Resumo

A análise da nomenclatura dos espaços públicos pode ser encarada como um procedimento metodológico capaz de permitir, entre outros, desvendar o fortalecimento paulatino da urbe e do território para um determinado período histórico. Usando como referência o caso potiguar, ou a cidade do Rio Grande do Norte, propomos, através deste artigo, desenvolver essa análise metodológica da cidade existente no século XIX a partir dos seguintes procedimentos: 1) a seleção de vilas e cidades do Rio Grande do Norte, e dos nomes dos espaços públicos nelas existentes, conforme a disponibilidade de documentação; 2) uma classificação desses mesmos nomes por grupos de significados; 3) o levantamento da frequência com que esses nomes ocorrem em cada grupo. A análise, que perpassa três períodos: 1830-1850; 1851-1880; 1881-1900, permitiu compreender a cidade potiguar no século XIX quanto a sua consolidação/crescimento ao longo do período estabelecido, bem como dos valores, símbolos e significados inerentes àquela sociedade, revelada nos nomes dos espaços públicos. Este artigo destaca particularmente um método estatístico, quantitativo e qualitativo para a análise da cidade a partir dos nomes dos seus espaços públicos, capaz de ser reproduzido em estudos semelhantes.

Palavras-chaves: nomenclatura, método, espaço público, Rio Grande do Norte, século XIX

Abstract

The analysis of public spaces names can be viewed as a methodological procedure capable of allowing the disclosure of the city and territory’s progressive consolidation within a particular time period, among other aspects of interest. Based on the case of the potiguar city, that is, those located in the present State of Rio Grande do Norte, we propose, through this article, to develop this methodological analysis of the potiguar city existing in the 19^th^ century, according to the following procedures: 1) the selection of vilas (villages or towns holding a local municipal government) and cidades (cities) in the State of Rio Grande do Norte and the names of their respective public spaces, collected from available information; 2) a classification of these same names through groups of meanings; 3) the identification of the frequency in which such names occur in each group. The analysis, comprising three chronological periods, 1830-1850; 1851-1880; 1881-1900, allowed the understanding of the consolidation/growth of the potiguar city in the established period, as well as the values, symbols and meanings inherent to that society, as revealed by the names of public spaces. This article particularly highlights a statistic, quantitative and qualitative method for the analysis of the city through the names of its public spaces, which can be reproduced in similar studies.

Key-words: nomenclature, public space, Rio Grande do Norte, 19^th^ century

OS NOMES DOS ESPAÇOS PÚBICOS COMO MÉTODO PARA A ANÁLISE URBANA: UM ESTUDO DE CASO

Introdução

A cidade potiguar (ou do Rio Grande do Norte), extremamente precária em boa parte de sua história, passa, contudo, por um processo de consolidação urbana ao longo do século XIX que se revela desde pelo aumento do número de localidades e de sua população, à elevação do status político-administrativo de muitas delas, que assumem o título de vila ou de cidade - portanto, sedes de um município – passando ainda pelo incremento do comércio, uma atividade tipicamente urbana. Esses aspectos são campos férteis para o estudo do referido processo, no qual está implícito, evidentemente, o processo de formação e organização territorial da província naquele período histórico.

Contudo, é possível detectar como as localidades se consolidam ao longo do tempo por um modo pouco usual ou mesmo inovador de análise: através do estudo da nomenclatura dos espaços públicos. Com efeito, uma investigação sobre os nomes atribuídos aos espaços públicos – ruas, praças, travessas e outros – é capaz de revelar o fortalecimento paulatino da urbe, como no caso aqui abordado, a cidade potiguar ao longo do século XIX, pois ao identificar que houve um crescimento numérico, quantitativo, desses espaços ao longo do tempo, tal investigação pode detectar o crescimento físico da cidade. O estudo dos nomes permite também desvendar os significados, símbolos, valores e expressões de poder que eles revelavam, ou seja, serve também como uma análise qualitativa, igualmente útil para compreender esse processo de consolidação. Assim, cabe também verificar ou pelo menos interpretar a motivação por trás dos nomes utilizados: revelavam algum episódio ou evento ocorrido no local? Expressavam alguma característica físico-espacial do lugar? Homenageavam alguma figura política, econômica ou religiosa importante, local, nacional ou até internacional? Manifestavam alguma atividade corriqueira no lugar designado? Intencionavam conferir à localidade como um todo, e não somente ao espaço público específico, algum status especial, como o de sua importância ou modernidade? A análise qualitativa dos nomes pode revelar, por exemplo, que em alguns casos estudados esses nomes expressavam mais um desejo ou uma supervalorização desse processo de consolidação, que nem sempre era tão intenso quanto os nomes poderiam fazer supor.

Do exposto, conclui-se que é possível desvendar o processo de consolidação urbana e territorial pelo viés da análise dos nomes dos espaços públicos da cidade a partir de dois eixos: 1) uma análise quantitativa, de natureza estatística, dos referidos nomes considerando um grande número de localidades, em que seja possível identificar, por exemplo, o crescimento físico-espacial das localidades estudadas; 2) uma análise qualitativa, referente aos valores e símbolos caros à população urbana, que pode se verificar segundo duas vertentes, uma popular, em que os nomes são criações da população em geral, outra oficial, atrelada à elite local, que era mais diretamente responsável pela designação formal dos espaços públicos.

O artigo original, inédito1, do qual extraímos a presente reflexão, tem como objetivo precisamente analisar o processo de consolidação da cidade potiguar através desses dois eixos. Assim, além da apresentação dos aspectos metodológicos da análise, o referido artigo apresenta três outros itens. Dois deles analisam a consolidação da cidade potiguar quantitativamente por meio, respectivamente, de algumas estatísticas gerais e algumas estatísticas específicas referentes à nomenclatura dos espaços públicos. O terceiro e último item, que antecede as considerações finais, aborda os nomes e seus significados, pautando-se numa análise tanto quantitativa quanto qualitativa desses nomes. Entretanto, por uma questão de limitação do número de palavras impostas para apresentação no XIII SHCU, fomos obrigados a nos limitar, infelizmente, a apenas o aspecto metodológico da análise, seguida da apresentação das estatísticas gerais sobre a consolidação da cidade potiguar no território e dos resultados gerais do estudo. Estes três itens compõem o presente artigo. Pretendemos publicar integralmente o artigo original em outra ocasião. A importância da exposição do método proposto reside no fato de que ele pode, a nosso ver, ser replicado para outras realidades urbanas.

Aspectos metodológicos da análise

A nossa análise se iniciou com a etapa de coleta e fichamento de fontes documentais as mais diversas, desde documentos primários como relatórios, discursos, atas de câmara, mas também livros e outras a publicações pertinentes. Assim, foram reunidos 422 nomes de espaços públicos em 37 localidades urbanas, independentemente de seu status político-administrativo (povoação, vila, cidade) existentes no Rio Grande do Norte ao longo do século XIX.

Em seguida, os dados coletados foram organizados por meio de uma planilha no programa Excel, contendo, nas colunas, os seguintes dados: 1) nome da localidade; 2) status político-administrativo da localidade; 3) nome do espaço público urbano; 4), 5), 6) respectivamente a localização urbana, periurbana ou rural do lugar denominado; 7) observações, isto é, qualquer outra informação pertinente sobre o local denominado; 8) classificação dos nomes dos espaços públicos, segundo grupos de significados previamente estabelecidos. Cada grupo recebeu um número; 9) ano da mais antiga citação documental encontrada sobre o nome de cada espaço; 10) periodizações nas quais se situam os anos da coluna “9” (1830-1850; 1851-1880; 1881-1900). Duas colunas suplementares, “11” e “l2”, reúnem códigos criados no intuito de identificar as fontes onde foram encontrados os nomes dos espaços públicos (livro, documento manuscrito ou outra fonte, na coluna “11” e a(s) página(s), na coluna “12”. Elas são exclusivamente para efeito de controle dos autores, e não têm qualquer interferência na análise em si. Quanto às linhas da planilha, elas correspondem ao registro dos nomes dos espaços públicos encontrados, que são listados por localidade. Essas linhas são chamadas, neste artigo, de “entradas”. A Tabela 1 abaixo mostra, a título de ilustração, parte dessa planilha que, com 10 páginas, não poderia ser reproduzida na íntegra aqui. Na Tabela 1 não aparecem as colunas “5”, “6”, “11” e “12”, porque não interessam à análise propriamente dita:

Confeccionada a planilha, procedemos à análise propriamente dita dos dados coletados e à redação final do artigo. A planilha permitiu um grande número de combinações, principalmente de ordem estatística, sempre relacionadas aos nomes utilizados para os espaços públicos da cidade potiguar no período estabelecido.

Tabela 1 – Organização dos dados em planilha do Programa Excel.

Fonte: elaboração própria

1. Nome da localidade 2. Status Político-adm. 3. Nome do esp. público (oficial e/ou popular) 4. Localização urbana 7. Obs. 8. Classificação dos espaços públicos 9. Ano da citação mais antiga 10. Período ————————— —————————– —————————————————- ————————— ————- ——————————————- ———————————– —————– Acari Vila R. do Comércio X   2 1893 1881-1900 Acari Vila R. Carnaúba X   7 1893 1881-1900 Acari Vila R. do Rio X   7 1893 1881-1900 Acari Vila R. do Rosário X   3 1849 1830-1850 Acari Povoação R. dos Alpendres X   5 S. XVIII Antes de 1830 Angicos Vila R. Angicos X   8 1893 1881-1900 Apodi Cidade R. da Cadeia X   6 1893 1881-1900 Apodi Cidade R. Larga X   7 1893 1851-1880

É preciso destacar, ainda, alguns pressupostos teórico-metodológicos, bem como, atentar para alguns riscos na coleta e manipulação dos dados. Assim, destacamos os seguintes itens:

  1. O estudo aqui proposto se refere à “cidade potiguar” em termos

    genéricos. Em outras palavras, os dados são agrupados e investigados de modo a conferir uma compreensão da “cidade potiguar como um todo”, e não de localidades específicas, ainda que referências a estas últimas sejam feitas ao longo da análise.

  2. É importante sublinhar que o levantamento realizado, feito nas mais

    diversas fontes primárias e secundárias, confere uma visão bem superior a de uma simples amostra, em razão: a) da quantidade de nomes coletados. São 422 entradas, só de nomes de espaços públicos situados no meio urbano, que é o que nos interessa de fato2; b) da precariedade urbana da grande maioria das localidades estudadas, que se resumiam à praça central e alguns pouquíssimos logradouros públicos ao longo de todo o século XIX. Boa parte delas não atingia o número de 10 a 12 ruas em 1900, segundo dados coletados. Isso significa dizer que o total de 422 entradas representa um número expressivo de nomes; c) da quantidade de localidades levantadas para o estudo. São 37, que existiam ou passaram a existir no século XIX. Ora, o Rio Grande do Norte começou com 8 municípios em 1800 e terminou com 37 em 1900, coincidentemente o mesmo número de localidades estudadas3.Ou seja, trata-se de um levantamento de nomes expressivo não somente em termos quantitativos, mas também geográficos, pois abarca todo o território do Rio Grande do Norte. Portanto, as considerações “a”, “b” e “c”, nos permitem concluir que os dados coletados e analisados conferem efetivamente uma visão muito ampla dos nomes atribuídos aos espaços públicos da cidade potiguar e, por conseguinte, como pretendemos demonstrar, da própria cidade no século XIX;

  3. O recorte cronológico proposto é o século XIX, período de

    consolidação da cidade potiguar. Ainda que haja referências a datas anteriores, o marco cronológico inicial preciso é 1830 porque são raras as referências aos nomes dos espaços públicos antes desse ano, e terminam em 1900 porque aumentariam sobremaneira o número já significativo de nomes coletados, caso incluísse décadas posteriores.

  4. Usamos o termo “localidade” para nos referirmos aos núcleos urbanos

    no século XIX, uma vez que esses núcleos tinham status político-administrativos que variavam de povoação, a vila e a cidade, e que ao longo do século, boa parte deles mudou de status, às vezes passando de povoação à vila e mesmo à cidade, ou, em alguns casos, caindo do status de vila para povoação. Na planilha do Excel, pode ocorrer que uma mesma localidade apareça como vila e como povoação, por exemplo. Isso decorre do fato de que dois ou mais nomes de espaços públicos urbanos correspondentes foram encontrados em anos diferentes, nos quais a mesma localidade tinha igualmente foros distintos4;

  5. A coluna 9 da planilha do Excel reúne o ano mais antigo encontrado

    nas fontes para cada entrada de nome do espaço público coletado, ou seja, para cada linha da planilha. Disso decorre que o referido nome pode ser mais antigo do que o seu ano correspondente5. Para algumas entradas, sabemos que se trata provavelmente de datas anteriores, em alguns casos até mesmo de antes de 1800. Por exemplo, a “praça da Matriz”, que corresponde ao núcleo urbano inicial das localidades, pode muito provavelmente ser anterior a 1800 no caso de localidades que existiam no século XVIII ou antes. Nos casos em que tínhamos absoluta certeza, fizemos referência a períodos anteriores, uma vez que isso não altera em nada os objetivos da análise. Contudo, mantivemos o ano de acordo com a fonte encontrada nos demais casos. Na coluna “10”, os anos de cada entrada foram agrupados por períodos cronológicos, no intuito de facilitar a análise (1830-1850; 1851-1880; 1881-1900). São esses períodos, e não os anos em si, que nos interessam em particular.

  6. Não foi possível precisar o ano de alguns nomes de espaços públicos

    encontrados. Mesmo assim, resolvemos mantê-los na lista, pois acreditamos fortemente que os nomes mantidos surgiram efetivamente no século XIX ou mesmo antes. O inverso também aconteceu, isto é, tínhamos o ano, mas o nome do espaço público correspondente estava ilegível nas fontes. Estes casos foram excluídos, pois a análise se fundamenta, sobretudo, nos nomes;

  7. Um mesmo local, praça ou logradouro pode ter recebido nomes

    distintos ao longo do século. Por isso, sempre que possível, tentamos identificar a mudança de nome de um mesmo espaço público, como aparece na coluna “7”, “observações”, da planilha6. Todavia, as evidências de que dispomos nos fazem crer que essas mudanças não foram frequentes o suficiente para alterar significativamente os resultados da análise, mesmo considerando que, por desconhecimento, algum espaço público reapareça eventualmente com outro nome na planilha.

  8. Finalmente, a proposta do artigo é compreender o

    crescimento/consolidação da cidade a partir dos nomes dos espaços públicos. Outros dados de que também dispomos, como, por exemplo, populacionais e econômicos para muitas dessas localidades, poderiam facilmente vir em apoio a essa análise. Entretanto, por falta de espaço no presente artigo e porque também nos propusemos desenvolver o estudo tão-somente pelo viés da nomenclatura dos espaços públicos, essas outras fontes de apoio somente serão citadas em caso de extrema necessidade.

Como dissemos, no trabalho original fizemos uma análise mais detalhada, de caráter estatístico, sobre os nomes dos espaços públicos encontrados para as diversas localidades do Rio Grande do Norte no século XIX. Também desenvolvemos uma interessante análise estatística sobre os significados desses nomes, que foram classificados em grupos a partir dos quais pudemos fazer diversas constatações importantes para o entendimento do processo de consolidação da cidade potiguar no território através dos valores atribuídos aos seus espaços públicos. Na impossibilidade de reproduzir esses dois itens aqui, nos limitamos a expor aqui as estatísticas gerais que comprovam o crescimento da cidade potiguar. Nas considerações finais, todavia, permanecem os resultados gerais do estudo.

A consolidação da cidade potiguar: Algumas estatísticas gerais

Neste item, pretendemos apresentar e analisar alguns dados gerais sobre a cidade potiguar, a partir dos dados coletados e analisados na planilha do Excel. Iniciamos com a data de surgimento dos nomes dos espaços públicos por período. Assim, percebemos que:

  1. Das 422 entradas de nomes de espaços públicos, 25 delas, ou 5,92% do

    total, existiam no período de 1830 a 1850. A esse valor, deve ser acrescido mais 12 entradas correspondentes a nomes anteriores a 1830, ou 2,84 %. Isto significa que 37 entradas, ou 8,76 % de todos os nomes coletados existiam até 1850.

  2. Das 422 entradas de nomes de espaços públicos, 112 delas, ou 26,54 %

    do total, existiam no período de 1851 a 1880.

  3. Das 422 entradas de nomes de espaços públicos, 251 delas, ou 59,47 %

    do total, existiam no período de 1881 a 1900.

  4. Das 422 entradas de nomes de espaços públicos, 22 delas, ou 5,21 %

    do total, são de data ignorada, sendo provavelmente do século XIX ou mesmo anterior a ele.

Desses dados preliminares, e mesmo com a ressalva de que alguns nomes sejam mais antigos do que aparecem na fonte, podemos afirmar que houve o crescimento da cidade potiguar ao longo do século XIX, notadamente a partir de 1850. 86,01 % de todos os espaços públicos coletados tiveram seus nomes registrados entre 1851 e 1900. Esse dado corrobora outras fontes e estudos sobre esse mesmo crescimento urbano da cidade potiguar no referido período. Os 5,21 % de nomes cujo ano é ignorado, uma vez conhecidos, certamente não alteraria significativamente esse dado básico.

Se fizermos, agora, a mesma análise por categoria de localidade, veremos que:

  1. Das 37 entradas de nomes de espaços públicos existentes até 1850, 5

    foram encontradas em povoações, 7 em vilas e 25 em cidades, correspondendo respectivamente a 1,18 %, 1,66 % e 5,92 % do total de 422 entradas;

  2. Das 112 entradas de nomes de espaços públicos existentes entre 1851

    e 1880, 4 foram encontradas em povoações, 18 em vilas e 90 em cidades, correspondendo respectivamente a 0,95 %, 4,26 % e 21,33 % do total de 422 entradas;

  3. Das 251 entradas de nomes de espaços públicos existentes entre 1881

    e 1900, 23 foram encontradas em povoações, 82 em vilas e 146 em cidades, correspondendo respectivamente a 5,43 %, 20,14 % e 34,59 % do total de 422 entradas;

  4. Para 22 das 422 entradas, ou 5,21 % do total, não foi possível saber

    o ano de registro do nome dos espaços públicos correspondentes. Desse total, foi possível, contudo, conjecturar por outras evidências que 9 entradas correspondiam a um momento em que a localidade respectiva era cidade (2,13 % do total de 422) e 13, ou 3,08 %, corresponde a localidades cujo status é desconhecido7.

A análise dos dados a partir do status político-administrativos reforça as conclusões anteriores, sobre o crescimento/consolidação da cidade potiguar ao longo do século XIX. Esse segundo cruzamento de dados da planilha permitiu constatar que o número de entradas referentes às povoações cresce de 1,18 % para 5,43 % do total entre 1830 e 1900, mesmo que tenha tido uma pequena diminuição entre 1851 e 1880 quando este período é comparado ao anterior; o mesmo pode ser afirmado para as entradas referentes à cidade, que de 5,92 % atingem o valor expressivo de 34,59 %, percentual ao qual ainda deve ser acrescido 2,13 %, perfazendo 36,72 % do total. Cabe destacar que a quantidade nomes referente à cidade é sempre superior, mesmo considerando que elas são em menor quantidade do que as demais categorias de localidades, em todos os intervalos cronológicos analisados. A quantidade maior de nomes de espaços públicos nas cidades indica, com toda probabilidade, que elas eram efetivamente maiores fisicamente do que as demais categorias de localidade. O número de entradas referentes às vilas também cresceu de 1,66 % para 20,14 %.

O crescimento percentual elevado de entradas de nomes correspondentes à cidade coincide com o forte crescimento numérico delas no mesmo período. Em 1800, só havia Natal com esse título; em 1900, eram 13 cidades, ou seja, um aumento de 1 300 %8. Podemos concluir que o crescimento numérico de nomes dos espaços públicos coletados ao longo do século, bem como, a relação que esses nomes mantêm com o status político-administrativo das localidades correspondentes, que cresce tanto para as povoações, mas principalmente para as vilas e mais ainda para as cidades, são fortes evidências do processo de consolidação da cidade potiguar entre 1800 e 1900. A aceleração desse processo ocorre especialmente a partir de 1850. Essa conclusão poderia facilmente ser reforçada com base em outros dados, como, por exemplo, o crescimento populacional das localidades, mas acreditamos ser dispensável diante dos dados aqui analisados.

Considerações finais

A análise dos dados coletados, organizados e classificados permitiu algumas conclusões fundamentais sobre o processo de consolidação da cidade potiguar no século XIX: 1) revelou o processo, principalmente físico, de consolidação/crescimento para a cidade potiguar, ao longo do período estabelecido; 2) demonstrou um ritmo diferenciado de consolidação urbana, com localidades que tiveram crescimento maior ou menor quando comparadas entre si; 3) permitiu apreender os valores e desejos que animavam a sociedade urbana da época para com a localidade na qual moravam. A análise aqui proposta do processo de consolidação da cidade potiguar por meio da nomenclatura dos seus espaços públicos apenas reforçou alguns estudos prévios sobre esse mesmo processo, tanto em relação ao seu crescimento físico ao longo do século XIX quanto pelo viés dos símbolos e valores assumidos pela população urbana nela residente.

Além dessas conclusões fundamentais, cabem outras delas decorrentes. Em primeiro lugar, a de que o ato de nomear é, por si só, uma manifestação de poder, tanto de quem atribui o nome como quem ou o quê é nomeado. Mais fácil de ser percebido, por exemplo, em atos de nomeação de um simples cargo para uma pessoa física, o ato de nomear também expressa poder no caso aqui estudado. Podemos percebê-lo em praticamente todos os grupos de significados, até mesmo nos de natureza popular. Se isso é fácil de ser compreendido quando os nomes fazem referência a fatos históricos ou comemorativos, a personalidades públicas, políticas, econômicas ou religiosas, ele também o é nos nomes populares, pois representam uma forma de apropriação dos espaços respectivos pelas camadas populares da população urbana. O espaço em si também adquire poder ao ser nomeado: uma “Praça da Matriz” ou do “Mercado” são, por si só, expressão do status e da importância que esses locais tinham no contexto físico-espacial da urbe. Eram o seu centro não somente topológico, muitas vezes, mais principalmente, o centro do poder local, em torno do qual se reuniam os edifícios mais representativos e importante da urbe nascente, assim como as residências da elite local.

Outro ponto a destacar é que, embora as duas vertentes, a popular e a oficial, dos nomes dos espaços públicos citadas no início deste artigo estejam presentes nos 8 grupos de significados elencados, podemos afirmar, como tendência, que há predominância dos nomes oficiais nos grupos 1 (referências históricas) , 4 (nomes de personalidades) e, em menor medida, no grupo 6 (mobiliário ou equipamentos urbanos). Os grupos 2 (atividade comercial) e especialmente o 5 (episódio local ou nome popular) e o 7 (elementos topográficos e ambientais) têm forte tendência popular. O grupo 3 (referências religiosas), por sua vez, tanto tem uma dimensão popular quanto oficial, sem uma predominância evidente de qualquer uma delas. O mesmo pode ser dito do grupo 8 (outros). A valorização histórica ou o destaque aos nomes de personalidades (grupos 1 e 4) expressam, entre outras coisas, o desejo de modernidade das elites que nomearam esses espaços. As referências à Independência, à Proclamação da República, a políticos importantes deste último período, com destaque para Pedro Velho, que aparece 5 vezes, são sintomas disso. De fato, se inserem no desejo de modernização da cidade que caracteriza toda a República Velha no Brasil (1889-1930). Verificamos, pelas fontes levantadas, a preocupação das elites com a numeração das casas e com a nomeação dos logradouros públicos em várias localidades, como em Mossoró em 1871, Natal em 1887 e São José de Mipibu em 1890 (ESCÓSSIA, 1983, p. 35; SOARES FILHO 1985, p. 66;, ARAUJO, 1926-1927, p. 102). Não por acaso, são preocupações da Câmara Municipal que aparecem à medida que termina o século XIX. Como vimos, esses nomes oficiais tendem a substituir os nomes populares, mesmo no caso de espaços públicos preexistentes que já eram denominados de maneira popular. Em alguns casos, os nomes populares permanecem e convivem com esses nomes oficiais. Ainda que seja difícil distinguir quanto dos nomes levantados são realmente oficiais e quantos são populares a partir dos somatórios totais da quantidade de nomes por categoria, uma vez que as duas vertentes perpassam todos os grupos, estamos inclinados a acreditar que, ainda no final do século XIX, a cidade potiguar é predominantemente popular quanto à nomenclatura de seus espaços públicos, mesmo que haja uma tendência cada vez maior à oficialização.

O presente trabalho traz uma contribuição não somente para o conhecimento de uma determinada realidade urbana, mas também propõe um método de análise fundamentado na nomenclatura dos espaços públicos urbanos. Foi necessário definir etapas, procedimentos e dirimir ou superar algumas dificuldades inerentes ao método. Como observamos, algumas situações - seja de classificação, seja de sobreposição de nomes

  • exigiram certos cuidados. Em alguns casos, os nomes das localidades também mudaram, e somente por meio de cruzamento de diferentes dados e informações foi possível distinguir ou identificar a que localidade determinado nome se referia. Por exemplo, nos documentos antigos aparece a localidade de Jardim. Ora, no Rio Grande do Norte existem atualmente três cidades com esse nome: Jardim de Angicos, Jardim do Seridó e Jardim de Piranhas. Foi preciso um trabalho cuidadoso para descobrirmos que “Jardim” se referia efetivamente a Jardim de Seridó. A localidade “Triunfo” está na origem de dois municípios atuais: Triunfo Potiguar e Augusto Severo, mas o termo, descobrimos pelos dados analisados, diz respeito à segunda localidade. Em que pese essa e outras dificuldades, o método é viável, e acreditamos termos demonstrado isso. Ele pode ser utilizado ou adaptado para estudos semelhantes. De fato, os nomes não são neutros. Eles revelam muitas facetas e aspectos de um determinado fenômeno, inclusive, no caso específico aqui estudado, como a cidade potiguar se consolidou ao longo do século XIX.

Referências bibliográficas9

ARAUJO, P. Soares. Repertório das leis estaduais referentes aos municípios. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, vol. XXIII-XXIV (1926-1927)

CASCUDO, Luis da Câmara. História da cidade do Natal. 2 ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira; Brasília : INL; Natal: UFRN, 1980.

ESCÓSSIA, Lauro da. Cronologias Mossoroenses. Coleção Mossoroense. Vol. CLXXXII. Natal: Fundação José Augusto, 1983.

SOARES FILHO, Antônio. Notas de História. Natal: Fundação José Augusto, 1985.

Fundação Vingt-un Rosado. Falas e relatórios dos presidentes de província do Rio Grande do Norte no período de 1835 - 1888 (02-02-1835 a 07-09-1848). Coleção Mossoroense, Série "G" - número 2. Mossoró : Fundação Vingt-un Rosado, 1999.

NONATO, Raimundo. Ruas, caminhos da saudade. Coleção Mossoroense, 1973, vol. 23.

  1. O artigo se intitula “a cidade por seus nomes: a consolidação da cidade potiguar pela nomenclatura dos espaços púbico”. 

  2. Além destes, foram levantados alguns nomes de áreas periurbanas e rurais, totalizando mais de 500 entradas. Contudo, estas duas últimas áreas, correspondentes às colunas “5” e “6” da planilha, não entram na análise, nem aparecem na planilha do Excel apresentada na Tabela 1. 

  3. Dentre as cidades estudadas, 34 eram ou se tornaram municípios ao longo do período estudado, o que exclui de nossa análise apenas 3 municípios. Não obtivemos dados para as localidades de Lajes, Santa Cruz e Taipu, que se tornaram vilas respectivamente em 1890, 1876, e

    1. Caso contrário, teriam entrado na análise. Contudo, obtivemos dados para três localidades que já existiam como povoação no século XIX, mas que somente se tornariam sede de município no século XX. Jardim de Angicos somente se tornou município em 1962; a povoação de Poço Limpo foi batizada como município de Ielmo Marinho em 1963; São Gonçalo do Amarante se emancipou somente em 1958.

  4. A cidade de Mossoró é o maior exemplo disso. 

  5. Contudo, há casos em que o ano corresponde efetivamente ao ano de início do uso de determinado nome. Isso ocorre quando os nomes foram instituídos por decreto ou lei municipal. Não parece ser a maioria dos casos. 

  6. Assim, por exemplo, a Rua Santo Antônio, em Natal, fora chamada, no século XVIII, de “caminho de beber”; a Praça Barão de Ibiapaba fora anteriormente a Praça Chico Tertuliano e a Praça 6 de Janeiro havia sido denominada de Praça do Esgoto do Cano, ambas em Mossoró. Nonato (1973; p. 10, 51). Outros exemplos coletados poderiam ser citados. 

  7. A somatória dos percentuais referentes às povoações, vilas e cidades corresponde a 100,67%, valor levemente superior aos 100 % em função das aproximações no cálculo. 

  8. Essa variação de 1 a 13 não foi tirada da planilha do Excel aqui utilizada, mas por meio de uma verificação simples nas fontes utilizadas. 

  9. Obs. Foram consultados inúmeros documentos manuscritos da época e outros trabalhos e publicações. O que segue são apenas as publicações expressamente citadas no texto (a indicação completa tornaria a lista bibliográfica por demais extensa).