Resumo

Este artigo investiga o muro enquanto elemento urbano que encerra boa parte da realidade da paisagem urbana contemporânea. O estudo levanta hipóteses sobre a constituição material e imaterial do muro e as relações que são geradas a partir do encontro com os habitantes dessas cidades. Para tal, o trajeto percorrido assume primeiramente a ideia do muro enquanto barreira

- conceito mais difundido - por uma perspectiva histórica. O segundo momento adota o muro enquanto símbolo, com base no escrito Não lugares (AUGÉ, 2012), de Marc Augé. Este artigo é concluído por uma análise estética do muro investigando o conceito de arte proposto nos livros Estética Relacional (BOURRIAUD, 2009) e Pós-produção (BOURRIAUD,2009) de Nicolas Bourriaud. Esse caminho levanta hipóteses sugerindo um universo mais amplo sobre tal elemento, mas inclusive sobre a própria concepção da realidade urbana na contemporaneidade.

Palavras Chave: muro; paisagem; símbolo; urbano; contemporaneidade

Abistract

This article investigates the wall as urban element that encloses big part of contemporary urban landscape reality. The study raises hypotheses about material and immaterial wall constitution and the relationships generated by the encounter with the cities' inhabitants. To this end, the traversed path first takes the idea of the wall as barrier - most widespread concept

- by a historical perspective. The second stage adopts the wall as a symbol, based on Marc Augé written Não-lugares (AUGÉ,2012). This article is concluded by a wall aesthetic analysis which investigating art’s concept proposed in books Estética Relacional (BOURRIAUD,2009) and Pós-produção (BOURRIAUD, 2009) by Nicolas Bourriaud. This path raises hypotheses suggesting a broader universe of such element, but even over the concept of nowadays urban reality.

Key words: wall; landscape; symbol; urban; nowadays

A Barreira

O muro1 é simultaneamente um elemento arquitetônico e urbano. Pode-se até mesmo pensá-lo como uma testemunha de mudanças que acontecem no desenrolar da história da humanidade. Das primeiras cidades à metrópole do século XXI, o muro aparece em quase toda descrição de paisagem urbana. Seus significados, suas funções e suas escalas alteram-se e se adaptam às necessidades e aos significados postos por cada tempo.

1 Referimo-nos como muro aquela construção isolada ou combinada a um edifício feita geralmente de pedra, alvenaria, concreto ou ferro, com o intuito de limitar, proteger e demarcar uma porção de terra.

O presente estudo se atém ao muro enquanto elemento formador da paisagem e definidor do espaço urbano da metrópole contemporânea, repleto de significações. Para organizar essa abordagem, um primeiro recorte foi usado com base nas três dimensões espaciais propostas por Lamas (2007): os muros em escala da cidade, usados tanto para proteção e separação das grandes cidades ou nações; os muros em escala do bairro, usados para a proteção e divisão das cidadelas ou bairros; e os muros em escala da rua, usados basicamente para separar o espaço

público e o privado2.

O muro em escala do bairro aparece pristinamente nas páginas da história. Lewis Mumford (MUMFORD, 1998, p. 44) diz que a aparição do muro ocorreu justamente na transformação urbana que deu origem as cidades. A primeira implosão urbana ocorreu com a criação da “pequena cidade” ou cidadela que era definida pelo uso do muro como proteção do oratório. Nesse caso, o muro aparece com uma conotação muito mais religiosa do que militar, pois teria a função de defender apenas o espaço sagrado e não os cidadãos, mantendo antes os maus espíritos à distância do que os inimigos humanos.

O muro em escala da cidade surgiu na história com o desenvolvimento dos grandes impérios. O valor da muralha como meio de proteção expandiu seus limites para além da cidadela. A cidade inteira foi então cercada com muralhas. Essa forma de construir cidades tornou-se característica predominante até meados do século XVIII na maioria dos países.

“Houve exceções como o antigo Egito, o Japão e a Inglaterra, onde as barreiras naturais, um vasto exército ou uma colossal muralha de barricadas de alvenaria, atravessando o país, dispensavam as muralhas locais.” (MUMDFORD, 1998, p.76)

O muro em escala da rua é o mais recente. Já na Idade Média, quando as cidades ainda eram muradas, a ideia da defesa do domicílio ganhou relevância. Jacques Le Goff (LE GOFF, 1998, p.76) fala que o arrombamento do domicílio urbano para roubá-lo tinha se tornado algo grave. A valorização do bem privado que é apontada por Jaques Le Goff é o embrião dos muros domiciliares que estão presentes nas cidades hoje em dia.

Nesse contexto, Teresa Caldeira (CALDEIRA, 2000) aborda o tema da insegurança nas metrópoles contemporâneas. Ela descreve a vida urbana da cidade de São Paulo sobre o viés do crime e da segregação e demonstra como o muro se incorpora na cultura do paulistano em qualquer classe social e seu impacto na constituição sócio-cultural do espaço público. A autora exemplifica a incorporação dos elementos de proteção à cultura urbana com o que ela chama de “Estética da Segurança”, que nada mais é do que um novo sistema de código que transforma esses elementos em símbolos de status social. Ela explica que as novas residências, diferente daquelas de décadas atrás,

já são concebidas com sistema de segurança, fazendo com que os elementos de proteção que antigamente eram percebidos como objetos destoantes e estranhos às construções pré-existentes passassem a compor a estética da casa. (CALDEIRA, 2000, p. 294-297)

2 As escalas podem também ser definidas pelas dimensões: territorial, urbana e setorial. (LAMAS, 2007)

Feita essa breve abordagem histórica, o recorte escolhido para este texto é o muro de pequena escala, o muro da habitação, enquanto formador da realidade urbana contemporânea, especialmente a brasileira. O estudo busca compreender a importância desse elemento, entre o público e o privado, na constituição da paisagem e o valor que lhe é atribuído nessa metrópole. Ou seja, visamos demonstrar que o muro, mais do que uma simples construção feita para separar, limitar e segregar possui um caráter simbólico que pode ser usado para investigações mais precisas sobre como acontece, de fato, a apropriação dos espaços planejados pela população.

O Lugar

A morada do homem do século XXI é a metrópole. O excesso, marca da sociedade pós- moderna, se faz visível nessa cidade. Todos os elementos presentes nela ganham uma proporção nunca antes vista: a população, os edifícios, as vias, os veículos, etc. Nesse turbilhão que é a metrópole, as pessoas não possuem mais os vínculos que as ligavam à sua vizinhança como acontecia antes nas cidades. A criação e a proliferação dos não-lugares são a marca dessas mudanças. “A perda da sensibilidade estética pela esfera urbana é o retrato da sociedade contemporânea” (SUBIRATS, 1988, p.23).

Nesse contexto alguns elementos que compõem a paisagem da cidade, como as calçadas, as fachadas e os letreiros se tornam objetos de análise na tentativa de se compreender a vida nessa metrópole. Entre eles, o muro, tema desse trabalho, chama atenção por sua onipresença na paisagem urbana de muitas cidades, e, mais importante, por sua capacidade de se tornar algo além da barreira como, por exemplo, ser base para a comunicação no meio urbano tornando-se suporte para uma infinidade de manifestações tipicamente urbanas: propagandas, arte, vandalismo, etc.

Essa multiplicidade de função do muro instiga algumas hipóteses sobre as quais esse estudo está sendo elaborado. O muro da metrópole atual pode ser usado para uma investigação sobre vida do homem contemporâneo? Qual o impacto que o muro exerce sobre a paisagem urbana? Seria possível pensar o muro de uma forma a transformar as realidades que estão degradadas no espaço urbano? Qual o papel da arte3 nessa possível transformação? Qual o papel dos habitantes da cidade nesse contexto?

Uma das possibilidades levantadas a partir dessas hipóteses é a de que o muro poderia ser considerado um lugar antropológico nas condições que Marc Augé apresenta em seu livro Não Lugares (AUGÉ,2012). No texto o autor descreve lugar antropológico como

[...] àquela construção concreta e simbólica do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das vicissitudes e contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles a quem ela designa um lugar, por mais humilde e modesto que seja. [...][Ele] é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem os observa [...] [e] tem escala

3 O trabalho refere-se tanto à arte urbana, como o grafite, quanto à arquitetura, aos se pensar os muros como composição arquitetônica.

variável. (AUGÉ, 2012, p.51)

Essa definição de lugar é complementada pelo próprio autor por três características comuns: identitário, relacional e histórico. A identitário Augé refere-se ao local de nascimento no qual tem-se as primeiras relações com o mundo. A relacional refere-se à relação que o lugar tem com o entorno, ou seja, o sentido que o lugar tem como parte de um conjunto de outros lugares. E, por fim, por histórico a relação que o habitante desse lugar tem com ele, mas não uma relação histórico-científica, com demarcação precisa do tempo, e sim uma relação de afeto que remete à sua própria história, à história dos seus antepassados e aos acontecimentos de sua vida.

Em suma, o lugar antropológico é a interiorização da ideia do espaço no qual a pessoa vive. Ou seja, o lugar antropológico é matéria enquanto espaço construído, mas é, ainda mais, ideia, pois ganha vida apenas quando se torna memória na mente daqueles que vivem o espaço.

Nessas condições, uma dificuldade que se apresenta quando se quer pensar o muro como lugar, e não apenas como parte de um lugar, é a sua geometria. Augé refere-se sempre ao lugar como uma geometria horizontal, afinal de contas seria impossível habitar sobre a terra algo que não seja horizontal. Portanto, poderíamos pensar o muro como lugar antropológico embora seja essencialmente vertical?

A primeira possibilidade que vamos levantar é pelo viés da geometria, já que foi a motivação da pergunta. Em seu livro El Muro, Jesús Mª Aparicio Guisado (GUISADO, 2000), analisa o espaço arquitetônico por meio dos elementos verticais, que ele denomina de muros, e que, para ele, são todas construções com comprimento, largura e altura, que cria e conforma o espaço arquitetônico. Tal espaço, argumenta o autor, surge da relação entre a presença e a ausência dos muros.

A ausência do muro implica a presença na arquitetura do homem, da luz, da paisagem, etc. A arquitetura nasce quando, através das ausências de seus muros, se faz presente o que não é arquitetura: o homem, a luz e a paisagem no sentido de Heidegger. (GUISADO, 2000, p.189)

Baseado nessa relação, Guisado define dois conceitos que ajudam a compreender os tipos de espaços arquitetônicos definidos pelos muros: o tectônico e o estereotômico. O tectônico é uma forma de pensar arquitetura que incorpora o ambiente externo ao ambiente interno. Esta incorporação transcende o meramente formal para converter-se em uma sublimação da matéria construída. A matéria então se converte na protagonista da ideia e chega à arquitetura com forma, função e ideia próprias. O autor sugere a Casa Farnsworth, do arquiteto Ludwig Mies Van der Rohe, como exemplo do espaço tectônico.

O estereotômico é uma forma de pensamento que incorpora o universal na arquitetura, ou seja, transcende a natureza para converter-se em uma sublimação da ideia. Dessa maneira a ideia passa a ser a protagonista da arquitetura, tendo forma e função próprias de caráter universal. O autor sugere o Panteão, em Roma, como exemplo do espaço estereotômico.

Portanto, é possível aproximar esses dois conceitos – tectônico e estereotômico – à dualidade que compõe o lugar antropológico, a matéria e a ideia. Em ambos existe uma dimensão concreta e outra abstrata. O que se quer reforçar no espaço tectônico é a relação do ser humano com o ambiente que o cerca, ou seja, o foco está nas coisas, nos elementos em si, no mundo material. O muro que compõe esse espaço é descontínuo e limitado. Já o espaço estereotômico reforça o isolamento do homem, tendo o foco na ideia, no abstrato, na simbologia do espaço. O muro que compõe esse espaço é contínuo e ilimitado. Esse raciocínio dual que aproxima esses dois pensadores será base para a próxima hipótese a ser apresentada pelo viés simbólico.

Tem-se, então, o próximo conceito na estrutura do estudo, trata-se do termo: significado. O muro, além de constituir a paisagem como objeto real e técnico, uma construção, que sempre compôs de uma forma ou de outra o ambiente urbano, é também símbolo.

A abordagem de Diana Agrest e Mario Gandelsonas (AGREST; GANDELSONAS, 2006, p.134) sobre os signos em arquitetura no seu texto “Semiótica e Arquitetura” defende uma visão desvinculada à semiótica tradicional onde os objetos no ambiente têm um significado inerente. Para os autores esse tipo de abordagem semiótica aplicada de forma mecânica à arquitetura apenas favorece o bloqueio da produção de conhecimento arquitetônico uma vez que reforça a função da ideologia arquitetônica (ibid., p.135).

[...] A ideologia pode ser definida como um conjunto de representações e crenças – religiosas, morais, políticas, estéticas – a respeito da natureza, da sociedade, da vida e das atividades dos homens sobre a natureza e a sociedade. A ideologia tem a função social de manter a estrutura global da sociedade induzindo os indivíduos a aceitar em suas consciências o lugar e o papel que essa estrutura lhes designa. Ao mesmo tempo, a ideologia atua como um obstáculo ao verdadeiro conhecimento, impedindo a constituição da teoria e seu desenvolvimento. [...] A função da ideologia não é produzir conhecimento, mas opor-lhe obstáculos. [...] A soma de todo o “conhecimento” arquitetônico ocidental, das instituições do senso comum às complexas “teorias” e histórias de arquitetura, deve ser vista mais como ideologia do que como teoria. [...] (AGREST; GANDELSONAS, 2006, p.130-131)

Os autores defendem uma abordagem semiótica compreendida como teoria geral em que noções como arbitrário e valor são entendidas em seus conceitos básicos e assim aplicados a outros campos do conhecimento, no caso a arquitetura. (AGREST; GANDELSONAS, 2006, p.136) De maneira geral, eles defendem a ideia de que os signos em si não possuem um significado inerente e que essa relação entre objeto e significado é uma convenção cultural.

Essa compreensão dos signos está em acordo com as teorias apresentadas de lugar antropológico ao atribuir à sociedade o papel de dar significado aos elementos. Essa ideia conflui para as contribuições de Milton Santos quando afirma que é o homem que anima as formas espaciais, atribuindo-lhe um conteúdo, uma vida. Uma casa baldia ou um lote vazio não participam do processo dialético senão porque lhes são atribuídos determinados valores,

isto é, quando são transformados em espaço. O simples fato de existirem como formas não basta, é necessário que sejam utilizados pela sociedade para se tornarem espaço. A forma utilizada tem conteúdo espacial, logo é espaço, tal como Milton Santos pensou (SANTOS, 2006, p.109).

Tanto o lugar quanto os signos só existem e são compreendidos pela relação que mantêm com o homem. Dessa mesma maneira, o muro o faz. Além da função de separar um espaço do outro, estabelecendo um limite e demarcando um território, tornando-se, muitas vezes a fronteira entre o espaço público e o privado, o muro é um elemento democrático quando utilizado como painel para os mais diferentes tipos de ocupação, seja como suporte ou dispositivo para propagandas, seja por artistas de rua. Esse tipo de ocupação, por exemplo, acaba por transformar os muros em espaços de trocas simbólicas na cidade. Tem-se aí uma das atuais transformações simbólicas que o muro sofreu ao longo dos séculos e, ainda com

mais ênfase, no século atual4.

A Estética

Até agora foram apresentados argumentos que tinham como base a função de barreira do muro, seja a partir da função tal e qual do muro, seja a partir das vinculações que o muro permite pensar frente as três dimensões apresentadas referente ao seu caráter geométrico, emocional e simbólico. O esforço até aqui foi o de demonstrar que no conceito de barreira já estão presentes elementos que sugerem interpretações outras sobre o muro. Esse discurso, através da função e do símbolo preparou nosso terreno para a última abordagem do tema: pelo

viés da estética. A questão aqui é: seria possível que, por meio de experiências estéticas5, os

habitantes das metrópoles experimentassem um ambiente urbano diferente daquela degradação descrita por Subirats?

O estudo a partir daqui considerará o muro como um elemento independente da função de ser limite, o que permitirá abrir uma gama de possibilidades normalmente impedidas pela definição que liga a sua justificativa de ser à definição de barreira. Por meio de uma percepção do muro como objeto sem função definida e, com base nos escritos de Nicolas Bourriaud, será analisado o papel da arte para essa compreensão mais vasta do tema.

Tomemos como ponto de partida algumas passagens retiradas do seu livro Estética Relacional

(2009) que fazem referência à forma:

Não existem formas na natureza, no estado selvagem, porque é nosso olhar que as cria, recortando-as na espessura do visível. As formas desenvolvem-se umas a partir das outras. O que ontem seria considerado informe ou “informal” já não o é mais. Quando a discussão estética evolui, o estatuto da forma evolui com ela e através dela. (BOURRIAUD, 1989, p.30)

4 Faz-se aqui referência ao projeto intitulado Muro: Territórios Compartilhados (conferir no site:

<[http://muros.art.br/?page_id=402]{.ul}>) que utiliza o muro como suporte para a expressão artística, levando ao grande público, que em geral não tem acesso às exposições privadas, a arte visual.

Assim nascem as formas: do desvio e do encontro aleatório entre dois elementos até então paralelos. Para criar um mundo, esse encontro fortuito tem de se tornar duradouro: os elementos que o constituem devem se unificar numa forma, isto é, “os elementos têm de dar liga (assim como dizemos que alguma coisa ‘deu liga’)”. “A forma pode ser definida como um encontro fortuito duradouro.” (BOURRIAUD, 1989, p.27)

A diante, no estudo da forma, é apresentada a expressão possibilidades de vida, referindo-se ao momento quando novas formas são criadas pela obra de arte. No momento em que a obra acontece surgem novas possibilidades de vida, ela se torna um modelo de um mundo viável. Ou seja, a obra de arte tem como objetivo criar formas que sejam capazes de se tornar duradouras produzindo uma relação com o mundo, mas que na sua concepção são capazes de abrir o horizonte das relações para infinitas possibilidades.

Aprofundando um pouco a noção da arte como um momento de abertura para novas possibilidades proponho analisar a seguinte afirmação de Bourriaud: “Uma obra de arte é um ponto sobre uma linha.” (BOURRIAUD, 2009, p.29)

Essa sentença resume a condição da arte no contexto que estamos trabalhando. Podemos começar refletindo a respeito do que é linha: um conjunto de pontos em sequência, ou um ponto em movimento, ou ainda o prolongamento de um ponto. Um ponto sobre uma linha pode também significar um ponto de inflexão ou uma mudança de direção. Se tomarmos a ideia de uma reta, que seria uma linha definida pelo movimento infinito de um ponto em uma direção constante, ou pelo conjunto de pontos alinhados em um plano, e acrescentarmos ao conceito de encontro fortuito que Bourriaud apresenta com base na tradição filosófica materialista, em que

[...] os átomos caem paralelamente no vazio, seguindo uma leve inclinação. Se um desses átomos se desvia do curso, ele “provoca uma colisão [encontro fortuito] com o átomo vizinho e de colisão em colisão um engavetamento e o nascimento de um mundo”... (BOURRIAUD, 2009, p.26)

podemos dizer que afirmar que a arte é um ponto sobre uma linha (reta) pode significar o ponto em que as retas se encontram. O ponto de intersecção de uma reta oferece infinitas possibilidades para tal, ou seja, um ponto sobre uma reta não define o modo como acontecerá a intersecção, mas apenas o momento em que ela ocorrerá.

Assim a obra de arte o faz, ela marca um ponto, tempo ou espaço, em que há a abertura para novas possibilidades. A linha poderá mudar de sentido, de direção, ou não, e a linha poderá ser interceptada por uma linha, uma reta, ou por um arco. “A obra de arte permite o encontro fortuito de elementos separados, causando um estado de mundo viável, logo toda arte é modelo de um mundo viável.” (BOURRIAUD, 2009. p.27)

Na contemporaneidade o conceito de forma duradoura, ou seja, aglutinada por elementos distintos, não necessita mais de uma materialidade. O reconhecimento desses diversos elementos como forma, ou seja, como espelho de um mundo, não significa estar unido

materialmente, como pode ser visto nas instalações. Isso abre espaço para uma infinidade de observações de um mesmo conjunto de elementos. Como não estão associados materialmente, cabe ao observador os unir para se tornarem forma. Assim a forma da obra de arte contemporânea vai além de sua forma material: “ela é um elemento de ligação, um princípio de aglutinação dinâmica.” (BOURRIAUD, 2009. p.29)

Retornando ao muro, esse discurso pode ser usado para responder como ele pode tornar-se algo além da barreira. Por meio do conceito da arte relacional, em que outros mundos podem ser criados a partir de uma obra de arte, o muro pode se tornar elemento de abertura para novas formas de relação com o meio urbano. E é por meio da arte que isso se torna possível.

Em seu livro imediatamente posterior, Pós-produção (BOURRIAUD, 2009), Bourriaud fornece subsídio para avançarmos na leitura do muro. Nesse escrito, o autor se refere à produção de arte por meio do agenciamento dos objetos/signos dados. A realidade urbana fornece os objetos que nós interpretamos e transformamos em signos que nos relacionam à cidade. O muro é um desses objetos/signos, e por meio deles nos relacionamos com os demais elementos urbanos: edifício, rua, calçada, praça, etc.

Essa realidade urbana é, segundo Bourriaud, uma montagem. E, assim como ele, nos perguntamos: ”[...] a montagem em que vivemos será a única possível?” (BOURRIAUD, 2009, p.83) Por meio do cotidiano podemos criar diferentes versões dessa montagem. A obra de arte contemporânea caracteriza-se, justamente pela capacidade dos artistas em aglutinar os elementos do cotidiano para compor a obra de arte. Dessa maneira eles criam novas relações, abrem novas possibilidades para interpretações das realidades as quais nos são oferecidas.

O muro é um desses elementos do cotidiano urbano que pode se transformar em um dispositivo para auxiliar a arte a produzir novas relações com o mundo. Para isso é necessário que o reorganize, que o perturbe e que o insira em enredos originais. É necessário desprogramar as relações existentes com o muro para abrir outros usos ou outras possibilidades.

Um exemplo que deixa claro a ideia que estamos tentando apresentar para o muro é a obra de Joseph Grigely. Ele transforma um objeto de uso do cotidiano – pedaços de papel usados para comunicação escrita do dia-a-dia, a nota escrita – em obra de arte. O papel é o suporte para a comunicação e por meio dele o artista apresenta o universo relacional que está por trás, escondido na esfera da subjetividade.

A relação entre o papel e o muro é explicita. Ambos são meio, suporte para a comunicação. Também dividem a posição secundária, menos importante, em suas realidades. Assim como a “nota por escrito é uma forma social à qual não possui devida atenção, geralmente destinada a um uso profissional ou doméstico secundário” (BOURRIAUD, 2009, p.85), o muro domestico ordinário aparece como elemento marginal no estudo da arquitetura e do urbanismo, inclusive com um aspecto negativo (o projeto de Brasília é um exemplo). Assim como na obra de Grigely, em que a nota por escrito, nas palavras de Bourriaud, perde seu estatuto subalterno e adquire a dimensão existencial de um instrumento de comunicação vital,

o muro pode se transformar em um elemento urbano imprescindível para a própria condição de vida da metrópole contemporânea.

Dessa maneira, os objetos sociais, desde as roupas até as instituições, passando pelas estruturas mais banais, não ficam inertes. Introduzindo-se no universo funcional, a arte revive esses objetos ou revela sua inanidade. (BOURRIAUD, 2009, p.85)

O tema da arte relacional na obra de Bourriaud, analisando o papel e a forma da produção dos artistas na década de 1990 no mundo da arte, nos abre para novas percepções de mundo. Apesar da complexidade e da controvérsia do tema, a importância da discussão proposta por Bourriaud está no desdobramento do entendimento sobre a realidade do mundo contemporâneo. A inserção de novos paradigmas na arte e a motivação para avançar na crítica ao modo de vida contemporâneo são pontos de apoio para a compreensão da experiência do muro. Como um todo, a percepção de uma sociedade dependente de um controle midiático, onde a paisagem urbana é composta por elementos estéticos criados para compor o espetáculo urbano contemporâneo, marca o tom deste discurso, em que as hipóteses levantadas para ampliar a concepção das relações com o muro podem ser entendidas como alternativas para a realidade que se apresenta nos dias atuais.

Referências Bibliográficas

AGREST, D.; GANDELSONAS, M. Semiótica e arquitetura: consumo ideológico ou trabalho teórico. In: NESBITT, K. Uma nova agenda para arquitetura: antologia teórica (1965-1995). Tradução: Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 129-141.

AUGÉ, M. Não Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução: Maria Lúcia Pereira. 9ªed. Campinas, SP: Papirus, 2012.

BOURRIAUD, N. Estética Relacional. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009.

BOURRIAUD, N. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009.

CALDEIRA, T. P. R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. Tradução: Frank de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo: EDUSP, 2000.

LAMAS, J. M. R. G. Morfologia urbana e desenho da cidade. 4ª ed. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia. 2007.

LE GOFF, J. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. Tradução Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

Muros: Territórios Compartilhados. Disponível em: <[http://muros.art.br]{.ul}>. Acesso em: 1 set. 2012.

MUMFORD, L. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. Tradução de Neil R. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

SANTOS, M. A natureza do espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

SUBIRATS, E. A flor e o cristal: ensaios sobre arte e arquitetura modernas, 1ª edição. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Studio Nobel, 1988.