Resumo

Perpassando pelo trabalho arquitetônico que Lina Bo Bardi realizou por escrito durante as mais de 4 décadas que viveu no Brasil, buscamos entender seu discurso e associar suas construções a cerca da questão patrimonial, utilizando como objeto de investigação duas épocas e dois textos distintos. O primeiro, o texto “Cultura e não cultura”, escrito em 1958, doze anos após sua chegada ao Brasil, foi vinculado em uma página dominical do Diário de Notícias em Salvador concebida, diagramada e editorada pela própria Lina. Este jornal integrava, na época, o grande conglomerado de comunicação de Assis Chateaubriand. O texto apresenta questões gerais envolvendo a cultura, a modernidade, as relações entre erudito e popular e do patrimônio e preservação, e que, devido ao veículo publicado garantia a Lina, de certa forma, grande liberdade de expressão, além de buscar atingir um público para além daquele especializado. Já o segundo texto, “Polytheama, uma restauração mais do que necessária”, foi publicado na Revista Projeto em 1989 e pode ser considerado um memorial sobre o projeto de intervenção elaborado para um teatro localizado em Jundiaí/SP, que, ao contrário do primeiro texto, está em uma revista especializada em arquitetura onde Lina não exercia nenhuma função ou controle editorial. Neste texto, mesmo com as diferenças cronológicas, de vocabulário, de objeto e de público alvo com relação ao anterior as questões abordadas são, de certa forma, similares. Assim, um estudo sobre estas duas obras, tão distantes e ao mesmo tempo tão próximas, permite que se construa um breve panorama sobre o pensamento de Lina Bo Bardi a cerca da questão patrimonial, construído durante os trinta e um anos que separam a publicação destes dois textos.

Palavras-chave: Lina Bo Bardi, Patrimônio, Discurso, Arquitetura por escrito

Abstract

Running along the architectural work that Lina Bo Bardi made in writing during the more than four decades he lived in Brazil, we seek to understand her speech and associated her buildings around the heritage issue, using as object of investigation two times and two different texts. The first, the text "Cultura e não Cultura", written in 1958, twelve years after his arrival in Brazil, was bound in a Sunday page of the Diário de Notícias in Salvador, designed, diagrammed and typeset by Lina own. This journal belonged, at the time, Assis Chateaubriand’s large conglomeration of communication. The text presents general issues involving culture, modernity, the relationship between erudite and popular and heritage and preservation, and that due, to vehicle warranty published Lina, somewhat greater freedom of expression and seek to reach an audience beyond that specialized. The second text, "Polytheama, uma restauração mais do que necessária” was published in 1989 at the Revista Projeto and can be considered a memorial on the intervention project designed for a theater located in Jundiaí/SP, which, unlike the first text, is a magazine specializing in architecture where Lina does not exercise any editorial control or function. In this text, even with the chronological differences, vocabulary, object and audience over previous issues dealt with are somewhat similar. Therefore, a study of these two

works, so distant and yet so near, it allows us to build a brief overview of the thought of Lina Bo Bardi about the heritage issue, built during thirty-one years between the publication of these two texts.

Keywords: Lina Bo Bardi, Heritage, Discourse, Architecture written

INTRODUÇÃO

Quando se trata de arquitetura, num primeiro momento tem-se em mente a questão do objeto construído, imóvel. Porém, mesmo sendo o desenho a ferramenta básica do arquiteto e a obra edificada a materialização do projeto, o fazer arquitetônico sempre esteve acompanhado do texto, na forma de tratados, manuais e manifestos, se mostrando como uma ferramenta importante e que contribui, juntamente com o objeto construído, para a divulgação, definição, consolidação e transformação de conceitos, ideias, teorias e práticas ao longo do tempo.

O século XX é marcado por uma vasta produção textual nas mais variadas áreas da arquitetura e do urbanismo. Muito da difusão e consolidação dos preceitos arquitetônicos e urbanísticos do Movimento Moderno ao redor do mundo se deu graças aos textos elaborados por arquitetos na forma de Cartas, manifestos, livros e artigos, pois “foi por escrito que os arquitetos modernos se municiaram de um novo vocabulário e mudaram o modo de falar sobre arquitetura” (RUBINO, 2009. p. 22). Além disso, estes objetos possuem uma facilidade de transporte, divulgação e reprodução que a obra arquitetônica construída não possui. Assim, dentre o rol de arquitetos escritores do século XX, um dos nomes que merece destaque é o de Lina Bo Bardi, pois o ato de trabalhar arquitetura com palavras sempre esteve presente em sua carreira, desde o início, ainda na Itália, como ele deixou registrado em seu Curriculum Literário:

Sentíamos que era preciso fazer alguma coisa para tirar a arquitetura do pântano. Começamos a pensar, então, sobre uma revista ou um jornal que estivesse ao alcance de todos e que pautasse sobre os erros típicos dos italianos... Levar o problema da arquitetura ao viver de cada um, de modo que cada um pudesse chegar a se dar conta da casa na qual deveria viver, da fábrica onde deveria trabalhar, das ruas onde deveria caminhar. (BO BARDI, 1993, p. 11)

Lina escreveu para jornais, revistas (especializadas ou não em arquitetura), catálogos, livros e editoriais, produzindo mais de 400 textos ao longo de sua carreira, dos quais, cerca de dois terços foram produzidos no Brasil durante os 46 anos que viveu no país. Parte destas obras, realizadas principalmente entre as décadas de 1950 e 1960, foi publicada em veículos de comunicação de propriedade de Assis Chateaubriand ou de alguma forma financiados por ele.

Chateaubriand se aproveitou do momento em que o país vivia entre as décadas de 1920 e 1930 para construir um verdadeiro império jornalístico, apoiando e sendo apoiado, primeiro pela oligarquia cafeeira paulista e depois por Getúlio Vargas. E entre os aspectos que marcaram a relação entre Vargas e Chateaubriand estava a vontade do Estado de construir uma memória e identidade da nação brasileira, baseado num ideal nacionalista que buscava a legitimação do Estado através de questões socioculturais. Assim, preocupado em estabelecer a imagem de uma sociedade unificada e identificada com a nação, seus símbolos, líderes, heróis e sua

história1, Vargas utilizou a arte e a cultura como agentes de coesão social e estreitou as relações entre cultura e política.

Dentro do projeto educativo há que se distinguir dois níveis de atuação e estratégia: a do Ministério da Educação (Gustavo Capanema) e a do Departamento de Imprensa e Propaganda DIP - (Lourival Fontes). Entre estas entidades ocorreria uma espécie de divisão do trabalho, visando atingir distintas clientelas: o ministério Capanema voltava-se para a formação de uma cultura erudita, preocupando-se com a educação formal; enquanto o DIP buscava, através do controle das comunicações, orientar as manifestações da cultura popular. (VELLOSO, 1987, p.04)

Pode-se então dizer que, mesmo tardiamente, o casal Bardi2 estava inserido neste contexto, com trabalhos voltados para a popularização e difusão da cultura erudita, para a crítica à erudição exagerada e para a valorização da cultura popular, numa corrente que, apesar dos precedentes acima apresentados estava também enraizada em questões políticas do pós-guerra, sobretudo o Comunismo, já que Lina, ainda na Itália, integrou a resistência à ocupação alemã durante a II Guerra. Neste sentido vale ressaltar que suas maiores contribuições no Brasil tenham se dado a partir da década de 1950, começando com a criação em 1950 da Revista Habitat, vinculada ao MASP, museu que “pertencia” a Chateaubriand.

A formação na Itália, seus posicionamentos políticos e a condição de estrangeira conhecendo outra realidade em um novo país sem ruínas de guerra levaram Lina a construir um discurso que valorizava a arquitetura feita pelo povo, pelo homem do sertão, chegando a afirmar que:

A arquitetura contemporânea brasileira não provem da arquitetura dos Jesuítas, mas do “pau a pique” do homem solitário, (...), provém da casa do “seringueiro”, (...), possui, em sua resolução furiosa do fazer, uma soberbia e uma poesia, que são a soberbia e a poesia do homem do sertão, que não conhece as grandes cidades da civilização e os museus, que não possui a herança de milênios, mas suas realizações(...) fazem deter o homem que vem de países de cultura antiga. (BARDI, 1951. Trecho do artigo “Bela Criança” publicado originalmente na 2ª edição da revista Habitat. 2009, p. 72)

Com isso tenta demonstrar que estes elementos populares eram, para ela, objetos valiosos, por isso também e pelo seu caráter modernista, Lina não mantinha sua produção escrita exclusivamente voltada para o ambiente acadêmico e intelectual. Escrevia em jornais e em revistas, nem sempre especializados em arquitetura, contribuindo assim para ampliar a abrangência das ideias e conceitos que defendia, no campo do patrimônio e da cultura, numa tentativa de doutrinar e levar ao conhecimento de uma parcela maior da população este vocabulário arquitetônico e erudito que era traduzido ou até mesmo uma tradução de suas obras construídas, como

1 Vale lembrar que na Europa, como coloca Huyssen, “a obsessão pelas origens aconteceu no século XIX atendendo às necessidades de legitimidade cultural do estado-nação burguês pós-revolucionário, em fase de acelerada modernização.” (HUYSSEN, 2000, p. 54). Este fato vai permitir a valorização dos monumentos nacionais bem como da ideia de identidade cultural de cada nação.

2 Pietro Maria Bardi e sua esposa Lina Bo Bardi chegaram ao Brasil em 1946, começaram a trabalhar com Chateaubriand em 1947 numa contribuição que durou até a morte do empresário paraibano em 1968, apesar de Pietro Bardi ter continuado na direção do MASP até a década de 1980.

ela deixou claro em uma conferencia que foi transcrita para a edição 133 da Revista Projeto em 1990:

(...) pessoalmente, só fiz duas ou três casas para amigos (...). Se alguém que tem muito dinheiro me pede uma casa, eu não faço. Eu trabalho para o poder público, não acredito em iniciativa particular, mesmo num país capitalista: já tive muita dor de cabeça com ela. (BARDI, 1990, p. 104)

Esta ação expressa principalmente em páginas de jornais e revistas brasileiros, ajudou a consolidar pensamentos e práticas de preservação do patrimônio edificado do país, trouxe à superfície e garantiu o reconhecimento de bens e características culturais muitas vezes desprezados e desconhecidos. Além de ter permitido uma maior discussão entre as teorias da conservação e do restauro, dando sua contribuição à ampliação de conceitos relacionados ao patrimônio dentro do cenário cultural brasileiro do século XX.

“CULTURA E NÃO CULTURA” – SALVADOR 07/09/1958

Assis Chateaubriand foi de certa forma, responsável pela vinda e instalação do casal Bardi no Brasil. Convidado pelo magnata das comunicações para fundar e gerir um museu de arte no país Pietro e Lina Bo Bardi chegaram ao país em 1946, se instalando neste primeiro ano no Rio de Janeiro, uma cidade que cativou Lina assim que entraram na Baía de Guanabara:

Chateaubriand convida Pietro para fundar e dirigir um Museu de Arte no Brasil: Rio ou São Paulo. Torci pelo Rio, mas o dinheiro estava em são Paulo. Disse a Pietro que queria ficar, que reencontrava aqui as esperanças das noites de guerra. Assim ficamos no Brasil. (BO BARDI, 1993, p. 12)

Assim, no ano seguinte o casal se instala em São Paulo, local escolhido para a instalação do hoje conhecido Museu de Arte de São Paulo (MASP) e onde fundam, três anos depois, em 1950, a revista Habitat, com assuntos voltados para a questão cultural. Onze anos depois de se instalar em São Paulo, em 1958, Lina vai para a Bahia, saindo assim do principal eixo econômico e cultural brasileiro, porém sem se desvincular de Chateaubriand, com quem seu marido trabalhou até a morte do empresário brasileiro em 1968. Em Salvador Lina trabalhou em várias frentes, enquanto escrevia, diagramava e editorava a página dominical “Crônicas de arte, de história, de costume, de cultura da vida” no Jornal Diário de Notícias de Salvador, de propriedade do conglomerado de Chateaubriand, trabalhava para o poder público estadual, restaurando edifícios e criando museus e lecionava na faculdade de arquitetura local, produzindo assim, arquitetura de vários tipos.

Dentre as várias produções publicadas no jornal soteropolitano uma se destaca por tratar de uma, entre muitas dualidades que envolvem a obra de Lina Bo Bardi e que inclusive é o título do artigo: Cultura e não Cultura; nada surpreendente vindo de uma arquiteta que esteve entre o público e o privado, o antigo e o novo, o erudito e o popular, a aristocracia e o povo, por exemplo. Publicado na 1ª edição da página, no dia 7 de setembro de 1958, o texto trata de praticamente todas estas relações, abrigadas sob o grande “guarda-chuva” da cultura e tem em sua frase inicial, justamente a relação entre o erudito e o povo: “A cultura está relegada aos livros que pouca gente lê”.

Com um posicionamento bem definido e carregado de críticas sociais, econômicas e

culturais o texto tem, talvez, como maior contraponto a questão entre o povo e a alta classe, seja ela econômica ou intelectual. Esta relação marcou a obra de Lina Bo Bardi e aparece não só neste texto, mas em outras de suas produções, sendo ela uma de suas primeiras impressões sobre o país, chegando a afirmar que sentiu:

Deslumbramento pela simplicidade inteligente e capacidades pessoais. Deslumbramento por um país inimaginável que não tinha classe média, mas somente duas grandes aristocracias: a das terras, do café, da cana e ... o Povo. (BO BARDI, 1993, p. 12).

No texto tem-se uma exaltação do popular e principalmente coloca o povo, a segunda aristocracia brasileira, como elemento fundamental para as transformações culturais ao considerar que ele “tem a força necessária ao desenvolvimento de uma nova e verdadeira cultura.” Já sobre a questão patrimonial propriamente dita, há também no texto, uma crítica ao que foi colocado como uma ação vertical e impositiva entre os polos sociais, sempre partindo do mais abastado para o menos favorecido, que excluído do processo, de um modo geral, acaba também se voltando contra ele. Tal posicionamento pode ser observado no trecho abaixo:

Importante é não impor violentamente o problema histórico crítico, mas apenas aceitar as realidades existentes, levando em conta todas as correntes, (...), conduzindo uma ação política efetiva, tomando conhecimento de que a falência dos esforços precedentes foi devida às posições de vanguarda ou “igrejinhas” que, excluindo a realidade existente, combatiam na abstração, obtendo por consequência medíocres resultados. (BO BARDI, 1958, apud. 2009, p.

  1. grifo nosso)

Para finalizar o texto deixa claro que a questão preservacionista e o desenvolvimento, bem como o erudito e o popular podem caminhar juntos se tornando partes importantes dentro da construção da questão cultural, que muito mais que excludente, deve ser inclusiva e acessível, assim:

Salvaguardar ao máximo as forças genuínas do país, procurando ao mesmo tempo estar ao corrente do desenvolvimento internacional, será a base da nova ação cultural, (...), não eliminar uma linguagem que é especializada e difícil mas que existe, (...) (BO BARDI, 1958, apud. 2009, p. 89-90.)

“POLYTHEAMA, UMA RESTAURAÇÃO MAIS DO QUE NECESSÁRIA” – SÃO PAULO JAN/FEV 1989

Escrito 31 anos depois este texto é diferente do anterior não apenas por sua distância cronológica, mas também por tratar especificamente de um projeto de intervenção realizado por Lina durante a segunda metade da década de 1980. Ele trata das questões patrimoniais, como a restauração e a conservação, de forma mais direta e incisiva.

Publicado em 1989 na edição 118 da Revista Projeto, especializada em arquitetura, este texto é praticamente um memorial descritivo do projeto de restauração realizado para o Teatro Polytheama em Jundiaí, um edifício do século XIX, que, como aparece no início do texto, “representa um dos últimos exemplos daquilo que foi, no século XIX, o ‘teatro polivalente’” um espaço onde era possível a realização de peças teatrais e circenses, reuniões civis e políticas, bailes, festas, etc. Sendo assim um significativo exemplar, para além de seu valor arquitetônico, como um bem possuidor de um

grande valor simbólico enquanto um espaço de reunião popular.

E para além das questões formais, projetuais e de valoração arquitetural é este valor simbólico que merece grande atenção no texto justificando, inclusive, tomadas de posições projetuais. Isto fica explicito quando o segundo parágrafo é finalizando com a colocação de que “(...)ele, o Polytheama, é um modesto, mas grande e sério exemplo de convivência humana, de grandes esperanças, de uma grande ideia, e deve ser conservado” (BO BARDI, 1989. grifo nosso). Sobre o poder das questões subjetivas nos rumos do projeto arquitetônico em si está a explicação das ações e o tipo de intervenção, que buscava manter o tempo a que pertencia a obra acrescentando algumas inovações:

La Maison du Peuple foi destruída porque não correspondia aos “tempos de hoje”, mas, com pequenas inovações que deixassem intato o “tempo” de sua origem, podia e devia ter sido salva.

Essa premissa é necessária para explicar o sentido do projeto que apresentamos aqui. Deixando intato o espírito do Polytheama, como emblema de um tempo e de uma cidade, o projeto permite sua inserção na sociedade de hoje, principalmente no teatro moderno com suas aspirações (também) à luz do dia e sua ânsia de liberdade.” (BO BARDI, 1989, apud. 2009, p. 161. grifo nosso)

Mesmo que o projeto para o Polytheama seja a materialização, estas ideias já haviam sido apresentadas por Lina em anos anteriores, em veículos de comunicação não especializados em arquitetura, como podemos observar neste trecho de um texto que escreveu para o Diário de Notícias de Salvador:

A conservação de um monumento antigo não significa a conservação de uma vitrina de museu, mas a integração do antigo na vida de hoje. Nesse sentido um edifício não tem que ser isolado, monumentalizado, ao contrário tem que ser humanizado. (...) A integração do antigo na vida de hoje e a valorização cuidada das correntes autenticamente populares, separadas do folclore barato, são os problemas fundamentais do homem moderno. Problema crítico que não pode mais ser ignorado. (BO BARDI, 1958, apud PEREIRA, 2007. p. 188. grifo nosso)

Ou seja, a arquitetura já havia sido produzida e construída por escrito três décadas antes, colocando assim, o projeto do teatro, como mais um ponto para reafirmar as ideias sobre o patrimônio cultural e a preservação. Por se tratar de um texto específico sobre intervenção patrimonial, é possível observar mais claramente os posicionamentos de Lina sobre os conceitos que cercam a questão do patrimônio histórico, que como foi observado também no texto anterior abarca muito mais do que o objeto construído em si, permeando questões simbólicas e subjetivas, ligadas a memória, a cultura e a identidade da população.

CONCLUSÃO

A arquitetra se fez e se faz com obras construídas, mas também com palavras, e foi munida desta ferramenta que Lina Bo Bardi ajudou a construir um vocabulário formal e conceitual sobre um dos grandes temas da arquitetura: a questão patrimonial e todo o universo que pertence a esta área específica da arquitetura e do urbanismo.

Quando se trata de patrimônio se torna quase impossível a não associação com as questões de memória, de identidade e de cultura. Pudemos observar tal questão nestes

artigos, já que estes conceitos estão sempre atrelados de alguma forma em suas colocações. Aqui uma palavra merece destaque, “vida”, que permeou muito da obra de Lina, inclusive em suas ações e posicionamentos sobre a questão do patrimônio, pois mesmo um edifício antigo merece ser vivo, ser vivido e para que isto aconteça deve haver uma união entre materialidades e imaterialidades, assim como ela escreveu ao tratar sobre a intervenção no SESC Pompéia: “(...) Monumento não se refere somente a uma obra de arquitetura, mas também às ‘ações coletivas’ de grandes arranques sociais”(BO BARDI, 1986)

Além da “vida” alguns outros importantes pilares que sustentam todos estes conceitos? Cultura e popular, duas expressões carregadas de significados, que juntamente com a primeira formam um tripé essencial para se conhecer a identidade e a memória de uma sociedade e reconhecer seu patrimônio. Patrimônio este que é constituído não só por grandes monumentos arquitetônicos, mas também por fatos, objetos e ações que vão além da obra construída e que conseguem, de alguma forma manter viva a cultura e a memória de uma sociedade, compondo sua identidade e conseguindo assim, atingir o status de monumento:

O monumental não depende das “dimensões” (...) A construção nazifascista (...) é elefântica e não monumental. (...) O que eu quero chamar de monumental não é questão de tamanho ou de “espalhafato”, é apenas um fato de coletividade, de consciência coletiva. O que vai além do “particular”, o que alcança o coletivo, pode (e talvez deve) ser monumental. (BO BARDI, 1967, apud. 2009, p. 126.)

Por estas relações criadas, Lina simplesmente não consegue conceber a ideia de passado, visto de certa forma como algo velho, morto e ultrapassado. A história é viva, ela é parte fundamental na construção de identidades e na manutenção do patrimônio e dos monumentos. Assim o passado era considerado por ela como presente histórico, algo ainda vivo que se bem apropriado ajuda a evitar a repetição de erros e contribui para a criação do presente atual.

Estes artigos deixam claro que para Lina, que carregava consigo as ideias comunistas e a vivência da Segunda Guerra Mundial, nada no Brasil era mais vivo que o povo, que possuía a força necessária para o desenvolvimento da uma verdadeira cultura e identidade brasileiras. O popular possuía uma força tão grande, genuína e para além das imposições das elites sociais e culturais, que a salvaguarda dos bens e manifestações populares se tornaria uma das bases mantenedoras do patrimônio, bem como abriria as portas ao moderno, ao novo.

E se era o popular, a grande massa viva, um dos temas preferidos de Lina, era também para eles que ela construía. Publicando textos em periódicos, fora dos ambientes acadêmicos montando assim uma grande obra arquitetônica, escrita em português e com a ajuda do povo brasileiro, mostrando assim que arquitetura também se faz por escrito.

Referências bibliográficas

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ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL DE ARTES VISUAIS. Chateaubriand, Assis

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HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. 2ªed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

PEREIRA, Juliano Aparecido. Lina Bo Bardi Bahia 1958-1964. Uberlândia: EDUFU, 2007.

RUBINO, Silvana, GRINOVER, Marina (orgs.). Lina por escrito: textos escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

VELLOSO, Mônica Pimenta. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, 1987.