Eixo temático: Território

Resumo

A habitação de interesse social com recursos Banco Nacional de Habitação no Brasil – 1964/1986

O desenvolvimento das iniciativas oficiais no provimento de habitações para a população de baixa renda no Brasil pode ser dividido em três fases, de acordo com os órgãos financiadores. A primeira delas, a partir de 1937 com o início da intervenção estatal através da experiência dos Institutos de Aposentadoria e Pensões - IAPs. A segunda, com a criação do Banco Nacional de Habitação - BNH, uma das primeiras iniciativas do regime militar instalado em 1964; e a terceira, o período pós-BNH, depois da extinção do banco em 1986, desarticulando o programa habitacional no país. As iniciativas fomentadas pelos IAPs marcaram a introdução de conceitos modernos em habitação coletiva no país. Promovida pelo BNH, esta produção sofreu declínio na qualidade arquitetônica, ocupou a periferia das cidades sem infra-estrutura adequada, trazendo uma acepção negativa: o chamado “padrão BNH”. O texto está centrado na busca de relações entre dois temas: a arquitetura moderna brasileira e os conjuntos de habitação coletiva promovidos pelo BNH. Buscou-se uma apreciação de conjuntos habitacionais despida de qualificação apriorística, de modo a investigar a interdependência entre os projetos arquitetônicos e a doutrina da arquitetura moderna.

Palavras-chave: arquitetura moderna, habitação social, habitação para baixa renda

Abstract

Social interest housing with resources from Banco Nacional da Habitação in Brazil – 1964/1986

The development of official initiatives to provide housing for the low-income population in Brazil can be divided into three phases, according to financing agencies. The first phase begins in 1937 with interventionism through the experience of the Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs). The second phase starts with the creation of the Banco Nacional de Habitação (BNH), one of the first actions of the military regime, installed in 1964. The third phase, the post-BNH period, after its dissolution in 1986, is the disarticulation of the national housing program. The initiatives fomented by the IAPs marked the introduction of modern concepts in terms of collective housing to the country. Promoted by BNH, such production faced a declined in architectural quality, occupied the cities’ outskirts without proper infrastructure, and added a negative meaning to the so-called “BNH standard”. The present text is focused on the search for the relations between two themes: the modern Brazilian architecture and the housing complexes promoted by BNH. The aim is an appreciation of the housing complexes, without any a priori qualifying sense, so to investigate the interdependency between those architectural projects and modern architectural theory.

Key words: modern architecture, social housing, low-income housing


A habitação de interesse social com recursos Banco Nacional de Habitação no Brasil – 1964/1986

Introdução

O século XX iniciou com a idéia de que a cidade seria construída através de um processo evolutivo e acumulativo de experiências, com ocupação contínua do território, onde os diversos usos se complementavam. Esta ótica foi profundamente alterada ao longo do século, pelo advento do urbanismo moderno com a segregação dos usos. A habitação continuou a ser parte fundamental no desenho das cidades, constituindo a maior parte do território urbano. No entanto, se na cidade tradicional a moradia estava miscigenada aos demais programas, na cidade moderna, através do zoneamento funcional, passou a ocupar áreas segregadas e revelou o compromisso da arquitetura moderna com a habitação.

As primeiras experiências modernas com a busca de soluções arquitetônicas para o provimento da habitação em larga escala remonta ao período entre guerras europeu. No Brasil, as preocupações governamentais com a carência habitacional são identificáveis ao longo da história através de várias iniciativas. Tem origem nos anos 30 com a criação das Carteiras Imobiliárias dos Institutos de Aposentadorias e Pensões, possibilitando a aplicação de seus recursos na habitação econômica.

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Figura 1 – Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes (Pedregulho), Rio de Janeiro, Arq. Affonso Eduardo Reidy, 1946-1958. Fonte: HITCHCOCK, 1955.

O desenvolvimento das iniciativas oficiais no provimento de habitações para a população de baixa renda no Brasil pode ser dividido em três fases, de acordo com os órgãos financiadores. A primeira delas marcou o início da intervenção estatal com a experiência dos Institutos de Aposentadoria e Pensões – os IAPs, que através de suas carteiras prediais atuavam de forma fragmentária atendendo apenas aos associados a partir de 1937; a Fundação da Casa Popular – FCP, instituída por decreto federal em 1º de maio de 1946, foi a primeira iniciativa de âmbito nacional voltada unicamente à população de baixa renda; e o Departamento de Habitação Popular – DHP, órgão da Prefeitura do então Distrito Federal, criado no mesmo ano. Deste período, o exemplar arquitetônico destacado foi o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, de Affonso Eduardo Reidy em 1946. A segunda fase se definiu com a implantação do Banco Nacional de Habitação – o BNH, uma das primeiras ações do regime militar recém-instalado em 1964; e a terceira, o período pós-BNH, teve início com a extinção do banco em 1986, desarticulando o programa habitacional no país, restando aos estados e municípios a busca de alternativas para tratar de sua carência de habitações.

O contexto em que nasce o Banco Nacional de Habitação - BNH

Juscelino Kubitschek assumiu a Presidência da República em 1956, cumprindo sua promessa de construir a nova capital do país no planalto central. Os “cinqüenta anos em cinco”, slogan de sua campanha eleitoral, e a construção de Brasília trouxeram desenvolvimento econômico e modernização, mas deixaram endividamento e a habitação social relegada a um segundo plano. Seu sucessor, Jânio Quadros, eleito em 1960, teve uma rápida passagem pela presidência, assumindo o poder no início de 1961 e renunciando em agosto do mesmo ano. Com a renúncia de Jânio, João Goulart, seu substituto legal, é empossado Presidente da República no dia 7 de setembro de 1961, após resistências dos setores mais conservadores por identificá-lo como líder democrático e populista. Por falta de apoio no Congresso Nacional, Jango não conseguiu implantar as Reformas de Base, com as quais pretendia a volta do crescimento econômico e a diminuição das desigualdades sociais. Isolado, procurou apoio na mobilização popular, representada pelo emblemático comício na Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964. A reação das Forças Armadas, com apoio de setores conservadores da sociedade civil, contrários às mudanças não tardou. João Goulart foi deposto em 31 de março de 1964, substituído por uma junta militar que conferiu ao Congresso Nacional a atribuição de eleger o novo mandatário. Desta forma, o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco foi o primeiro Presidente da República escolhido indiretamente, iniciando um longo período de regime militar no Brasil.

Eleito em 11 de abril de 1964, Castelo Branco tomou posse no dia 15 do mesmo mês, em meio a grande tensão popular. Como regime imposto, sem legitimidade, necessitando tomar medidas anti-inflacionárias como a contenção salarial, a demonstração de atenção aos apelos populares despertados no governo Goulart era oportuno.

Em menos de trinta dias de governo Castelo Branco encaminhou ao Congresso Nacional o Plano Nacional de Habitação – PNH. Através da Lei Federal n◦ 4.380, de 21 de agosto de 1964, foi criado o Banco Nacional de Habitação – BNH1, como centralizador das operações financeiras do Plano Nacional de Habitação. A referida lei previa o caráter social da instituição determinando limites mínimos de recursos a serem destinados para habitação de baixa renda.

O desempenho do BNH – década de 70

A partir de sua criação em 1964, o BNH passou por um período de estruturação até 1967 com a implantação do Sistema Financeiro da Habitação, quando foram organizados os órgãos captadores de recursos a serem gerenciados pelo Banco e destinados aos financiamentos para o Plano Nacional de Habitação. O principal agente foi Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – o FGTS, suporte para a concretização do BNH, constituindo sua maior fonte de recursos. Dava-se início no país a uma mentalidade de poupança de apoio institucional, até então inexistente, e que serviria de fonte de recursos financeiros necessários ao desenvolvimento do programa habitacional. Estes aportes financeiros viabilizaram o início de uma atuação mais efetiva do BNH, com a construção de inúmeros conjuntos habitacionais, entre os quais se destaca o Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado, o CECAP-CUMBICA em Guarulhos, projeto dos arquitetos João Batista Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Fábio Penteado, em 1967.

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Figura 2 – Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado, Guarulhos, São Paulo, Arq. João Batista Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Fábio Penteado, 1967. Fonte: Revista Acrópole, n. 372, 1970.

A década de 70 foi o período de consolidação do BNH, com a promoção de conjuntos habitacionais com qualidade arquitetônica que deixava a desejar, mas numa escala de produção bem maior. A conseqüência foi o surgimento de críticas generalizadas abrangendo o afastamento dos conjuntos em relação aos centros urbanos, falta de transporte adequado e de equipamentos, além da crítica à qualidade julgada como deficiente das edificações.

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Figura 3 – Conjunto Habitacional Jardim América, Porto Alegre, RS, Arq. Clóvis Ilgenfritz da Silva e Ignez d´Avila Pinto, 1972-1974. Fonte: acervo da autora.

Com problemas de inadimplência e buscando soluções para dificuldades encontradas no resultado financeiro de suas atividades, o BNH passou por uma série de mudanças que o afastaram de seu perfil inicial no atendimento à população de baixa renda. Ainda nos primeiros dez anos, procurando manter sua capitalização, modificou a população alvo voltando-se ao atendimento de faixa de renda mais alta, além de ampliar sua abrangência com a criação de novos programas.

Entre 1979 e 1983 a economia do Brasil sofreu um forte golpe com a crise do petróleo, num momento em que a dívida externa já estava fora de controle. Nos anos de 1983 e 1984 esta crise se acentuou, com a queda da produção habitacional e a redução na concessão de novos financiamentos. O BNH entrou em sérias dificuldades com inadimplência generalizada, drástica redução na captação de recursos, somados a inúmeros imóveis sem comercialização e contestação organizada de mutuários frente às fórmulas de correção financeira das prestações, se comparadas aos reajustes salariais.

A extinção do BNH

As dificuldades enfrentadas pelo BNH conduziram à sua extinção em 21 de novembro de 1986, através do Decreto-Lei 2.291, com a incorporação de suas atividades à Caixa Econômica Federal2. O período de atuação do Banco, entre 1964 e 1986, coincidiu com a instalação, o auge e a extinção do regime militar, concedendo financiamentos habitacionais em escala sem precedentes no Brasil. Teve atividade mais intensa entre o início do “milagre econômico brasileiro”3, nos primeiros anos da década de 70 e a crise econômica a partir do início dos anos 80.

As iniciativas em habitação social, fomentadas pelos IAPs, FCP ou DHP eram designadas como conjuntos residenciais. Promovida pelo BNH, esta produção assumiu a designação de conjuntos habitacionais e, ao longo do tempo, passou a trazer em si uma acepção negativa: o chamado “padrão BNH”.

Os conjuntos habitacionais ocuparam vazios urbanos e expandiram a periferia das grandes e médias cidades. Tais conjuntos eram formados de pequenas casas em lotes privatizados, ou por blocos de apartamentos implantados numa área coletivizada, em sua maioria sem elevador ou pilotis. Esta produção gerou críticas que muitas vezes confundiram o BNH, como agente financeiro, com os conjuntos habitacionais por ele financiados. Eram apontados problemas como qualidade da execução, falta de infraestrutura e afastamento em relação aos centros urbanos.

As críticas aos conjuntos habitacionais promovidos pelo BNH

O equívoco sobre os encargos do BNH, atribuindo-lhe a responsabilidade sobre a qualidade arquitetônica dos conjuntos por ele financiados, está disseminado nas publicações contemporâneas ao seu período de existência. O papel do Banco, como agente financeiro, foi muitas vezes sobreposto ao compromisso com a excelência do projeto arquitetônico.

A dimensão dos conjuntos habitacionais do BNH, muitas vezes chegando a mais de mil unidades habitacionais, sem a infraestrutura adequada, em localização periférica, com espaços abertos sem configuração espacial ou caracterização de uso, usando a repetição de um mesmo modelo de edificação, independente da localização e costumes regionais, resultou em projetos que não consideram especificidades comprometendo a qualidade das habitações.

A ligação entre a arquitetura moderna e a então chamada habitação popular marcou presença na produção dos IAPs, FCP e DHP pelo caráter inovador em expressivo número de conjuntos habitacionais construídos. Se naquele período a investigação arquitetônica de um grupo significativo de profissionais desta área, comprometidos com a doutrina moderna, esteve próxima das realizações habitacionais para a população de baixa renda, na produção do BNH isto se perdeu. A produção da habitação econômica se afastou do debate e da investigação arquitetônica, fazendo com que a diversidade tipológica, presente nos projetos de conjuntos habitacionais dos IAPs, FCP ou DHP, sofresse importante restrição nas iniciativas financiadas pelo BNH.

Arquitetura moderna brasileira e o BNH

O caráter messiânico do movimento moderno fez com que o projeto para habitação coletiva em grande escala fosse um dos principais temas das discussões em torno da arquitetura e do urbanismo. A discussão sobre a habitação para as massas esteve associada à arquitetura moderna desde as especulações do período entre guerras europeu através dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, os CIAMs.

Criado em 1964, com atuação mais efetiva a partir de 1967 e extinta em 1986, o BNH teve na década de 70 o período de atividade mais intensa. Os anos 70 correspondem no Brasil ao predomínio na Escola Paulista, com a variante do Brutalismo como tendência ainda moderna, e forte influência da concretização da cidade moderna em Brasília. O caráter protagonista do movimento moderno não admitia diversidade de estilos. Seus preceitos que tinham caráter de dogmas, entre eles a idealização do homem-tipo, desconsideravam as diferenças culturais. Desta forma, todas as pessoas teriam as mesmas necessidades, ou deveriam se adaptar a esse “maravilhoso mundo” que a nova arquitetura anunciava. Era a promessa de uma vida melhor, num ambiente mais organizado, em que cada função teria seu espaço segregado conforme propagava a ideologia da cidade moderna. Nesta idéia de ordenamento, a falta de diversidade não seria um incômodo, pois todos seriam iguais. A ausência de precedentes também marcou esta arquitetura, onde o princípio da tábula rasa sustentou o paradigma da criação a partir do nada. A desconsideração com as diferenças e os precedentes culturais levou à construção do ideal do homem-tipo da arquitetura moderna. Numa atitude determinista, a padronização da humanidade corresponderia uma unidade-habitacional-tipo repetida à exaustão.

O movimento moderno atribuiu à arquitetura o papel de agente de transformação social, trazendo uma mensagem promissora. A adaptação dos usuários à nova arquitetura seria um processo espontâneo uma vez que, aos olhos modernistas, oferecia a melhor forma de morar. Tal convicção trazia a certeza de que habitantes de favelas e barracos ao rés-do-chão se transformariam em moradores de conjuntos habitacionais em altura de forma natural. Era o poder da nova arquitetura não só em ordenar a cidade como determinar o comportamento das pessoas. Todos estes paradigmas arquitetônicos fizeram parte da construção da uma base conceitual subjacente ao chamado padrão BNH.

A partir destas considerações não parece infundado levantar a hipótese de que conceitos, idealizações ou estabelecimento de padrões e modelos, presentes na doutrina moderna, possam ter influenciado fortemente a monotonia gerada pela repetição de elementos, presente nos conjuntos habitacionais financiados pelo BNH.

A verdade é que os bons presságios não se confirmaram. Banalizado, distorcido, aplicado de forma redutiva ou adaptada, a presença do ideal da cidade moderna é perceptível nos conjuntos BNH. Sendo assim, pode-se considerar que a falta de qualidade arquitetônica no período BNH não se deve somente a restrições financeiras ou normativas do Banco. Uma forte influência de paradigmas arquitetônicos e urbanísticos, transmitida pela participação de arquitetos comprometidos com os princípios da arquitetura moderna, bem interpretados ou não, teve importante papel na definição do padrão BNH.

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Figura 4 – Conjunto Habitacional Ponta da Praia, Santos, São Paulo, Arq. Oswaldo Corrêa Gonçalves, Paulo Buccolo Ballario e José Wagner Leite Ferreira, 1967. Revista Acrópole, n. 350, 1968.

Nos conjuntos promovidos pelo BNH, questões econômicas descartaram os pilotis de Le Corbusier. A simples ocupação do térreo não se deteve na busca de uma solução para a falta de privacidade dos apartamentos junto ao solo. A relação entre o público e o privado desconsiderou a possibilidade de espaços abertos privatizados ou situações intermediárias como semiprivado ou semipúblico. Redent e blocos serpenteados ou curvos deixaram de ser modelos. Quarteirões periféricos foram descartados. Sem preocupação com a configuração urbana, barras paralelas isoladas ou unidas por circulações verticais e seccionadas em edifícios com forma de “H” tornaram-se modelos consagrados. A difusão destes modelos teve como consequência conjuntos de edifícios iguais, onde a falta de diversidade confunde a identificação e aborrece pela falta da excepcionalidade. Com estas características, os conjuntos habitacionais receberam a adjetivação de padrão BNH, repetido à exaustão.

No momento em que a arquitetura moderna no Brasil já tinha assistido ao ocaso da Escola Carioca, e o despontar da arquitetura paulista com a rusticidade do concreto aparente e a exploração de grandes vãos e balanços, os anos 60 trouxeram ainda a materialização da cidade moderna em território nacional através de Brasília. A exploração das potencialidades plásticas do concreto armado e o fascínio por uma nova ordem urbana, que isolava os edifícios e segregava funções, predominaram no panorama urbano do Brasil nesta década.

Os conjuntos habitacionais financiados pelo BNH podem ser comparáveis as superquadras modernistas materializadas em Brasília, com base na semelhança do porte, na divisão programática entre habitação, seus complementos, e no emprego de edificações isoladas, dissociadas da rua e dispostas sobre espaços contínuos, coletivos e indiferenciados. O questionamento sobre a validade do endosso da superquadra modernista como esquema normativo para os projetos de habitação econômica no Brasil daquele período é justificável. Se em Brasília um orçamento generoso permitiu que as superquadras fossem constituídas de barras edificadas de seis pavimentos sobre pilotis, com elevador, estacionamento em subsolo e cercadas de exuberantes jardins, restrições financeiras deixaram de lado estes recursos nos conjuntos habitacionais promovidos pelo BNH4.

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Figura 5 – Superquadra. Fonte: desenho apresentado por Lúcio Costa no Concurso Nacional para o Plano Piloto de Brasília em 1956.

Creditáveis às limitações de orçamento, as supressões não tiveram soluções compensatórias favoráveis. A eliminação dos pilotis, por exemplo, resultou em apartamentos sem privacidade que, numa adaptação, poderiam ter os espaços abertos adjacentes privatizados, não significasse isto uma contradição às prescrições normativas modernas. Por outro lado, enquanto as superquadras de Brasília mantêm uma relação com o traçado urbano, onde quatro delas formam uma unidade de vizinhança conectada ao sistema viário, o conjunto habitacional BNH é, na maioria dos casos, precariamente vinculado à trama de vias do entorno.

Alguns aspectos corriqueiros e insatisfatórios nos conjuntos de habitação coletiva promovidos pelo BNH podem ser citados: dificuldade de apropriação e uso coletivo dos espaços abertos, percebidos como áreas residuais sem identificação com os moradores; ausência de privacidade dos apartamentos térreos; e dificuldade de orientação pela repetitividade de blocos iguais. Fatores que caracterizam a maioria das obras financiadas pelo Banco.

A Cidade Funcional foi o tema proposto para o IV CIAM em 1933, realizado a bordo do Patris II, entre Atenas e Marselha. O relatório do encontro foi redigido por três membros da delegação suíça, M. Moser, R. Steiger e S. Giedion, num tom ponderado, deixando de lado as questões mais polêmicas. Com autoria não claramente reconhecida de Le Corbusier, um texto mais contundente que define as diretrizes da cidade moderna, La charte d´Athenes5 é publicado em 1943, incorporando ideias propostas no Congresso e ausentes na redação do relatório final.

Segregada funcionalmente pelo zoneamento6, a cidade moderna delineada pela Carta de Atenas previa edificações em altura isoladas entre si sobre uma área pública, contínua e indiferenciada. As circulações se distinguiriam por tipo e capacidade de tráfego: veículos e pedestres não se cruzariam. As edificações deveriam ser implantadas independentemente da trama viária. Em nome da insolação, o alinhamento das edificações junto às circulações era indesejado7.

Desta forma, os bairros multifuncionais seriam substituídos por zonas de uso exclusivo; em lugar de ruas, reunindo pedestres e automóveis, surgiria um sistema segregado entre estes dois tipos de circulação; grandes áreas indivisas e contínuas substituiriam os quarteirões parcelados, onde o solo coletivizado seria o protagonista. A Carta propunha ainda o abandono dos espaços intermediários entre os domínios público e privado. Seria a apoteose das grandes áreas coletivas e contínuas, contrapostas às áreas privativas das edificações.

Com a concretização de Brasília, as premissas normativas da cidade funcional encontraram condições favoráveis de aplicação nos projetos arquitetônicos dos conjuntos habitacionais brasileiros do período BNH. Tornaram-se paradigmas, onde grandes áreas sem parcelamento, centralização de projeto e capital eram previstas.

A mecânica do sistema de concretização da cidade moderna, partindo da reprodução de tipos de células habitacionais para formar o edifício, e da repetição deste, elevado à categoria de modelo, num conjunto maior, foi operativa no pós-guerra europeu. Da mesma forma, esta sistemática foi vista como uma solução eficiente para atender a demanda habitacional, quando no Brasil um montante de recursos financeiros sem precedentes foi disponibilizado pelo Banco Nacional de Habitação.

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Figura 6 – Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado, Guarulhos, São Paulo

Planta e corte dos edifícios. Fonte: Revista Acrópole, n. 372, 1970.

Barras paralelas, ligadas por circulações verticais múltiplas, formadas pela justaposição de edifícios em “H”, podem ser soluções aceitáveis, dependendo do afastamento entre edificações e do térreo em pilotis, como no Conjunto Zezinho Magalhães Prado, o CECAP-Cumbica em Guarulhos. Especialmente neste caso, a distância entre as barras contribui para a privacidade, melhor insolação e ventilação. Permanece nesta obra, no entanto, o problema da identificação das unidades, fruto da repetição seriada do edifício-modelo. O projeto apresentou como paliativo o uso de diferentes cores, um sistema de numeração nas empenas cegas das barras, e indicação com letras nos acessos às circulações verticais.

FERRAZ, 1997,
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Figura 7 – Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado, Guarulhos, São Paulo. Fonte: FERRAZ, 1997.

A doutrina da Carta de Atenas previa o uso coletivo do solo vinculado à adoção de pilotis no pavimento térreo, como uma interface entre o espaço público e privado. O projeto de Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Fábio Penteado para o CECAP de Guarulhos foi um modelo seguido que, quando passou a ocupar o térreo, repetindo o pavimento tipo sem uma efetiva adaptação, se tornou questionável. Neste caso, as barreiras geradas pela ocupação neste nível romperam a continuidade espacial e compartimentaram o espaço aberto. Situação agravada, em alguns casos, pela redução do espaço entre as barras, ou ainda pela adição de mais um pavimento tipo. Por outro lado, esta ocupação dificultou ainda mais a localização do ingresso às edificações, onde este percurso passou a ocorrer entre as barras, através das duas fachadas extremas em empenas cegas, que não demonstram o acolhimento necessário à aproximação do pedestre.

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Figura 8 – Conjunto Habitacional Ponta da Praia, Santos, São Paulo. Fonte: Revista Acrópole, n. 350, 1968.

Enquanto a premissa do uso de pilotis no térreo permite o solo coletivo e indiferenciado, a ocupação deste pavimento é incompatível com a condição de coletividade no espaço aberto circundante e do requisito da privacidade. No caso dos conjuntos financiados pelo BNH, o paradigma arquitetônico do solo coletivo preponderou em projetos onde a restrição orçamentária determinou a ocupação do térreo com apartamentos, desconsiderando a necessidade de privatização das áreas abertas adjacentes às unidades junto ao solo.

Os conjuntos habitacionais do período BNH apresentam problemas que podem estar ligados à obediência irrestrita ou entendimento equivocado de paradigmas que teriam impedido aos arquitetos, mediante uma nova demanda, procurar soluções alternativas às prescrições normativas da Carta de Atenas. A relação investigativa entre arquitetura e habitação social, própria do movimento moderno, onde este tema era um dos principais objetos de projeto e que, de certa forma, perdurou no período pré-BNH, foi aos poucos se desfazendo durante a atuação do Banco. Desta forma, os projetos sofreram adaptações pela imposição de redução orçamentária, banalizando e abastardando soluções modernas e consagradas, que talvez demandassem transformações paradigmáticas não efetivadas.

  1. O BNH foi concebido como um órgão central normativo e orientador do Sistema Financeiro da Habitação, e suporte material do Plano Nacional da Habitação. De acordo com sua concepção, era complementado pelos seguintes órgãos: os Agentes Financeiros, entidades públicas ou privadas de captação e aplicação de poupança como as Caixas Econômicas, Associações de Poupança e Empréstimo e as Sociedades de Crédito Imobiliário; os Agentes Promotores, entidades públicas ou privadas que associavam a execução de programas setoriais de construção de habitações às atividades financeiras referentes à sua comercialização como as Companhias de Habitação – COHABs, e cooperativas habitacionais; os Agentes para Atividades Complementares, com a incumbência de desenvolver atividades de natureza técnica como os Institutos de Orientação às Cooperativas Habitacionais – INOCOOPs; e os Agentes Especiais, como o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo – SERFHAU, o Banco do Brasil e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDE. 

  2. Banco público orientado para o desenvolvimento econômico e social do país, a Caixa Econômica Federal é uma instituição financeira atuando como agente de políticas públicas e responsável pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). 

  3. O "milagre econômico brasileiro" foi a denominação dada à época de excepcional crescimento econômico ocorrido durante o Regime Militar no Brasil. 

  4. COMAS, Carlos Eduardo Dias. “O espaço da arbitrariedade”. Revista do Servidor Público, Brasília: FUNCEP, jan. / mar. 1983. 

  5. La charte d´Athenes. Tradução consultada: La Carta de Atenas. Buenos Aires: Editorial Contémpora, 1950. 

  6. “El zoneamiento es la operación que se hace sobre un plano de ciudad con el fin de dar a cada función y a cada individuo su justo lugar.”

    La Carta de Atenas, 1950, ítem 15, p. 56. 

  7. “Las construcciones elevadas a lo largo de las vías de comunicación y alrededor de las encrucijadas son prejudiciales a la habitación: ruidos, polvo, gases nocivos.

    Si se está dispuesto a tener en cuenta esta interdicción, se atribuirán de aquí en adelante zonas independientes a la habitación y a la circulación. La casa, desde entonces, no estará ya soldada a la calle por su vereda.

    La habitación se levantará en un medio propio, en el que gozará del sol, aire puro y del silencio.

    La circulación se desdoblará en vías de tráfico lento para uso de peatones y vías de tráfico rápido para uso de coches. Estas vías llenarán su función sin acercarse sino ocasionalmente a la habitación.”

    “El tradicional alineamiento de las habitaciones al borde de la calle no asegura el asoleamiento sino a una parte mínima de las viviendas.”

    “... que se prohíba el alineamiento de las habitaciones a lo largo de las vías de comunicación.”

    “... que, implantadas a gran distancia la una de la otra, dejen el suelo libre a favor de amplias superficies verdes.”

    La Carta de Atenas, 1950, item 16, p. 57; item 17, p. 58; item 27, p. 68; e item 29, p. 70.

    Referências bibliográficas {#referências-bibliográficas .list-paragraph}

    Banco Nacional da Habitação. BNH: projetos sociais.  Rio de Janeiro: Portinho Cavalcanti, 1979.

    Banco Nacional da Habitação. Documenta, Rio de Janeiro.

    COMAS, Carlos Eduardo Dias. “O espaço da arbitrariedade”. Revista do Servidor Público, Brasília: FUNCEP, jan. / mar. 1983.

    FERRAZ, Marcelo Carvalho. Vilanova Artigas. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1997.

    HITCHCOCK, Henry-Russel. Latin American Architecture since 1945. New York: The Museum of Modern Art, 1955.

    La carta de Atenas. Buenos Aires: Editorial Contémpora, 1950.

    Revista Acrópole, São Paulo, n. 350, 1968.

    Revista Acrópole, São Paulo, n. 372, 1970.