Resumo

A urbanização da Vila Mariana, bairro da região centro-sul de São Paulo, foi condicionada por fatores que impulsionaram sua formação e ocupação, e em particular podemos enfatizar a Estrada Carris de Ferro São Paulo a Santo Amaro e o novo Matadouro Municipal. A região pouco urbanizada no século XIX tornou-se o local escolhido para o estabelecimento do indesejável elemento que por sua atividade peculiar era rejeitado pelo centro urbanizado. O local escolhido para a construção do novo Matadouro foi o futuro bairro de Vila Mariana e em torno desse elemento rejeitado pela civilização intensificou-se a urbanização da região. As causas do estabelecimento do matadouro e a urbanização do bairro se inserem num paradoxo, pois o edifício que deveria estar isolado da cidade tornou-se um elemento de atração. A discussão que se colocava no âmbito de empresários e do poder público não era alheia à expansão da cidade naquele vetor e era sabida a vantagem que tal empreendimento traria para a região, possibilitando a aceleração da ocupação pelo loteamento das terras. A construção do matadouro associada à ferrovia era um bom negócio, inclusive para os moradores daquela área, uma vez que dotava a região de infraestrutura urbana. Os loteamentos foram ocupados, construíram-se casas para moradia própria e para alugar. Constituiu-se um bairro residencial dos setores médios: a Vila Mariana.

Abstract

The urbanization of Vila Mariana district of the south-central region of São Paulo , was conditioned by factors that boosted their training and occupation, and in particular we emphasize the Road Carris de Ferro Sao Paulo Santo Amaro and the new Municipal Slaughterhouse . The undeveloped region in the nineteenth century became the location for the establishment of undesirable element which by its peculiar activity was rejected by the urbanized center. The site chosen for the construction of the new Slaughterhouse was the future neighborhood of Vila Mariana and around that element rejected by civilization intensified urbanization of the region. The causes of the establishment of the slaughterhouse and the urbanization of the neighborhood are part of a paradox, because the building that should be isolated from the city became an element of attraction. The discussion is placed in the context of business and government was not oblivious to the expansion of the city that was known vector and the advantage that such an undertaking would bring to the region, enabling the acceleration of occupation by the allotment of land. The construction of the Slaughterhouse linked to the railroad was a good deal, even for the locals who endowed the area of urban infrastructure. The allotments were occupied, built up houses for home ownership and renting. Constituted a residential neighborhood of the middle sectors: Vila Mariana.

A urbanização da Vila Mariana, bairro da região centro-sul de São Paulo, foi condicionada por fatores que impulsionaram sua formação e ocupação, e em particular podemos enfatizar a Estrada Carris de Ferro São Paulo a Santo Amaro e o novo Matadouro Municipal. A região pouco urbanizada no século XIX tornou-se o local escolhido para o estabelecimento do indesejável elemento que por sua atividade peculiar causava repulsa ao centro urbanizado que não desejava sua proximidade. O trânsito das boiadas, a matança, o esquartejamento dos animais e os dejetos despejados nas águas do Anhangabaú inviabilizavam a permanência do matadouro na Rua Humaitá, próximo ao largo da Pólvora. A transferência para um lugar afastado do centro tornou-se necessária.

O local escolhido para a construção do novo Matadouro Municipal foi o futuro bairro de Vila Mariana1 e em torno desse elemento rejeitado pela civilização intensificou-se a urbanização da região. A Vila Mariana atraiu empreendedores que investiram em loteamentos e infraestrutura, moradores e imigrantes que instalavam pequenas oficinas e certamente o matadouro foi um fator propulsor de ocupação.

As causas do estabelecimento do matadouro e a urbanização do bairro se inserem num paradoxo, pois o edifício que deveria estar isolado da cidade tornou-se um elemento de atração, urbanizando a região. Como as ideias de ordenamento do espaço e do uso do solo se coadunavam com o elemento que era sinônimo de distanciamento e cuja proximidade com a cidade era indesejada? Esse elemento em si representava o caos, contrariando a ordem sanitária vigente no período, traduzia a antítese do espaço ordenado e civilizado. Pretendemos abordar a formação do bairro por essa dinâmica.

A polêmica localização do novo matadouro

Durante os anos de 1870, a Câmara chegou a comprar uma chácara no Campo das Perdizes para esse fim. O concurso para a construção nas Perdizes foi vencido em 1879 por Alberto Kuhlmann e a aprovação da planta para a construção ocorreu em 29 de janeiro de 1880, ainda que algumas modificações fossem sugeridas.

O local almejado para a construção do novo matadouro estava no vetor oeste de expansão da cidade na direção do bairro de Perdizes. Em 1884 reabriu-se a discussão para localizá-lo nos Campos dos Pinheiros junto à Estrada de Ferro Sorocabana, em detrimento do local nos Campos das Perdizes, também denominado Palmeiras ou Pacaembu. Alguns reclamantes apelavam à Câmara, apoiados na avaliação de um médico que alegava ser o local impróprio, pois não tinha condições de higiene ou água suficiente, além de encarecer o transporte de carne verde. Insistia-se na localização do edifício na região de Rio Pequeno, próximo à Estrada de Ferro Sorocabana.

A Ilma. Câmara Municipal (...) tem todo terreno necessário para um matadouro no Rio Pequeno, sem dispêndio algum e o transporte será feito rapidamente pela via férrea Sorocabana (...). Por esse abaixo assinado verificamos que outro local preterido foi nas Palmeiras ou Pacaembu. (A Província de São Paulo, 10/jan./1884).

O binômio matadouro-ferrovia se faz presente, assim como na proposta para a

1Em 1895, mudou-se para a região o educador e Juiz de Paz Carlos Petit que uniu o nome de sua mãe Ana e de sua esposa Maria e a região passou a ser chamada de Vila Mariana. Até então era conhecida como Colônia dos Italianos e anteriormente Cruz das Almas ou Saúde. Cf. MASSAROLO, Pedro Domingos. O bairro de Vila Mariana. História dos bairros de São Paulo. São Paulo: Prefeitura Municipal de São Paulo, Secretaria de Educação e Cultura, Departamento de Cultura, 1971, p.39.

Vila Mariana, o que indica ser fator de vital importância o transporte das carnes. Essa questão é justificável, porém o que devemos enfatizar é que este serviço era pago pela Câmara Municipal, tornando-se um serviço vantajoso para a ferrovia. A localização do matadouro municipal não foi aceita sem polêmica e sua instalação gerou conflitos de interesses. Havia uma disputa entre cidadãos interessados na construção do matadouro, defendendo as regiões que diziam possuir melhores condições.

Por fim, o local escolhido para a construção do novo matadouro foi na Vila Mariana. O parecer do engenheiro municipal alegava que no local escolhido nas proximidades do Córrego do Sapateiro havia água suficiente e os pastos necessários para os animais. A polêmica que transparece nas notícias traz um questionamento: por que havia essa disputa quanto à localização do Matadouro Municipal?

O Engenheiro Alberto Kuhlmann foi novamente o vencedor do concurso e recebeu um conto de réis de prêmio (CONDEPHAAT, 1983, p.69). O segundo lugar ficou com Ramos de Azevedo. Kuhlmann, alemão de origem, formou-se engenheiro na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Foi deputado eleito da primeira Constituinte de 1891 e, além de idealizador da planta do matadouro, era sócio da Companhia Carris de Ferro São Paulo a Santo Amaro. No mesmo dia de 1885 leu-se na Câmara Municipal a Ata de aprovação da construção do edifício e a autorização para a Estrada de Ferro Carrris fazer o desvio do ramal de trem para o matadouro (A Província de São Paulo, 07/maio/1885).

A iniciativa privada atuava de forma organizada e buscava coadunar mais de um ramo de atividade ligado ao processo de urbanização da cidade. Mônica Brito coloca que a urbanização da cidade deu-se de forma coordenada e que os empresários privados, organizados em Sociedades Anônimas e Companhias, atuavam dotando a cidade de infraestrutura e investindo no mercado imobiliário (2000, p. 7). O engenheiro Kuhlmann parece ter sido beneficiado com a combinação de fatores: a construção do Matadouro e da Estrada de Carris de Ferro São Paulo a Santo Amaro. Também atuou em outra empresa de transporte, a Cia. Viação Paulista (2000, p. 27) que posteriormente incorporou a mesma Cia. Ferro Carris de São Paulo. A Viação Paulista era concessionária de serviços de bondes de tração animal nas linhas Bom Retiro e Bela Vista e percorriam a Avenida Paulista após 1892. A ferrovia que se tornou linha de bondes foi determinante para a dinamização de ocupação e urbanização do bairro.

O projeto de 1879 do engenheiro Kuhlmann propunha que a construção se fizesse com os impostos do abate e a comercialização de carne. Ressalta-se que ao apresentar essa proposta a Câmara Municipal ainda não havia aberto concurso para tal. A iniciativa foi do próprio engenheiro, que solicitava durante o prazo de 12 anos a partir do término da construção a cessão pela Câmara de “todos os impostos, direitos e emolumentos provenientes do corte do gado bovino, suíno e ovelhum, dando-lhe o direito de cobrá-los diretamente” (COONDEPHAT, 1983, p. 56). O Matadouro Municipal era a terceira fonte de arrecadação de impostos no município, ficando atrás dos impostos sobre as indústrias e sobre as atividades profissionais (RIBEIRO, 1993, p.107).

Como era previsto, após o término da construção em 1887, o matadouro e a linha de trens estimularam a ocupação do bairro. Mas, quando a expansão da cidade incorporou o matadouro, os problemas surgiram. A água era insuficiente, o trânsito de animais e as pastagens traziam transtornos ao bairro. Os problemas que justificaram a transferência do antigo Matadouro da zona central foram os mesmos causados pelo Matadouro Municipal no bairro urbanizado de Vila Mariana.

Portanto, observamos que a urbanização da cidade foi realizada por uma lógica coordenada e racional, não por ações intempestivas e improvisadas. A cidade se expandia, adensando bairros pelas ações da iniciativa privada, de empresários e de múltiplos atores sociais que construíam casas para residir ou alugar. A discussão que se colocava no âmbito da iniciativa privada e do poder público não era alheia à expansão da cidade naquele vetor e era sabida a vantagem que tal empreendimento traria para a região, possibilitando a aceleração de ocupação pelo loteamento das terras.

Assim, cresceu o interesse sobre os terrenos ao longo da linha férrea na Estrada Vergueiro. A região de Vila Mariana e Vila Clementino foi loteada. Entre os loteamentos que pudemos levantar aparecem o da Cia. Mercantil de Obras Públicas Paulista Aguirra

& Cia. de São Paulo; o loteamento da propriedade do Sr. Manuel Corrêa Dias; arruamento dos terrenos do Sr. Almeida, Porto e Cia; arruamento na área da Rua França Pinto onde aparece a Cia. Antártica Paulista na planta e loteamento da Chácara Boa Vista do Sr. José Antonio Cunha2.

A questão sanitária: um argumento legitimador

A discussão sobre a construção do novo Matadouro envolveu considerações sobre as condições sanitárias. Era o Código de Posturas Municipais que regia as normas sanitárias para a cidade e que se limitavam à remoção de lixo, limpeza dos quintais, abertura de ruas. Ainda não havia especificações para esse tipo de construção3, porém a planta de construção do Matadouro passou pela Comissão de Obras da Câmara Municipal e foi submetida ao parecer de um médico oficial4.

O governo de João Theodoro criou o novo Código de Posturas de 1886 e organizou a Inspetoria de Higiene cujo primeiro inspetor de higiene pública foi Dr. Marcos de Oliveira Arruda. O novo código pouco alterou o anterior, de 1875, e a questão de ordenamento do espaço urbano se resumia aos gabaritos das construções e de arruamentos. A partir da República a saúde pública passa a ser de responsabilidade da Província, através da organização de instituições. Em 1891 organizou-se o Serviço Sanitário, presidido por Américo Brasiliense, porém a preocupação com a saúde pública se centrava no serviço de vacinação no Estado.

A questão urbana fica mais evidente no Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1911, que previa ações contra os danos causados pelas fábricas e definia normas para as construções urbanas. Aparecem normas específicas para o estabelecimento de matadouros e para a comercialização de carnes (RIBEIRO, 1993, p. 113).

O Matadouro Municipal de Vila Mariana foi inaugurado em 21 de junho de 1887 e sua localização e construção se pautavam pelo sanitarismo. A questão sanitária já estava entranhada na sociedade paulistana, acalentada pelos problemas que o velho matadouro trazia para a civilidade.

2 As fontes foram os mapas encontrados no Museu Vicente de Azevedo, Arquivo Histórico Municipal - Seção de Cartografia e Museu Paulista- Coleção Aguirra.

3 O primeiro Código de Posturas da cidade de São Paulo, de 1830, tratava no artigo 36 da matança de gado, prevendo multas e prisão para quem realizasse essa atividade sem licença e fora do matadouro

(GIORDANO, 2006, p. 27), porém não estabelecia normas de construção para matadouros.

4 Houve um parecer do engenheiro Leopoldo José da Silva indicando o local de Vila Mariana por ter as condições necessárias para instalar o Matadouro. No entanto, para a construção no local, a Câmara teve que revogar a venda dessas terras devolutas que já estavam comprometidas para o Sr. Julio Arão Theodorico por indicação do vereador Sr. João Bueno (A Província de São Paulo, 12/out./1881).

A saúde pública e a intervenção nas cidades

Entre 1750 e 1830 houve na Europa uma revolução no comportamento social provocada pelas ideias racionais do Iluminismo. Os intelectuais buscavam explicar os fenômenos sociais de desigualdade causados pelo colonialismo. Era preciso justificar o domínio sobre outras populações. Surge, então, a ciência articulando ações que atribuíam hierarquias sociais, classificando os grupos em aptos ou menos aptos, capazes e incapazes ou grupos perigosos provocadores de doenças. George Rosen coloca que nesse contexto surgiram as ideias sobre saúde pública (1994, p. 115). O espaço urbano precisava ser classificado segundo normas científicas, justificando o poder disciplinar pela fiscalização e pelo controle. O conhecimento de médicos e engenheiros sanitaristas redesenhava as cidades e alterava profundamente os hábitos cotidianos legitimados pela ciência.

A associação entre a biologia e a medicina na representação da cidade se faz presente desde o período clássico (GUNN e CORREIA. In: BRESCIANE, 2001, p.229). Mas foi no fim do século XIX e início do XX que as analogias médicas e biológicas na concepção e intervenção da cidade tiveram extrema influência. Primeiramente, as descobertas científicas da circulação do sangue, de Willian Harvey, em 1628, associaram a cidade ao corpo humano. As intervenções urbanísticas propunham a circulação de ar, água, pessoas e mercadorias, descongestionando o espaço. Os problemas das cidades eram associados ao seu crescimento repentino, ao grande número de pessoas concentradas, causando a desordem pela mistura entre as diferentes funções urbanas. Assim, as funções deveriam ser separadas, o meio deveria ser disciplinado. Aquilo que causasse desordem deveria ser separado e controlado (FOUCAULT, 2009, p.139). A teoria miasmática veio corroborar com a concepção de que tudo que estivesse estagnado emanava doenças. Essas teorias médicas que pautavam a intervenção nas cidades europeias permeavam as atuações dos profissionais brasileiros (GIORDANO, 2006, p.16).

Na recente República, a zona central da cidade de São Paulo precisava tornar-se o lugar da sociabilidade, deveria refletir a imagem de civilidade e afastar o ambiente doentio. O desejo civilizador estava disseminado pelo país e as intervenções urbanas estavam permeadas pela intenção de tornar as cidades salubres, justificando as obras de saneamento e de embelezamento.

Os elementos apontados para a construção do matadouro redundavam nessa analogia da medicina com o urbanismo, surgindo um tipo de intervenção urbanística que tratava a cidade como um organismo doente que se regeneraria quando o mal fosse extirpado (GUNN e CORREIA. In: BRESCIANE 2001, p.232). As propostas da localização do matadouro apontavam o interesse especulativo imobiliário, mas também demonstravam a preocupação da sociedade com as condições sanitárias.

O matadouro como propulsor da urbanização

Houve um crescente interesse por lotes após a inauguração do matadouro em Vila Mariana, e sua menção aparece como um atributo positivo para a venda. Nos jornais os anúncios se referiam a “um lindo corte de chácara à Rua do Matadouro” (A Província de São Paulo, 25/jan./1888) ou “grandes terrenos com frente para o matadouro, com grandes fundos, contendo abundante água corrente e apropriados para qualquer tipo de construção” (A Província de São Paulo, 01/jan./1888). O matadouro, seja porque trouxe a ferrovia, seja pelas possibilidades de emprego e comércio que se abriram, dinamizou o bairro e a urbanização se intensificou.

As atividades se proliferaram. Vieram os tripeiros, imigrantes italianos que comercializavam miúdos, e trouxeram suas comidas e costumes (MASSAROLO, 1971, p.51). Ao longo da via férrea havia vendas, floriculturas, marcenarias, curtumes, hotéis. No atual Largo Ana Rosa foi inaugurado em 1896 o edifício do Instituto Ana Rosa, entidade filantrópica fundada pelo Barão Francisco de Souza Queiroz. Mudou-se para lá o educador Carlos Petit e sua esposa, Dona Mariquinha, como era chamada, que era a professora do bairro. Figuras respeitáveis, como o engenheiro Alberto Kuhlmann e Conde Queirolo, sócio do Banco João Brícola, instalaram residência. Por volta de 1900 chegou a iluminação pública a gás nas ruas principais e a iluminação elétrica domiciliar. Em 1903 foi fundada e instalada na Rua José Antonio Coelho a escola alemã. Ampliou- se a linha de bondes até Pinheiros. Em 15 de março de 1900 a Light & Power comprou a Carris de Ferro de São Paulo a Santo Amaro. Em 1902 inaugura-se a linha de bondes elétricos Liberdade a Vila Mariana.

O Matadouro impulsionou e construção de moradias e possibilitou a dotação do bairro de infraestrutura. O aspecto rural das chácaras foi substituído pela urbanidade das construções. O elemento enjeitado pela cidade acelerou a urbanização e aproximou o distante bairro do centro civilizado.

A desativação do matadouro

A partir de 1897 se intensifica a fiscalização sobre a carne. Muitas reses e porcos eram rejeitados por estarem com tuberculose e um sistema de controle se estabeleceu para que se soubesse quando a carne havia sido abatida. Ela saía do matadouro com um carimbo que mudava a cada dia. Nos jornais eram publicadas quantas reses eram mortas e qual o carimbo do dia: um peixe, um cálice, uma estrela, etc. Essas medidas trouxeram à tona a questão da qualidade da carne consumida pela população paulistana, bem como a insalubridade do local do matadouro municipal e a necessidade de transferi-lo, novamente.

Em 1903 aparecem as primeiras câmaras frigoríficas e os defensores do congelamento da carne, como o Sr. Willian Fowles, que declarou no jornal O Estado de

S. Paulo em 27 de maio que “o frio é sem dúvida o melhor processo empregado para evitar a putrefação das carnes, permitindo seus transportes a grandes distâncias e conservação durante longos meses”. Willian Fowles expôs as vantagens da carne resfriada, pois estava interessado em instalar o Frigorífico Continental em Osasco, como de fato aconteceu. Em 1905 foi apresentado à “Câmara Municipal um projeto de lei que permite o comércio de carnes conservadas frescas, por meio de frio” (O Estado de S. Paulo, 06/dez./1905).

No frigorífico de Avaré foi instalada em 1906 a máquina frigorífica e passou-se a fazer o transporte da carne em vagões resfriados. O Frigorífico de Barretos foi inaugurado em 1913. Anúncios surgiram incentivando a população a consumir carne resfriada como o que dizia: “exija de seu açougueiro carne fresca da Continental”, frigorífico de Osasco, publicado no O Estado de S. Paulo em 15 de maio de 1922.

Assistimos nos primeiros anos do século XX uma mudança no comércio de carnes e a carne resfriada do interior passa a ser uma alternativa mais adequada. Ao mesmo tempo, as condições do matadouro de Vila Mariana não atendiam mais a nova demanda. Havia a necessidade de novas instalações, além das dificuldades de manter pastagens na cidade, o que provocou o início de seu declínio.

Ainda que a Câmara Municipal se empenhasse em construir um novo matadouro modelo, não conseguia reverter as vantagens do comércio de carnes resfriadas dos empreendedores privados, que resistiam às pressões das autoridades municipais. A

Câmara relutava contra a eminente perda da receita que esse comércio trazia aos cofres públicos.

Simultaneamente às polêmicas sobre o resfriamento da carne, a Vila Mariana nos anos 1920 se consolidava como um bairro urbanizado e residencial. Os moradores dos inúmeros núcleos residenciais se aborreciam com a proximidade do matadouro. Ao lado dos anúncios de bangalôs com jardim e garagem na Vila Mariana aparecia a reclamação da passagem pela Avenida Paulista de carroças transportando carne, que disputavam o espaço com os automóveis.

(...) vi passar dois caminhões desses, com o cocheiro do ensanguentado dos quartos de boi que recebeu do matadouro. Os automóveis de luxo, mais inúmeros hoje por ser domingo, iam caminhando atrás dos caminhões de carne verde. (...) não deixa de ser estranhável que se proíba a passagem dos enterros pela Avenida Paulista, e se tolerem os carroções de carne verde, tanto mais não existe açougue nenhum naquela opulenta via pública (O Estado de S.Paulo, 04/fev./1927).

A atividade praticada nos pastos de Barretos, Avaré e Osasco associada à técnica da refrigeração e com a aceitação do consumo de carne resfriada tornou o matadouro obsoleto. Em 08 de janeiro de 1928 a Prefeitura delibera o fechamento do Matadouro Municipal de Vila Mariana. As razões do fechamento foram praticamente as mesmas para sua instalação. O Matadouro, agora rodeado de construções, contribuiu para a urbanização da cidade e transformou o bairro de Vila Mariana em um local privilegiado pelo transporte, próximo do centro e da elegante Avenida Paulista, ocupado por residências de classe média e com um comércio ativo.

Conclusão

No caso de Vila Mariana, não houve uma ocupação predominantemente de cortiços que fossem alvo das ações da polícia fiscal do Serviço Sanitário. Neste caso, a ação de expurgo do elemento insalubre foi a dinâmica da cidade. A ampliação da cidade incorporou o Matadouro. Longe de ser um imprevisto, a urbanização do bairro pela instalação do Matadouro era desejada. A polêmica de sua instalação desde o século XIX mostrou que houve uma atitude consciente por parte dos empreendedores privados que conheciam o potencial urbanizador que o matadouro acarretaria. O engenheiro Kuhlmann e com ele os proprietários de lotes vislumbravam a possibilidade lucro na instalação da linha férrea, posteriormente linha de bondes. Desejavam atrair o matadouro, pois previam a possibilidade de lucro que isso lhes traria.

A construção do matadouro associada à ferrovia era um bom negócio, inclusive para os moradores da região. A região foi dotada de infraestrutura - bondes, iluminação e serviço de água e esgotos. A atividade que desordenava o espaço foi o que o disciplinou. Os loteamentos foram ocupados, construíram-se casas para moradia própria e para alugar. Constituiu-se um bairro dos setores médios: a Vila Mariana.

Bibliografia

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