Resumo

Criados para o estabelecimento de atividades de comércio varejista, a fim de suprir as necessidades cotidianas da população das áreas de vizinhança, os comércios locais da Asa Sul começaram a ser implantados antes da inauguração de Brasília. A concepção de seu desenho urbano baseou-se na separação de funções preconizada pelo Urbanismo Moderno, nas diretrizes difundidas na Europa no início do séc. XX, por meio da Carta de Atenas. Foi também influenciado pelas idéias de Ebenezer Howard, criador da cidade-jardim, e Clarence Perry, que em 1920 propôs o conceito da unidade de vizinhança, onde os serviços de apoio à habitação ficam situados junto às áreas residenciais, à distancia de uma caminhada a pé. No estudo do projeto do comércio local sul da Unidade de Vizinhança de Brasília observamos que a concepção do seu autor foi transmitida em palavras, captada e representada em projeto da NOVACAP, erguida sob a interpretação própria da empreendedora, e submetida a um modelo de organização (norma) que evidenciou a busca pela ordem perseguida pelo poder público. Ao longo do tempo esse espaço urbano foi apropriado e experienciado por seus habitantes, os quais imprimiram sua própria representação (significado) por meio do uso cotidiano e não somente pela materialização do projeto original. O resultado dessa superposição de representações num mesmo espaço é o artífice da identidade da CLS 107/108, a Rua da Igrejinha.

Palavras-chave: Projeto, Representação, Identidade, Brasília, Comércio Local

Abstract

Planned for retail trade activities to supply daily needs of neighborhood, the commercial areas began to be built before Brasília’s inauguration. It’s urban design was based on the concept of separation of functions, divulged in Europe in the XX Century, in the Chart of Atenas, by Modern Movement. It was also influenced by Ebenezer Howard’s principles, the creator of garden cities, and Clarence Perry, who proposed the neighborhood unit in 1920, where the support services for homes stays near the residential areas, at distance of a short walk. In the research of project of local commercial area of Brasília’s Neighborhood Unit, it was observed that the author’s conception was hand down in words, represented on Novacap’s design, raised up under owner peculiar understanding, and submitted to an organization model (rules) that followed the search of order imposed by public power. Overtime, this urban space was appropriated by their inhabitants, whom impressed their own representations by daily use, not only for the build original project. The result of such layers of representation in the same space is the artisan of Rua da Igrejinha’s identity.

Keywords: Design, Representation, Identity, Brasília, Local Commercial Area

Introdução: Brasília – capital brasileira e cidade modernista

O sol está se pondo na Rua da Igrejinha. Um intenso movimento de carros registra que o expediente já terminou e é hora de voltar para casa. Um menino segue de skate pela calçada da CLS 107, compra um guaraná caçula na pizzaria Dom Bosco e continua seu caminho rumo à panificadora Vitória para comprar o pão mais gostoso. A equipe de gravação da TV Brasília está em frente à pizzaria, provavelmente para fazer mais uma reportagem sobre um dos mais antigos e queridos estabelecimentos comerciais da cidade. A Pastelmix está com as mesas cheias, apesar de ser quarta-feira. O bar Nova York mantém seus alegres frequentadores em pé na calçada, conversando e bebendo, claro.

...

Pelas frestas dos brises brancos, acompanho de longe os movimentos das bailarinas na aula da Academia Norma Lília com alegria e surpresa, apreciando essa visão noturna quase poética. Na sorveteria Parmalat os últimos fregueses do dia ocupam alguns lugares nos bancos de madeira do jardim iluminado. Os garçons do Xique Xique esfregam as mãos, impacientes, lamentando as mesas ainda vazias.

...

A missa da noite já acabou, os fiéis recolhem as cadeiras que foram colocadas na praça. A iluminação alegre da Igrejinha contrasta com a luz suave existente em toda a praça, e deixa a cena mais bonita.

O movimento de carros começa a diminuir. Embaixo da árvore junto ao estacionamento, um homem cheira tiner. Do outro lado da praça, no banco contínuo e curvo, três mendigos conversam e riem, com uma criança no colo.

(trecho da narrativa da observação de um final de dia na Rua da Igrejinha).

A concepção urbana que criou Brasília, “planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual” (COSTA, 1957), previu que cada setor da atividade humana e urbana tivesse seu espaço predefinido e pudesse contemplar todas as necessidades básicas dos futuros habitantes.

Para a cidade planejada a estruturação espacial em setores e zonas poderia ser eficientemente implantada e conduzida, já que o Estado seria o principal incorporador da obra, e a construção de Brasília estaria submetida a rígidas normas e regramento edilício. O projeto urbanístico organizou a cidade em setores, dos quais o setor

residencial, onde se situa o comércio local, foi concebido segundo o conceito de unidade de vizinhança originalmente proposto por Clarence Perry nos anos 19201, e reformulado por Lucio Costa. Milton Braga (2010) cita que o inventor soube relativizar os conceitos e fórmulas já conhecidos e aplicá-los de modo combinado com formas urbanas tradicionais consagradas, recriando um novo desenho urbano “desarmado de preconceitos” 2.

Na zona residencial, as superquadras foram organizadas de maneira a refletir a separação de funções e atividades encontradas em toda a cidade. Cada quatro superquadras formam uma unidade de vizinhança, compostas por área residencial, equipamentos públicos, igreja, e espaços verdes que permeiam tudo (figura 1). Em cada superquadra prevê-se uma área de comércio vicinal em um dos lados do quadrilátero, responsável pelo abastecimento da população, denominado comércio local.

Figura 1: croquis 13 e 14 dos comércios locais constantes do Relatório do Plano Piloto, de autoria de Lucio Costa. Fonte: Relatório do Plano Piloto de Brasília, ArPDF, 1991.

Os comércios locais têm sido alvo de transformações desde sua criação, provocadas por alterações no conceito da edificação planejada por Costa, ou pelo surgimento de novas atividades comerciais inexistentes à época de sua criação, ou mesmo pelas mudanças nas características de consumo da população.

O fato de ser um espaço de intensa apropriação social, se comparado com outros setores da cidade, e cotidianamente presente na vida do habitante, coloca o comércio local como palco de interesses diversos, sendo protagonista de frequentes debates sobre suas características e função na cidade.

Como consequência surgem histórias e especulações sobre o projeto original e a intenção do autor na formação do lugar.

Nesse sentido, Saboia e Medeiros (2011, p. 7) consideram que foi instituído “o mito do projeto original”:

1 Gorovitz, Matheus; Ferreira, Marcilio Mendes: A Invenção da Superquadra .IPHAN, Brasília, 2008 p. 16.

2 BRAGA 2010, 219.

A cidade, ao invés de ser analisada a partir de suas próprias premissas, passa a ser eternamente correlata a um projeto “original” e não pela responsabilidade da gestão pública e da compreensão das vivências cotidianas. Se o projeto original torna-se responsável pelas suas qualidades e problemáticas natas, também se isenta de todas as mazelas e interferências posteriores. A cidade passa a ser regida pela “retórica da perda” que busca uma identidade idealizada pelo projeto e que não poderá ser constituída de fato.

O objetivo desse artigo é compreender questões de representação multifacetadas do objeto historiográfico em estudo, no caso os projetos institucionais e normas que regeram o espaço do comércio local durante as primeiras décadas e hoje. Desde o princípio da construção da capital instala-se a relação dialética entre a capital, representada pelo plano piloto de Lucio Costa; e a metrópole urbana, configurada pelas cidades satélites no seu entorno. Ao longo do tempo, esse espaço urbano foi apropriado e vivenciado por seus habitantes, os quais imprimiram sua própria representação coletiva nas construções edilícias e de espaço público do comércio local.

A pesquisa compreendeu o estudo da apropriação inicial dos comércios locais, por meio de suas representações e regulamentos, verificar as transformações ocorridas e suas causas. Acredita-se que o desenho urbano tenha sido suficiente para submeter o espaço privado ao conceito de espaço público desejado, e que a dinâmica urbana contribuiu significativamente para a configuração dos comércios locais desde a sua criação.

Na análise da documentação constata-se que houve uma primeira interpretação das ideias de Costa, que culminaram em representações diferentes daquelas descritas no Relatório do Plano Piloto. Neste texto são abordadas as representações do comércio local da CLS 107/108, conhecida como Rua da Igrejinha, a partir da concepção do urbanista até a construção da identidade do local, pela sua apropriação social.

Do Relatório de 1957 à configuração pela NOVACAP – representação da setorização

Costa representou os comércios locais como dois conjuntos de lojas e sobrelojas simétricos em ambos os lados da via de acesso, em seu Relatório (1957). A descrição dos edifícios comerciais prevê a abertura das lojas para dentro da superquadra, delegando à via a função de circulação de veículos e local de carga e descarga de mercadorias, o que seria coerente com os princípios do Urbanismo Moderno. A separação da circulação viária destinava aos pedestres as calçadas e passeios, com traçados independentes das vias de acesso veicular, ao que Costa chamou de vias de serviço.

Percebe-se que o conceito de Lucio Costa para os comércios locais foi reinterpretado para atender as expectativas dos proprietários e dos comerciantes, durante a construção da cidade.

O acervo fotográfico do Arquivo Público do DF-ArPDF- indica que o primeiro comércio local implantado foi a CLS 107. Neste projeto, as fachadas foram projetadas e construídas voltadas para a via de serviço, numa retomada do conceito de rua tradicional. Essa inversão pode ter contribuído de maneira decisiva para que a

apropriação social desse espaço à vida cotidiana da cidade extrapolasse as relações de vizinhança.

Ademais, havia a necessidade de espaços para instalar os estabelecimentos comerciais, precariamente localizados na Cidade Livre, que seriam demolidos após a inauguração de Brasília. A falta de infraestrutura e serviços nos primeiros anos de consolidação da cidade transformaram o comércio local em ponto de abastecimento da área central e dos núcleos habitacionais periféricos, juntamente com a Via W3. As lojas deixam de ser pequenos comércios para abrigarem grandes estabelecimentos e voltam suas fachadas para a via de automóveis, onde passava a clientela. Assim, o comércio que deveria ser local passa a ser da cidade e não da vizinhança.

Os estudos de Carpintero (1998, p. 114), Leitão (2003, p. 13) e Braga (2010, p. 156), indicam que o projeto original foi, na verdade, uma “sumária apresentação do partido”, posteriormente desenvolvido em âmbito executivo pelas equipes da Divisão de Urbanismo e da Divisão de Arquitetura da NOVACAP3 .

A Divisão de Arquitetura da NOVACAP foi responsável pela aprovação dos projetos de arquitetura particulares e pela definição das normas urbanísticas para os setores da cidade. Estas teriam fundamental importância na configuração do espaço urbano, pois deveriam traduzir para os profissionais e para os leigos os conceitos utilizados no plano original, a serem fielmente aplicados na sua materialização.

Pesquisa realizada no Arquivo Técnico da SEDHAB/GDF sobre os comércios locais indicou que somente em 28 de março de 1960, após a inauguração da CLS 107, a NOVACAP aprovou a planta de locação AI-2 QD 101 a 117, que reproduz o projeto construído. Em 13 de junho de 1960 foi publicado o Decreto nº 7, que constituiu o primeiro documento de “Normas para Construções em Brasília”.

Porém, ainda em 1958 a Revista Brasília (1958, p. 12), editada pela NOVACAP para divulgar os progressos da construção da nova capital, havia publicado dois croquis que mostravam a proposta para os comércios locais(figuras 2 e 3). Na representação, o carro que circula na via de serviço convive com o pedestre, e o motorista também pode apreciar as vitrines voltadas para a via, numa antecipação do futuro. As empenas das galerias são cegas, e a sobreloja é caracterizada como um mezanino. As coberturas, interligadas, são em alturas variáveis, já prevendo a topografia em declive.

3 A Companhia Urbanizadora da Nova Capital-NOVACAP foi a empresa criada pelo presidente da República com amplos poderes e inúmeras atribuições, com o objetivo único de construir Brasília. (FISHER; LEITÃO, 2009, p. 20).

Figura 2; perspectiva das lojas dos comércios locais mostrando as vitrines voltadas para a via, publicado em 1958 na REVISTA BRASÍLIA. Edição Arquitetura e Engenharia. Brasília: nº. 15, Ano 2, março/1958, p. 12.Fonte: Inventário da UV – Iphan, 2009.

Figura 3: os comércios locais, publicado na REVISTA BRASÍLIA, Edição Arquitetura e Engenharia. Brasília: nº. 15, Ano 2, março/1958, p. 12.Fonte: Inventário da UV –Iphan, 2009.

Em 1960 a Revista Brasília publicaria um novo croqui da perspectiva geral dos comércios locais, que sugere a apropriação da faixa verde de emolduramento pelos moradores e usuários dos CLS, como espaço de estar (figura 4).

Figura 4: perspectiva geral do comércio local exposta na REVISTA BRASÍLIA, Edição Arquitetura e Engenharia. Brasília: julho-agosto, 1960, p. 9. Edição Especial. Fonte: Inventário da UV – Iphan, 2009.

Para auxiliar na distribuição da setorização, a equipe técnica havia elaborado um plano de distribuição de equipamentos públicos denominado “esquema”, encontrado no Arquivo Público do DF. Este fotograma4 não tem data nem autoria, mas presume- se que tenha sido produzido entre 1957 e 1960. Percebe-se no “Esquema” que a palavra “setor” não tinha o cunho de “lugar de concentração de serviços ou atividades

de mesma natureza”, como é entendido atualmente. Designa antes um sistema de distribuição de atividades, representados por cores e formas geométricas. A maioria dos setores, na condição apresentada, é constituída por pontos isolados de distribuição, como no curioso caso do setor “Espiritual”. Para o plano, a coerência encontrava-se na distribuição simétrica e equilibrada das atividades, de maneira a atender igualmente à população em seus raios de abrangência (figura 5).

  1. Em branco está distribuído o Sistema Escolar: jardins de infância e escolas classe dentro das quadras, escolas-parque nas entrequadras e “escola média” junto à via L2. Em amarelo, o “Setor Espiritual”: as igrejas são representadas por triângulos localizados nas entrequadras e na entrada das quadras 400. Em vermelho, o Setor Hospitalar distribui os hospitais distritais, em uma única categoria diferenciada apenas pelo tamanho das áreas destinadas. Em verde, o Setor Recreativo mostra os clubes sociais (triangulo), áreas para esportes (losango). Os cinemas e teatros são apresentados em forma trapezoide. Em roxo, houve a distribuição do Comércio, discriminado em categorias “A, B e C”, e cuja localização no esquema coincide com a localização dos comércios locais e com a W3.

Figura 5: Esquema Geral das Áreas Não Residenciais. Autor e data desconhecidos. Fonte: ArPDF.

Configuração do comércio local na superquadra – representação de modernidade

O projeto 5 da CLS 107 foi elaborado pelo Serviço de Engenharia da Caixa Econômica Federal do Rio de Janeiro, proprietária dos lotes. O processo de aprovação se inicia com o pedido de locação dos blocos à Divisão de Engenharia da NOVACAP, em 20 de junho de 1958, e contou com a aprovação do arquiteto Sabino M. Barroso, da equipe de Oscar Niemeyer (figuras 6 e 7).

Esse projeto configura a alteração da proposta constante do Relatório do Plano Piloto. Os banheiros ficavam nos fundos junto à escada, na sobreloja. Esta ocupava dois terços da loja, configurando um mezanino, e à entrada frontal havia pé-direito duplo. A planta mostra também os pilares redondos da galeria lateral e os pilares quadrados que sustentam as extremidades da marquise. As lojas não foram projetadas com subsolos.

Foram construídas simultaneamente 34 lojas distribuídas em quatro blocos. Essa é outra característica que diferencia a CLS 107/108 das demais. Não se tem conhecimento de outra quadra de comércio local que tenha todas as suas lojas implantadas simultaneamente.

A leitura do projeto confirma a intenção de que, desde a primeira edificação, a fachada voltada para a rua de serviço foi escolhida para acesso principal às lojas.

  1. Os processos de aprovação de projetos mais antigos foram microfilmados e indexados por números de rolos e fotogramas, conforme os endereços dos imóveis. Para essa pesquisa foi necessário conhecer os rolos de números 1292 e 580, disponibilizados pela Administração Regional de Brasília.

Figura 6 e 7: Projeto do SCLS quadra 107 de autoria da Caixa Econômica Federal do Rio de Janeiro. Fonte: Adm. Regional de Brasilia, GDF

Embora tenha sido de autoria do proprietário das lojas, foi chancelada pela autoridade responsável pela aprovação de projetos. A execução ficou a cargo da Construtora Ecisa.

Os quatro blocos da CLS 108 foram construídos pela Construtora Veritas S.A., quase ao mesmo tempo da CLS 107. O projeto consultado na Administração Regional de Brasília indica claramente a aprovação do arquiteto Oscar Niemeyer Filho, embora não tenha sido ele o signatário6. É assinado pelo arquiteto Mauro Costa Cavalcanti e

visado por Glauco Campelo. Este projeto, ao contrário do anterior, tratou as fachadas

6 Constam nas plantas o carimbo de aprovado do arquiteto, com assinatura não identificável, e a expressão “De ordem”, abaixo da assinatura.

principais voltadas para o interior da superquadra, conforme a proposta de Lucio Costa.

Percebe-se a diferença pelas janelas da sobreloja voltadas para a “via de serviço”, mais altas e menores, e há indicação de “acesso de mercadorias” no limite da calçada junto à via. A fachada voltada para a área residencial foi projetada com janelas longas e amplas, portas e vitrines. Os banheiros e a escada de acesso à sobreloja situam-se junto à fachada voltada para a rua. As lojas foram projetadas com subsolos cujos poços de ventilação (poço inglês), situados na fachada considerada “principal”, são interrompidos para permitir o acesso às lojas com conforto (figuras 8 e 9).

Figuras 8 e 9: projeto da CLS 108, bloco D, de autoria de Mauro Costa Cavalcanti, aprovado “de ordem” por Oscar Niemeyer, e visado por Glauco Campelo. Fonte: Adm. Regional de Brasília, GDF

Embora o projeto arquitetônico da CLS 108 seja mais cuidadoso e melhor detalhado, em essência a tipologia das duas quadras não mudou. São edifícios de dois pavimentos sob cobertura em laje plana, com marquises de três metros de avanço em ambos os lados. As laterais das lojas são empenas cegas. As fachadas são simples aberturas totais no térreo, e janelas “em fita” na sobreloja, com variações de tamanho.

As fachadas de ambos os projetos são praticamente iguais, com pequena diferença no tamanho das janelas e no tratamento das portas que, juntamente com a posição dos banheiros e escadas em planta, distinguem a fachada principal da posterior.

Entre as diferenças observadas na proposta do Relatório de 1957 e o projeto arquitetônico chama também atenção a extensão dos blocos comerciais que, em vez de ter apenas duas lojas largas, passaram a ter nove ou onze lojas estreitas. Como resultado, foram ampliadas as dimensões dos blocos. Em compensação, a largura interna das lojas foi reduzida a 3,5 metros.

As 34 lojas da CLS 107 ficaram prontas em 23 de março de 1960, 28 dias antes da inauguração de Brasília. Em abril já havia ocupação em algumas delas, conforme se observam nas fotos da época.

Figura 10: primeiras lojas dos comércios locais, antes da inauguração da cidade, 1960. Fonte: ArPDF

Figura 11: Inauguração de Brasília, vendo-se ao fundo a CLS 107 concluída. 1960. Fonte: ArPDF.

Configuração da Rua da Igrejinha – representação de identidade

Inaugurada em 28 de junho de 1958, a Igreja de N. Sra. de Fátima7 ou Igrejinha, como é popularmente conhecida, situa-se em local topograficamente privilegiado em relação à via de serviço 107/108, e tornou-se um marco visual e referência do lugar (figura 12). Foi testemunho da construção e desenvolvimento da unidade de vizinhança, e sua importância na história desta é tamanha que a via ficou conhecida como Rua da Igrejinha. Em Brasília este é o único comércio local distinguido com um nome, à maneira das cidades tradicionais.

Figura 12: a Igrejinha N. Sra. de Fátima ao final da via de serviço CLS 107/108. 1960. Fonte: ArPDF

Como as superquadras ainda não tinham moradores - encontravam-se em obras - e a rua era a passagem obrigatória para acessar o eixo rodoviário ou a via W3 já em funcionamento e os equipamentos em construção, inclusive a Igreja N. Sra. de Fátima,

7 Projeto de Oscar Niemeyer.

os comerciantes trataram como principal a fachada voltada para a rua. Batista (1965) cita que as razões por que essa solução prevaleceu foram, em primeiro lugar, a tradição vivenciada em outras cidades, e em segundo lugar, a dificuldade que os comerciantes tinham em compreender os fundamentos do plano, “as razões da nova cidade” 8.

O sistema viário sinuoso e aberto permite que pessoas de outras partes da cidade acessem facilmente os equipamentos urbanos da unidade de vizinhança e sobretudo os comércios locais, mantendo porém resguardadas do movimento intenso as áreas residenciais. A passagem pelos comércios locais constitui trajeto obrigatório a quem acessa as superquadras, o que fez com que as vias planejadas para serem de serviços transformassem-se em vias de passagem, contribuindo para o aumento do número de pessoas que circulam entre os comércios locais.

Além disso, o comércio intercalado com as entrequadras destinadas a equipamentos gerou uma sobreposição das áreas de influência que termina por integrar as unidades de vizinhança (Gorovitz e Ferreira 2008, p. 22).

Carpintero (1995) e Leitão (2003) afirmam que o fluxo transversal das zonas residenciais não era previsto para ser tão intenso, mas a localização dos equipamentos públicos do tipo escolas, hospitais e centros paroquiais, que foram situados acima da via W3 e abaixo da via L2, criaram a necessidade desse fluxo não planejado.

Em decorrência, a instalação de atividades comerciais que extrapolaram a condição de apoio à vizinhança foi natural. Desde os primeiros anos de ocupação, lojas de departamentos, agencias bancárias e cartórios já funcionavam na Rua da Igrejinha, embora não fossem permitidos pelas normas. O espaço adquiriu características de comércio regional, que atende a toda a cidade e emprega trabalhadores de todos os núcleos urbanos do DF. Esses fatores contribuíram para modificar o conceito original dos comércios locais para um comércio de bairro, com abrangência ampliada sem rejeitar, porém, o caráter de comércio doméstico ou cotidiano.

Figura: Casas Pernambucanas, pioneira na CLS 108. 1960. Fonte: ArPDF

8 BATISTA, 1965, p. 15.

O uso comercial era permitido para o local em suas mais estritas categorias, aquelas de apoio ao uso residencial, entretanto o regulamento surgiu somente após a consolidação das atividades no lugar, de maneira a regularizar o que ocorria na prática. A Decisão nº 02/1976 do Conselho de Arquitetura e Urbanismo- CAU9 tornou claras as normas de uso, que são vigentes até hoje.

Entre 1988 e 2012 foram aprovadas novas normas de edificação e gabarito que promoveram alteração dos parâmetros de ocupação das lojas, mas não de usos ou atividades. Essas atuaram principalmente na regularização dos acréscimos e extensões das edificações para os fundos e para as laterais, efetuados em área pública e disseminados por todas as quadras de CLS, vulgarmente conhecidos como “puxadinhos”.

A reconfiguração do espaço apropriou-se da via modernista e a aproximou da rua ao estabelecer a relação direta do espaço privado com a calçada, e compartilhando o espaço público com os pedestres e com os veículos. Nos fundos das lojas voltados para as superquadras prevalece a relação indireta característica do Movimento Moderno, e o acesso só é possível a pé, o que possibilitou o estabelecimento de fundos de lojas, com desvirtuamentos e invasões das áreas públicas pelos comércios.

Entretanto, a avaliação é que a configuração resultante das transformações não perdeu em qualidade nem descaracterizou aquilo que estava proposto. Ao contrário, estas foram positivas para a apropriação social e para a vivencia do lugar, pois ao reverter a condição de via de serviço deu abertura para o encontro não programado dos habitantes das superquadras, e destes com pessoas de fora da unidade de vizinhança. Os lugares dos comércios locais assumem assim seu papel de espaço público de encontros e de trocas, como também aquele da tolerância para com o “estrangeiro” (figuras 14 e 15).

Figura 14: Rua da Igrejinha nos primeiros anos de existencia.S/D, autor não identificado. Fonte: Acervo Instituto Moreira Salles apud Kim e Wisely, 2010

9 Órgão deliberativo do Governo do Distrito Federal responsável à época pela aprovação das normas urbanísticas e projetos.

Figura 15: Loja da CLS 108 com abertura para o interior da quadra. Fonte: BATISTA, 1965

Nesse aspecto retomamos o que diz Certeau sobre a cidade planejada:

...se, no discurso, a cidade serve de baliza ou marco totalizador e quase mítico para as estratégias socioeconômicas e políticas, a vida urbana deixa sempre mais remontar àquilo que o projeto urbanístico dela excluía. A linguagem do poder “se urbaniza”, mas a cidade se vê entregue a movimentos contraditórios que se compensam e combinam fora do poder panóptico. (CERTEAU 1998, 174).

O partido inicial, ao contrário de ter os critérios e princípios urbanísticos minimizados, soube acolher suas representações posteriores, na área estudada, e todas contribuíram para formar a identidade de Rua da Igrejinha, tal qual a conhecemos atualmente. Mas a história não acaba por aqui.

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