas instâncias do espaço que construiu tanto como membros de uma sociedade datada e localizada e como sujeitos”.

No entanto, não queremos aqui “falsear” uma nova relação bilateral em que apenas invertemos o sentido de uma suposta noção de “influência”, agora, do campo do urbanismo em direção ao da história . Ao contrário, nosso esforço aqui é justamente mostrar que buscar construir interpretações que levassem em conta diferenças, diversidade, complexidade e repetições foi uma ação empreendida em um campo muito maior e presente em inúmeros trabalhos. Além disso, pode-se dizer que os autores que estavam realizando essa transformação estavam atentos a ações correlatas para além de seus limites disciplinares.

Michel de Certeau e sua aproximação do campo do urbanismo nas entrevistas realizadas por François Dosse

François Dosse, na composição da biografia de Certeau publicada recentemente, “Michel de Certeau – Le Marcheur Blessé” (2002), irá trabalhar todo um capítulo chamado “L'espace habité”1 apontando, justamente, a aproximação do historiador com as narrativas do urbanismo.

Para Dosse, o livro “A invenção do cotidiano”, publicado por Certeau em 1980, foi trabalho em que Certeau que sistematizou boa parte dessas relações com os urbanistas. Pode-se dizer, portanto, que foi na confecção desse livro que a atenção cada vez maior aos atores, a uma narrativa histórica escrita “de baixo para cima” e de uma atenção cada vez maior a história das práticas, que já havíamos percebido ao atentar para o texto de Certeau escrito em 1974, ganhou tônus e folego de uma explanação mais aprofundada.

1 Esse capítulo ganhou uma tradução recente em português realizada por Giovanni Ferreira Pitillo e Charles Monteiro. Foi publicada na revista “ArtCultura”. In: ArtCultura. Uberlândia, nº 9, jul-dez de 2004. Pp. 81-92.

Nesse processo, o trabalho de Dosse é frutífero em nos apresentar que esse diálogo de Certeau com o campo do Urbanismo não se resumiu apenas a suas trocas com Françoise Choay, pois esse autor nos mostra que, ao contrário, Certeau estava atento aos debates desse campo apontando o interesse e a atenção dele para os trabalhos de Henri Lefebvre, Kevin Lynch, François Augoyard e Pierre Mayol.

Ilustrativa do tipo de interesse que mantinha em relação a esses pesquisadores é justamente a passagem no início desse capítulo em que Dosse evidencia a crítica realizada por Certeau ao olhar absoluto que alguns historiadores pareciam lançar sobre seus objetos de estudo e observando-os apenas “de longe”, a partir da longa duração dos processos em geral e da urbanização, em particular. Assim, escreve Dosse:

“Do alto do World Trade Center [onde mantinha um escritório 110º andar e lugar onde desenvolveu múltiplas pesquisas dentre as quais “A invenção do cotidiano”], Certeau põe em cena uma oposição entre observadores e caminhantes. Esta oposição metaforiza a divisão instituída nas ciências sociais e tornada absoluta nos anos setenta, entre saber erudito e saber comum. Certeau parte deste postulado de uma forma crítica para desvelar as ilusões eufóricas: Estar no alto do World Trade Center, é privar-se do contado da cidade. O corpo não está mais envolvido pelas ruas que o rodeiam de acordo com uma lei anônima; (...). Diferentemente do esquema foucautiano do panóptico que permite tudo ver e tudo controlar, Certeau recoloca em seu lugar as ilusões do olhar do homem que pretendia tomar o lugar de Deus: Não ser outra coisa que um ponto de observação, essa é a ficção do saber. O conhecimento panorâmico não oferece mais do que um simulacro do saber ignorante das práticas. Ele é uma duplicação da ilusão moderna da tábua rasa, da página em branco da escrita esvaziada dos traços da experiência. Os idealizadores da cidade moderna vivem a ilusão de um domínio total, transformando o fato urbano em conceito de cidade”.

Percebe-se nessa passagem que Dosse aponta a forma como uma crítica que estava sendo operada pelos urbanistas a seu próprio fazer, ajudou Certeau a pensar sobre um modo de praticar história que, como já apontamos, também sofria naquele momento uma “virada epistemológica”.

Certamente, como é conhecido, em “A invenção do cotidiano”, essas noções serão flexionadas e trabalhadas por Certeau, sobretudo, no diálogo com autores como Bourdieu, Foucault, Wittgenstein e, até mesmo, Freud. No entanto, como o próprio texto realizado por Dosse nos apresenta, ao observar os estudos de teóricos do urbanismo como os realizados por Lynch2 e por Augoyard3 em que se pode perceber um investimento significativo na prática de entrevistas e na valorização das narrativas dos

citadinos como estratégia de formulação de projetos urbanos, Certeau começará a pensar o cotidiano, as narrativas e práticas dos citadinos como objetos e problemas historiográficos.

2 Para debater Lynch, Dosse faz referência ao trabalho LYNCH, Kevin. L´image de la cite. Paris: Dunod, 1969.

3 Para debater Augoyard, Dosse faz referência ao trabalho AUGOYARD, Jean-François. Pas à pas. Essai sur lê cheminement quotidien en milieu urbain. Paris: Seuil, 1979.

Contudo, o trabalho de Dosse, por vezes, nos parece ambíguo. Ao mesmo tempo que tece e apresenta uma série de relações estabelecidas por Certeau e alguns pensadores do urbanismo, como já apontamos aqui, inicia sua explanação afirmando que:

“[Certeau não estava realmente ligado aos geógrafos e]{.ul} [urbanistas]{.ul}, todavia mantinha relações de amizade com Françoise Choay, com quem esteve no conselho de Desenvolvimento Cultural. No final dos anos setenta, Françoise Choay preparava uma obra teórica sobre cidade [chamada “a regra e o modelo” e, em entrevista, afirmou:] ‘Eu discuti muito com ele este livro. Ele era um apaixonado pelas questões do espaço”.

Não é possível afirmar ao certo os motivos que levaram Dosse a construir essa afirmação, afinal todo seu texto irá evidenciar esse jogo de relações estabelecido entre Certeau e alguns urbanistas. No seu texto, fica ainda claro que o crescimento de seu interesse por esse outro campo saber não representava, contudo, uma ampla difusão e leitura de seus escritos entre esse. Dosse, inclusive, torna explícita a forma como a circulação dos trabalhos de Certeau entre os arquitetos e urbanistas foi pontual, concluindo que:

“A intervenção de Certeau no campo da reflexão sobre o urbano surgiu como um meteoro entre os urbanistas. Ele não era citado pelas revistas sobre urbanismo como Annales de la recherche urbaine (...), Espaces et sociétes, Diagonales (...). [Seria, assim,] (...) ‘um (...) homem invisível’, segundo o diretor da revista Urbanisme (...), Thierry Paquot. Ele apareceu para os especialistas da cidade como um Ovni e sua reflexão neste ponto apresentava-se isolada, não estabelecendo nenhuma relação com o meio dos pesquisadores ligados às práticas do urbanismo. Thierry Paquot admite uma outra razão para explicar esta ausência de recepção, que dever-se-ia ao fato que Certeau não se interessar pela arquitetura, em si mesma, dos grandes conjuntos habitacionais ou pela arquitetura difusa das pequenas casas residenciais, mas concentrava sua atenção no ‘que se chama, na minha opinião, erroneamente, espaços públicos: as calçadas, as esplanadas, as praças, onde há trânsito e densidade’. Em 1980, o encontro com urbanistas e arquitetos foi infrutífero, visto que aqueles que pareciam ser inovadores, como os fundadores da revista Espaces et Sociétes (...), Paul Chemetov e Pierre Rigoulet, estavam ligados ao marxismo e procuravam, nesta perspectiva, uma reflexão renovada sobre a cidade”.

No entanto, a afirmação de que “Certeau não estava realmente ligado aos geógrafos e urbanistas”, com a exceção de Françoise Choay nos parece um tanto prematura. Talvez o que Dosse quisesse tornar mais evidente naquela passagem seja, contudo, o peso mais significativo que essa autora teve na construção do pensamento do historiador Certeau em relação ao campo do urbanismo como um todo.

Naquela mesma passagem, ao expressar a relação de proximidade construída entre Choay e Certeau, realçada pelo próprio relato de Choay afirmando o importante papel que Certeau teve em suas reflexões para a composição do livro “A regra e o Modelo” e de como eram intensas as suas trocas intelectuais, possivelmente Dosse intentasse

observar que esse mesmo tipo de troca não se constituiu com os urbanistas de forma generalizada.

Por fim, pode-se supor ainda e, ainda que essa afirmativa de Dosse nos soe estranha porque talvez Dosse não veja Françoise Choay como uma urbanista, pois, como vimos, em muitos meios, ela é reconhecida apenas como uma “historiadora das ideias”.

Bibliografia

CERTEAU. Michel de. A operação histórica. In : LE GOFF, J. NORA, P. (org.). História: novos problemas (1974). Rio de Janeiro : Francisco Alves.

CHOAY, Françoise. "Pour une antropologie de l’espace”. Paris: Seuil, 2006.

CHOAY, Françoise. “O Urbanismo. Utopias e Realidades. Uma Antologia” (1965). São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.

CHOAY, Françoise. “Urbanismo – teorias e realizações”. In: PEREIRA. Margareth A. C. “Apostila didática da disciplina Urbanismo I”. Rio de Janeiro: FAU-UFRJ, 2003.

CHOAY, Françoise. “L'histoire et la méthode en urbanisme. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations”. 25e année, N. 4, 1970. pp. 1143-1154.

DOSSE, François. “O espaço habitado segundo michel de certeau – descontinuidades e intangiabilidade da personalidade: a relação com o tempo no individualismo contemporâneo”. In: ArtCultura. Uberlândia, nº 09, jul-dez de 2004. pp 81-92.