Resumo

Este trabalho tem o objetivo de examinar as contribuições que o Projeto do Bairro residencial da Praia de Belas, elaborado por Edvaldo Pereira Paiva e Carlos Maximiliano Fayet, em 1953, traria à cidade Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, Brasil. O projeto não realizado, que provoca o confronto entre a grande escala da superquadra moderna e a escala recorrente do quarteirão tradicional, é uma das tantas versões pensadas para a enseada da Praia de Belas, um lugar que é uma obra do tempo. Sua existência se reduz a duas imagens e um pequeno texto no Plano de 1959, mas o restrito material com força de poema enuncia um espaço e evoca seus tempos. “Tempo e espaço (...) são também o lugar em movimento, ou aquilo que nos transformou em seres históricos e que nos mantém em uma viagem no tempo aleatória e absurda, porém totalmente coerente” (CUNHA, 2013, p. 65). A partir dessa ideia, pretende-se construir uma narrativa capaz de mostrar o lugar em movimento num percurso através de seus tempos: o passado, representado por seus precedentes; e o futuro desejado em seu próprio tempo, os otimistas e ousados, anos 1950. Tempos que correspondem aos planos urbanísticos realizados para a cidade em 1914, 1936, 1943, 1951 e 1959, os três primeiros, elaborados de acordo com o modelo haussmaniano; os dois últimos, filiados ao modelo corbuseano. Em termos teórico-metodológicos, parte- se da explicitação dos modelos, da natureza utópica do plano urbanístico e da ideia do projeto como ferramenta intelectual capaz de realizar a mimese do modelo e a colagem entre tempos e modelos morfológicos.

Palavras-chave: Plano Urbanístico, Projeto, Praia de Belas, Haussmann, Le Corbusier, Brasília

Abstract

This research aims to examine the contribution that the design of the residential neighborhood of Praia de Belas, designed by Edvaldo Pereira Paiva and Carlos Maximiliano Fayet, in 1953, would bring to the city Porto Alegre, capital of Rio Grande do Sul, Brazil. The unrealized project, which causes large-scale confrontation between the modern and the applicant superquadra range of traditional block, is one of the many versions designed for cove of Praia de Belas, a place that is a work of time. Its existence is reduced to two pictures and a little text in Plan of 1959, but the restricted material strength poem sets out a space and evokes his times. "Time and space ( ... ) are also the place to go, or what made us historical beings and that keeps us on a journey in time random and absurd, but entirely consistent" (CUNHA, 2013, 65). From this idea, we intend to construct a narrative able to show the place in motion a journey through his times: the past, represented by its predecessors, and wanted their own time in the future, optimistic and bold, 1950s. Times corresponding to the urban plans for the city conducted in 1914, 1936, 1943, 1951 and 1959, the first three, drawn up in accordance with the Haussmann style, the last two members to corbusean model. In theoretical and methodological terms, we start from the explicit models, the utopian nature of urban planning and design idea as an intellectual tool capable of performing the mimesis model and the bonding between times and morphological models.

Keywords: Urban plan, design, Praia de Belas, Haussmann, Le Corbusier, Brasília

O Projeto do Bairro residencial da Praia de Belas: tempos e modelos

Esta pesquisa se insere na área temática do Discurso Profissional e tem o objetivo de examinar as contribuições que o Projeto do Bairro residencial da Praia de Belas, elaborado por Edvaldo Pereira Paiva e Carlos Maximiliano Fayet em 1953, traria à cidade Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, Brasil. O projeto não realizado estabelece um confronto entre a grande escala da superquadra moderna e a escala recorrente do quarteirão tradicional; e é uma das tantas versões pensadas para a enseada da Praia de Belas, um lugar que é uma obra do tempo. Sua existência se reduz a duas imagens e um pequeno texto no Plano de 1959, mas o restrito material com força de poema enuncia um espaço e evoca seus tempos. “Tempo e espaço (...) são também o lugar em movimento, ou aquilo que nos transformou em seres históricos e que nos mantém em uma viagem no tempo aleatória e absurda, porém totalmente coerente” (CUNHA, 2013, p. 65). A partir dessa ideia, pretende-se construir uma narrativa capaz de mostrar o lugar em movimento em um percurso através de seus tempos: o passado, representado por seus precedentes; e o futuro desejado em seu próprio tempo, os otimistas e ousados, anos 1950. Tempos que correspondem aos planos urbanísticos realizados para a cidade em 1914, 1936, 1943, 1951 e 1959, os três primeiros, elaborados de acordo com o modelo haussmaniano; os dois últimos, filiados ao modelo corbuseano. Em termos teórico-metodológicos, parte-se da explicitação dos modelos, da natureza utópica do plano urbanístico e da ideia do projeto como ferramenta intelectual capaz de realizar a mimese do modelo e a colagem entre tempos e modelos morfológicos.

Plano urbanístico: retrato e modelo

O Plano urbanístico é o instrumento de ação sobre a cidade característico da era moderna. Pré-figuração de um tempo-espaço de desejo sobreposto a uma cidade real, “diagrama do devir histórico de uma sociedade, forma específica de intencionalidade” (ARGAN, 2001, p. 51), reintroduzindo o antigo tema da cidade ideal e da utopia: uma palavra de origem grega, que designa um lugar que não existe -- ou-topos, “não lugar”, e eu-topos, lugar de felicidade, exemplificada na Utopia de Thomas Morus, publicado por volta de 1516. O espaço utópico de Morus vincula uma organização social perfeita, não apenas a um espaço paradisíaco, mas a um espaço novo, com uma dupla dimensão: uma artística, de lugar; e uma funcional, de modelo ou protótipo:

A primeira imagem, que chamarei retrato porque pinta os traços espaciais que fazem de Utopia uma individualidade única, é fruto, até na particularidade de suas construções, das contingências de sua geografia, física e de sua história. A segunda imagem, que denominarei modelo porque retém de Utopia apenas traços espaciais mal localizados e reproduzíveis, depende, ao contrário, exclusivamente da ordem humana e de um estrito sistema de normas culturais. Essas duas imagens permanecem distintas (...), descendo da escala do território à da cidade e da casa (CHOAY, 1985, p. 153).

Modelo, por definição, é o que serve de objeto de imitação. Os Planos urbanos modernos adotam dois tipos de modelos genéricos: o haussmaniano e o corbuseano.

Modelo Haussmaniano

O modelo haussmaniano surge a partir das reformas realizadas pelo Barão Georges- Eugène Haussmann em Paris após a Revolução Francesa. A estratégia utilizada partia de uma concepção da cidade como um sistema de partes independentes que deveria atender a tres requisitos fundamentais: embelezamento, saneamento e os problemas relativos à circulação, trinômio que se tornou a definição da palavra-conceito melhoramentos.

A técnica utilizada é a sobreposição de uma malha geométrica de novas avenidas ao antigo traçado medieval, um elemento que embeleza a cidade com suas longas perspectivas e racionaliza as obras de infraestrutura e saneamento. A obra é única, retrato das peculiaridades de Paris, mas se torna embrião do urbanismo como ideologia e ciência interdisciplinar: modelo de cidade figurativa, conformada por quarteirões de ocupação periférica, perfurados por rua corredor, pátio, praça e parque, princípios aplicáveis a outros contextos.

A partir de Haussmann, os planos tornam-se projetos de ação total sobre a cidade. O paradigma orientou diversos projetos urbanísticos brasileiros, como o Plano da Cidade do Rio de Janeiro, de Alfred Agache, 1928, o Plano de Avenidas de São Paulo de 1930 e os planos urbanos de Porto Alegre anteriores aos anos 1950. (MACHADO, 2003) (Fig.1)

Figura 1: Modelo haussmaniano. Paris, Bulevar Richad-Lennoir, 1861-1863. Fonte: ROWE; KOETTER,1978

Modelo Corbuseano

O modelo corbuseano surge a partir do projeto e do texto La Ville Radieuse, 1924-32, a segunda proposta ideal sobre terreno fictício plano, concebida por Le Corbusier a partir de duas malhas giradas a 45 graus. O seu esquema antropomórfico que estrutura as faixas de uso paralelas, inspiradas na Cidade Linear do urbanista russo Nikolay Alexandrovich Milyutin, representa uma evolução em relação ao esquema anterior da Ville Contemporaine de 1922, cujo esquema concêntrico, desenvolvido em torno de um ponto central correspondente ao centro de negócios (cité d´affairs), não permitia o crescimento ilimitado da cidade. A separação entre veículos e pedestres é lograda pela elevação da cidade acima de um parque contínuo (MONTEYS, 1996, p. 42-48).

As unidades de vizinhança, superquadras 400 por 400 metros de lado, surgem como alternativa ao quarteirão tradicional e constituem a vertente racionalista do conceito criado por Clarence Arthur Perry para o plano de Nova Iorque de 1929: áreas residenciais autônomas, organizadas em torno de uma escola, delimitadas por serviços e equipamentos de uso coletivo, dotadas de áreas verdes e de um sistema hierarquizado de vias de acesso (CASTRO; BEM; GIANSANTE, 2005, p. 3-4).

A Ville Radieuse é uma representação neoplatônica do sonho de comunhão do homem com o meio ambiente corretamente ordenado e do mundo moderno como um momento de retorno à ordem. Símbolo da superação da era histórica pela era tecnológica, na qual noção de progresso confundia-se com a ideia de destino (ARGAN, 2001, p. 23). (Figs. 2 e 3)

A partir da segunda metade do século XX, essa nova ordem formal do espaço social com traços utópicos é reinterpretada no Projeto residencial do bairro Praia de Belas e no projeto do Plano Piloto de Brasília, elaborado por Lucio Costa em 1957.

Figura 2. Ville Radieuse, Plano. Fonte: [http://www.fondationlecorbusier.fr]{.ul}

Figura 3. Unidade de vizinhança da Ville Radieuse. Fonte: [http://www.fondationlecorbusier.fr]{.ul}

Brasília

Brasília, posterior ao Projeto da Praia de Belas, não é referência e sim verificação das qualidades do modelo corbuseano construído. A ideia de utilizar o conceito de Unidade de Vizinhança no projeto da nova capital brasileira é anterior ao Plano Piloto, onde Lucio Costa realiza uma interpretação própria do modelo corbuseano, contraposição ao conceito de “condomínio” fechado e privativo: um módulo formado por quatro grandes quarteirões com 280 X 280 metros de lado, circundados por uma faixa de vegetação, no encontro dos quais, localiza-se a Igreja e a Escola Secundária. As extremidades abrigam o Posto de Saúde, a Biblioteca Pública, o Cinema, o Clube de Vizinhança e os comércios locais. Os seus interiores arborizados destinam-se às áreas de lazer.

O módulo de quatro quadrados se repete ao longo das Asas, norte e sul do plano e constitui a expressão máxima da ideia de cidade no parque, com sua setorização de atividades, ruas internas com formas orgânicas, hierarquia de vias de acesso e blocos de habitação coletiva com seis pavimentos sobre pilotis. Oscar Niemeyer desenvolveu a proposta dos blocos residenciais das SQS 107, 108, que em conjunto com as SQS 307 e 308, conformam a unidade de vizinhança modelo, composta por onze edifícios (CORBIOLI, 2014).

As superquadras diferem do quarteirão convencional em termos de escala e parcelamento: “possuem um tipo de propriedade do solo urbano diferenciado, próprio do Plano Piloto. Os edifícios ocupam projeções, e não lotes, que definem uma quota de construção somente acima do pilotis e no subsolo (MATOSO, 2011). Desta forma, a arquitetura flutua sobre um jardim contínuo. Entretanto, ao contrário dos gigantescos espaços conformados pelos rédans da Ville Radieuse, a disposição dos blocos em torno de espaços abertos variados no interior das superquadras mantém viva a ideia de pátio delimitado da cidade tradicional. Surpreendentemente, a

experiência do passeio por algumas superquadras reproduz a deliciosa sensação de proteção e acolhimento do miolo de quarteirão espanhol, só que arborizado e condizente com um país tropical: “as superquadras residenciais são talvez um dos cenários urbanos mais bem-sucedidos e menos conhecidos daqueles que nunca habitaram a cidade” (MATOSO, 2009). (Fig.4)

Figura 4. Brasília: Superquadras 107, 108, 307 e 308. Fonte: Google Earth

A escala residencial estabelece um contraste com a escala grandiosa do Eixo Monumental, cujo caráter abstrato, cenográfico e futurista alude, paradoxalmente, aos eixos e perspectivas de Paris, aos gramados verdes ingleses, à pureza de Diamantina e aos terraplenos e arrimos chineses do começo do século XX. Entretanto, a realidade de Brasília distancia-se do Plano de Lucio Costa. Além das tesourinhas, vistas por alguns moradores como “labirintites viárias” (CUNHA, 2013, p. 66), outros problemas são apontados, como mostra o filme de Joaquim Pedro de Andrade, 1967:

Na verdade, a descrição quase que científica de Brasília funciona como um contraponto ao que está por vir, ou seja, às contradições que o título do filme indica. Brasília: contradições de uma cidade nova percebe o rumo da cidade, percebe não ser plausível enfatizá-la como apoteose arquitetônica, como muitos ainda a veem. São contradições que desconstroem o mito socialista de sua fundação, com antíteses do tipo: “a superquadra é o reino da vida familiar confortável” (...) Brasília encarna o conflito básico da arte brasileira, fora do alcance da maioria do povo. O plano dos arquitetos propôs uma cidade justa, sem discriminações sociais, mas a medida que o plano se tornava realidade, os problemas cresciam para além das fronteiras urbanas em que se procurava conter. Na verdade são problemas nacionais, de todas as cidades brasileiras, que nesta, generosamente concebida, se revelam com insuportável clareza (CUNHA, 2013, p. 66).

Duas matrizes

Se o modelo haussmaniano afirma a norma da cidade tradicional, o modelo corbuseano surge como sua antítese morfológica e perceptiva. O primeiro corresponde a uma matriz urbana figurativa; o segundo a uma matriz urbana abstrata (PETERSON, 1980). O antagonismo perceptivo entre ambas é descrito por Comas:

O formato da cidade ideal moderna pode ser descrito como a acumulação de objetos construídos em um contínuo tratado como parque basicamente indiferenciado, cortado por autopistas e caminhos. Em contraposição, o formato da cidade tradicional pode ser descrito como a acumulação de espaços vazios -- ruas e praças, configuradas por fachadas contínuas alinhadas -- dentro de uma massa construída predominantemente indiferenciada, perfurada por pátios e quintais privados. Desde o ponto de vista perceptivo, no formato tradicional, a figura é o espaço, o fundo é construção. No formato modernista, a figura é o edifício, o fundo é paisa- gem (COMAS, 1986, p. 128). (Fig. 5)

Figura 5. Matrizes figurativa e abstrata: Place des Voges e Ville Radieuse. Fonte: ROWE; KOETTER, 1978, p. 55

A cidade no parque representa não apenas uma visão ideal, otimista e alegórica da civilização industrial da era da máquina, mas uma tentativa de ruptura e superação dos padrões formais e comportamentais tradicionais.

O Projeto do Bairro residencial da Praia de Belas e seus tempos

Os três primeiros tempos do Projeto do Bairro residencial de Praia de Belas adotam o modelo haussmaniano: o primeiro corresponde ao Plano de Melhoramentos e Orçamentos, elaborado em 1914 por Moreira Maciel, no qual a orla era concebida como um grande boulevard -- a Avenida Porto -- ligando o porto reformado à Praia de Belas, destinada a um cais de saneamento. Apesar de não concretizado integralmente, o plano gerou ideias para a cidade que futuramente possibilitariam a realização do Projeto de 1953, como a obra de prolongamento da Avenida Borges de Medeiros em 1927, estabelecendo a conexão do centro com a enseada da Praia de Belas. (Fig. 6)

Figura 6. Plano de Melhoramentos de Moreira Maciel, Porto Alegre,

  1. Fonte: ELARQA. v.33. 2000.

O segundo tempo corresponde à Contribuição ao Estudo da Urbanização de Porto Alegre, 1936, um estudo que propõe reformas na cidade e trata a Praia de Belas como um caso específico, sugerindo, além da sua conexão com o centro através de uma avenida marginal, o saneamento, a ocupação residencial e a ampliação da enseada através de aterros. (Fig. 7)

Figura 7. Bairro Praia de Belas na Contribuição ao Estudo da Urbanização de Porto Alegre, 1936.Fonte: PMPA

O terceiro tempo se traduz no Plano Gladosch de 1943, no qual a Praia de Belas é igualmente apresentada como um projeto específico. O plano se caracteriza pela criação de uma malha de áreas verdes e de um sistema viário radial, no qual a Avenida Beira Rio ajardinada se destaca, estabelecendo um maior contato da cidade com o rio Guaíba. A área de aterros da Praia de Belas seria parcelada através do prolongamento do traçado viário existente, gerando quadras de 60 a 70 m de largura

por 200 a 250 m de comprimento; e lotes de 12m de frente, por 35 m de fundos, que abrigariam 42.000 pessoas, numa densidade de 300 hab/ha. (Fig. 8 e 9)

Figura 8. Plano Gladosh. Fonte: BOHRER, 2001

Figura 9. Praia de Belas no Plano Gladosch. Fonte: BOHRER, 2001

Os dois últimos tempos filiam-se ao modelo corbuseno. O quarto tempo corresponde ao Pré-Plano de Porto Alegre, elaborado em 1951 por Edvaldo Paiva e Demétrio Ribeiro, no qual a área da Praia de Belas adquire feições de um bairro moderno que embasa a versão de 1953. (Fig. 10)

Figura 10. Pré Plano. Fonte: BOHRER, 2001

O quinto tempo é o plano de 1959, o primeiro plano diretor de Porto Alegre em forma de lei, no qual os ideais da Carta de Atenas se traduzem no zoneamento de uso do solo urbano, na abertura de perimetrais, na criação de mecanismos para a regulamentação das edificações visando a paulatina substituição das tipologias então vigentes pelo prisma sobre pilotis, afastado das divisas do lote e na concepção da Praia de Belas como bairro residencial modelo (MACHADO, 2003).(Fig. 11)

Figura 11. Plano de 1959. Fonte: PMPA

O Projeto do Bairro residencial da Praia de Belas e suas superquadras

O Projeto do Bairro residencial da Praia de Belas elaborado por Edvaldo Pereira Paiva e Carlos Maximiliano Fayet em 1953, metonímia do plano de 1959, traz a superquadra a Porto Alegre, não como fato, nem como sugestão, mas como projeto. O novo bairro seria implantado sobre 300 ha de aterro hidráulico, um terreno artificial e plano protegido longitudinalmente das cheias periódicas por um dique na altura de 6,00m, sobre o qual se desenvolveria a Avenida Beira Rio, uma via rápida ligando a península central à Ponta do Dionísio, na zona sul da cidade. Transversalmente, o terreno seria cortado pela Avenida Ipiranga, construída em ambos os lados do Riacho canalizado.

O desenho do conjunto, em forma de “L”, é análogo ao avião do Plano Piloto de Brasília, mas de forma assimétrica. Estrutura-se a partir do prolongamento da Avenida Borges de Medeiros e de um eixo diagonal traçado entre a antiga Ponte de Pedras e a baía artificial criada acima da desembocadura do arroio Dilúvio, onde se localiza o centro esportivo proposto, com um estádio para 100 mil pessoas, acompanhado de um grande ginásio coberto, iate clube e cassino. Esse eixo é a diagonal de uma superquadra de 22 ha, de uso público, na qual estão dispostas barras residenciais de 20 pavimentos. A partir do eixo, arma-se a “asa” menor, a leste, -- a parte do aterro que alarga a península da área central da cidade --, e a “asa” maior, ao sul, correspondente ao aterro que amplia a enseada da Praia de Belas.

O traçado viário hierarquizado subdivide as “asas” em avenidas transversais ao rio, que delimitam unidades de vizinhança, subdivididas em quadras parceladas em lotes de 15 por 30 m, resultando numa densidade de 15 a 20 ha, servidas por ruas do tipo “entra e sai” e circulação para pedestres. As ruas locais seguem a forma dos Rédans da Ville Radieuse, e os blocos residenciais dispostos em torno de espaços verdes reinterpretam a Cidade Jardim e as Unités Habitationels. (Fig. 12 e 13)

Figura 12. Bairro Residencial da Praia de Belas, 1953. Fonte: Plano Diretor de Porto Alegre, 1964

Figura 13. Bairro Residencial da Praia de Belas, 1953. Fonte: idem

Os 1.870 lotes abrigariam 120.000 habitantes, resultando em uma densidade de 400 hab/ha. Mercados de abastecimento implantam-se na junção das diversas unidades e cada uma é dotada de uma escola primária e uma secundária, um espaço verde público e setores para recreação infantil. Um hospital complementa o conjunto.

Tipologicamente, preconiza-se o edifício modernista isolado do lote, sobre pilotis, com térreo mais três pavimentos. Sobre as avenidas longitudinais paralelas ao rio, Avenida Borges de Medeiros e Avenida Beira Rio, estipulam-se lotes um pouco maiores e adota-se o edifício-barra com 10 pavimentos, estacionamentos próprios, recuos de 6 m de frente e fundos, e de 4 m nas laterais. Nas ruas secundárias, são previstos edifícios de 11 m de altura.

O novo desenho da enseada aproxima a cidade e a natureza. A faixa litorânea entre o Rio Guaíba e a Avenida Beira Rio é formada por três grupos de balneários em dois níveis: o da avenida, com bares e restaurantes, e o da praia, com os vestiários. De acordo com Paiva,

Essas são as características do projeto aprovado e em vias de execução imediata. Traçado racional, econômico e salubre. Conservação da integridade do terreno, continuidade de jardins e parques. Boa e uniforme orientação das vivendas. Caminhos próprios para os pedestres, protegidos e separados do trânsito veicular. Segurança e amplitude do espaço livre, para uso das crianças e recreio dos adultos. A futura Praia de Belas, assim concebida, adquirirá uma fisionomia totalmente

distinta dos outros bairros da capital rio-grandense. A própria vida de seus habitantes adquirirá, seguramente, outro caráter. A natureza entrará a formar parte do ambiente cotidiano. Árvores, ar puro e sol deixarão, assim, de ser meros acidentes na vida do homem urbano (PAIVA; FAYET, 1956, p. 35).

Essa versão gaúcha dos grandes bairros de habitação coletiva do Movimento Moderno, como o Toulouse le Mirail, não se concretizou.

O papel do projeto

A implantação o Projeto do Bairro residencial da Praia de Belas pressupõe o confronto entre as duas matrizes, figurativa e abstrata provocando, em princípio, uma ruptura formal e social no processo mais ou menos contínuo de construção da cidade. Questão específica e genérica dos anos 1950 na América Latina: a inserção da arquitetura moderna na cidade tradicional através de projetos e planos urbanos. (Fig. 14)

Figura 14. Tecido corbuseano e tradicional. Fonte: [http://www.fondationlecorbusier.fr]{.ul}

Se em Brasília a superquadra é a célula que gera a cidade, em Porto Alegre a superquadra é um elemento que contrasta com o quarteirão tradicional, em termos de escala e conceito. O confronto de modelos propicia, contudo, para os arquitetos da época, o desenvolvimento de estratégias projetuais capazes de promover costuras e colagens entre escalas tão distintas.

Trata-se de um confronto entre modelos e entre um modelo e a realidade de uma cidade, originada de um modelo que já se tornou vida. Se o modelo é algo para ser imitado, o projeto é a ferramenta intelectual capaz de realizar a mimese, que não é simples cópia, valorizando seus princípios e violando as suas regras.

A estratégia do Projeto da Praia de Belas consiste em deformar, no bom sentido, os conceitos modernistas em função das características do contexto. O conjunto representa uma ruptura com o modelo da cidade tradicional em termos de escala,

organização e divisão do solo, hierarquização de vias e distribuição de equipamentos. Mas a autonomia endossada pelo cinturão de edifícios em altura localizados nas avenidas principais é amenizada pelas continuidades estabelecidas entre a malha proposta e a existente, de origem portuguesa. Essa adequação pressupõe a alteração das dimensões da unidade de vizinhança original corbuseana.

As grandes torres conferem um caráter urbano ao conjunto, compatível com a escala do centro e protegem a área residencial da poluição sonora e visual das avenidas. Contrastam talvez demasiadamente com os blocos baixos de habitação coletiva dos interiores das unidades de vizinhança que, ainda assim, constituem a escala de morar suburbana típica e aconchegante da cidade jardim. Em termos de fundo e figura, as superquadras conformam uma escala intermediária entre o tecido mais denso da cidade antiga e a paisagem do Guaíba.

Soluções como o Projeto do Bairro residencial de Praia de Belas demonstram como um projeto capaz de articular modelo e circunstância torna-se uma peça ativa na grande colagem que é a cidade. Sua dupla condição espacial de retrato e de modelo, alude à Utopia de Morus: obra de arte arquitetônica total em conjunto com uma reformulação das suas questões de teoria e método.

No Projeto da Praia de Belas, o espaço retrato corresponde às suas particularidades, como a proposição de uma nova orla, na qual a habitação rodeada de verde aproximaria Porto Alegre do Rio Guaíba. O espaço modelo se expressa através dos ideais de universalidade, reprodutibilidade, zoneamento de usos, traçados reguladores e na nova escala morfológica de superquadras que se opõem à tradição, o futuro desejado no tempo do projeto.

Um filme sobre a Praia de Belas colocaria de fato a orla do Guaíba em movimento, mostrando a mutação do espaço ao longo do tempo. Um final feliz e ficcional poderia se desenhar com a triunfante cena moderna: o cenário de bairro jardim enunciado pelo projeto reinventando a relação da cidade com o rio e possibilitando uma vida coletiva justa e em harmonia com a natureza.

Mas o projeto não se concretizou e talvez o modelo de paraíso dos anos 1950 não fosse viável atualmente, tempo caracterizado pela paranoia da violência que esvazia os espaços urbanos públicos. Um filme realista sobre a Praia de Belas mostraria certamente o fracasso do modelo: os pilotis convertidos em estacionamentos e as superquadras fechadas com cercas elétricas. Entretanto, o Projeto do bairro residencial da Praia de Belas de 1953 faz parte da memória da cidade, marcando o primeiro passo do movimento da cidade em direção à modernidade.

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