Resumo

O primeiro governo Vargas (1930-1945) foi marcado por um amplo processo de modernização administrativa do Estado. Este trabalho pretende analisar alguns elementos dessa reforma do Estado, com foco nos marcos legais e institucionais voltados à autonomia municipal, principal reivindicação do movimento municipalista da época. Para tanto, partimos da hipótese de que essa reforma acompanhou as disputas em torno de dois projetos de Brasil: por um lado, as ações do governo federal contemplaram os anseios industrializantes de grupos econômicos e políticos, que viam no espaço urbano um elemento fundamental para sua efetivação; e, por outro, a perspectiva agrarista modernizadora gestada no âmbito de instituições pública voltadas ao controle do território e à modernização do Estado. Assim, “urbanismo” e “ruralismo” foram duas vertentes de um municipalismo que, na década de 1940, pautou decisivamente a agenda política brasileira.

Palavras-chave: reforma do Estado, municipalismo, urbanismo, ruralismo

Abstract

A broad process of state administrative modernization marked the first government Vargas (1930-1945). This paper aims to discuss some elements of the state reform, especially the legal and institutional frameworks focused on municipal autonomy, main demand of the municipalist movement. For this, we start from the hypothesis that this reform followed disputes over two Brazil's projects: firstly, the actions of the federal government contemplated the industrializing desires of economic and political groups, who saw the urban space a key element to its effectiveness; and, secondly, the modernizing agrarian perspective generated under territory control and state modernization public institutions. Thus, "urbanism" and "ruralism" were two sides to a municipalism that, in 1940s, decisively guided the Brazilian political agenda.

Keywords: state reform, municipalism, urbanism, ruralism

Introdução

A Depressão de 1929 gerou profundas instabilidades em terras brasileiras. A exportação de café – principal produto da economia nacional da época – foi sensivelmente prejudicada, o que demandou a intervenção do governo federal na tentativa de minimizar os efeitos da crise. Em meio às disputas de interesses dos grandes fazendeiros, o pleito eleitoral de 1930 acirrou as tensões econômicas e políticas e desencadeou a chamada Revolução de 30.

Mesmo derrotado nas eleições daquele ano, Getúlio Vargas assumiu a presidência do Brasil em 03 de novembro de 1930, representando interesses de grupos sociais, econômicos e políticos bastante diversos, unidos contra as oligarquias que comandaram o país durante a República Velha (1889-1930).

De acordo com Ianni (2009 [1971]), essa revolução proporcionou a substituição gradativa de um Estado oligárquico por um Estado burguês, marcado por um sistema de instituições políticas e econômicas e valores sociais e culturais que pretendia inserir o país em novos patamares do modo de produção capitalista. O primeiro governo Vargas (1930-1945) representou o início de uma forte intervenção estatal na economia e a adoção de um projeto de reforma e modernização administrativa do Estado, que não se restringia à escala nacional, alcançando os municípios em diversas questões. Vale ressaltar que esse período foi também de profunda centralização do poder nas mãos do executivo federal e de cerceamento de liberdades individuais, sociais e partidárias, caracterizando um momento na história do Brasil, como a literatura costuma chamar, de “modernização conservadora”.

Fruto de uma pesquisa de mestrado em andamento1, este trabalho pretende analisar alguns elementos da reforma de Estado empreendida durante o primeiro governo Vargas, com foco nos marcos legais e institucionais voltados à autonomia municipal, principal reivindicação do movimento municipalista da época2. Para tanto, partimos da hipótese de que essa reforma acompanhou as disputas em torno de dois projetos de Brasil. Por um lado, as ações do governo federal contemplaram os anseios industrializantes de grupos econômicos e políticos; e, por outro, a perspectiva agrarista modernizadora gestada no âmbito de instituições públicas, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Departamento de Administração do Serviço Público (DASP), voltadas à modernização do Estado.

No decorrer da investigação, fizemos revisão bibliográfica sobre a reforma do Estado realizada no primeiro governo Vargas e o movimento municipalista; levantamento dos marcos legais do período, como decretos-lei, leis e as próprias Constituições; e levantamento das instituições criadas na época para dar conta dos dois projetos de nação que se colocavam.

Este trabalho está dividido em quatro partes. Na primeira, apresentamos alguns elementos da reforma do Estado realizada no primeiro governo Vargas, como a criação de instituições e a promulgação de marcos legais, voltados à garantia da autonomia municipal; na segunda, mostramos a importância do IBGE para o movimento municipalista e sua perspectiva agrarista modernizadora; na terceira, apontamos alguns marcos do projeto urbano-industrial que se colocava para o país; e por fim, na quarta, traçamos algumas considerações sobre a discussão apresentada no texto.

A reforma do Estado no período Vargas: marcos legais e institucionais da autonomia municipal

Até 1934, Vargas governou sob um regime provisório à base de decretos que tinham força de lei. Devido à suspensão das garantias constitucionais de 1891 e do fechamento das casas legislativas, o período foi de muitas pressões, sobretudo dos grupos que pleiteavam a redemocratização do país. A fim de minimizar essas tensões, o governo federal promulgou o Código Eleitoral de 1932 – que tornou o voto no Brasil obrigatório, secreto e acessível a ambos os sexos – e convocou eleições para uma Assembleia Constituinte em 1933.

Durante o chamado “Governo Provisório” (1930-1934), a questão da autonomia municipal foi tratada em dois decretos, considerados por Feldman (2002) como determinantes. O primeiro – Decreto nº 19.398, de 11/11/1930 – extinguiu os órgãos executivos e legislativos e determinou que os governos municipais fossem nomeados pelos estados e que os prefeitos acumulassem as funções legislativas e executivas – sempre sob a tutela dos interventores estaduais. Já o segundo – Decreto nº 20.348, de 29/08/1931 – estabeleceu os conselhos consultivos nos estados, municípios e no Distrito Federal, e ainda instituiu normas de administração local. Com esse decreto, abria-se a possibilidade de participação política junto à administração municipal, ainda que de grupos previamente determinados.

A Constituição de 1934 apresentou inovações em relação à questão municipal, na medida em que estendeu aos municípios a competência nacional, até então bipartida entre a União e os estados. Assim, a autonomia dos municípios ficou garantida no que era de seu peculiar interesse, como a decretação de impostos e taxas, a arrecadação de suas rendas, a organização dos serviços de sua competência e a eletividade dos prefeitos e vereadores – salvo algumas exceções, como nas capitais e estâncias hidrominerais (Artigo 13 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16/07/1934). Além disso, a Carta Magna de 1934 inaugurou o sistema de partilha, a partir do qual os estados repassariam aos municípios metade dos impostos arrecadados de indústrias e profissões e o imposto de renda sobre a cédula rural. Aos estados também coube a criação de órgãos de assistência técnica à administração municipal e fiscalização das suas finanças.

Camargo (2008) aponta que essa autonomia atribuída aos municípios era parte de uma estratégia de centralização do poder, baseada no enfraquecimento dos poderes estaduais e na aproximação entre as esferas federal e municipal. Nas palavras do autor, a nova Constituição:

[...] introduziu novas franquias às municipalidades, assinalando uma tendência de ampliação do seu papel, ao garantir alguma autonomia, tornando-as menos vulneráveis ao jogo político-eleitoral dos estados e das oligarquias regionais. Parece-nos que já o governo constitucional de 1934 previa o planejamento de ações em âmbito nacional pela desconcentração do poder dos estados. Portanto, não se tratava de apostar no município como opção de desenvolvimento para o País, mas de uma questão de governabilidade. Na verdade, a revisão do pacto federativo entre as esferas de governo concorria para beneficiar o poder central. (CAMARGO, 2008, p. 39, grifo nosso).

Durante o primeiro governo Vargas, o tema do município ganhou tamanho destaque que superou a discussão federativa na negociação dos pactos sociais. Nessa perspectiva, Melo (1993) aponta que o municipalismo no período foi elevado à condição de princípio programático das elites governamentais e de peça importante de sua estratégia de nation building. Na Constituinte de 1934, por exemplo, o então ministro da Agricultura e presidente da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres3, Juarez Távora, propôs a organização do país como uma federação municipalista onde os estados cumpririam função de intermediação entre a União soberana e os municípios autônomos. Apesar de não vitoriosa, Camargo (2008, p. 39) aponta a proposta como “[...] um raro testemunho da centralidade do município para a nova administração federal, bem como da mobilização de personalidades e segmentos destacados do ruralismo em seu entorno.”

O município continuou em pauta quando da promulgação da Constituição de 1937, que vigorou durante a ditadura varguista. Ainda naquele ano, foram lançadas as candidaturas para as eleições previstas para 1938, mas em setembro de 1937, sob ameaça do suposto Plano Cohen4, o legislativo aprovou o estado de guerra, que culminou no fechamento do Congresso Nacional e na promulgação de uma nova Constituição, elaborada por Francisco Campos, em 10 de novembro do mesmo ano. Segundo o discurso de Vargas, o Estado Novo era uma consequência da Revolução de 1930, que pretendia unificar e modernizar o Brasil.

A garantia da unidade nacional, pretendida na Constituição de 1937, comprometeu a autonomia municipal conquistada pela Carta Magna anterior. Assim, os prefeitos voltaram a ser nomeados pelos interventores estaduais; as câmaras foram fechadas no início do Estado Novo – embora o texto constitucional mencione a eleição dos vereadores e o funcionamento das câmaras –; e os municípios passaram a receber recursos reduzidos dos estados. Na contramão desse cerceamento, as municipalidades continuaram a decidir sobre os serviços de interesse local (Artigos 26, 27 e 28 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10/11/1937).

Todavia, o mais importante e inédito, de acordo com Melo (1993), estava na concepção do município como “órgão constituinte dos poderes”. Desse modo, caberia aos municípios a criação de instituições e organismos de interesse municipal, como as Comissões de Planos das Cidades, claramente direcionadas aos espaços urbanos.

Em 1940, a promulgação do Decreto-lei nº 2.416, de 17/07/1940, estabeleceu normas de contabilidade e orçamento para os estados e municípios e ofereceu as bases jurídicas para a luta política em prol da autonomia financeira municipal, empreendida após o fim do governo Vargas. Segundo Melo (1993), essas incoerências em torno da autonomia municipal caracterizariam o paradoxo da ideologia municipalista do Estado Novo. Contudo, se analisado mais detalhadamente, esse paradoxo aparece para o autor como a principal estratégia de sustentação da centralização de poder nas mãos do governo federal:

Embora o projeto político das elites autoritárias da Era Vargas se caracterize por uma profunda centralização política, administrativa e financeira – e, portanto, contrária ao conceito de autonomia que é subjacente ao municipalismo –, ele se baseia numa concepção plebiscitária (Pitkin, 1967) e corporativa de representação política. Nessa concepção, o município – matriz básica da sociedade política – está orgânica e simbioticamente entrelaçado com o poder central. Sem mediações – de instâncias territoriais ou político-partidárias – que distorçam essa identidade de fins, a articulação entre os dois níveis está assegurada pela centralização, que aproxima e reúne os dois pólos. O município emerge, nessa perspectiva, como uma esfera comunitáriaportanto pré-política – que acomoda apenas a coletividade das famílias e seus valores ainda não distorcidos pelas instâncias de representação. Essa reunião entre os dois pólos, no entanto, é que permitiria a instauração da esfera pública sobre a ordem privada, particularista e não-comunitária [...]. (MELO, 1993, p. 4, grifos do autor).

As contradições da ideologia municipalista durante o Estado Novo dialogam com as disputas em torno dos projetos de nação que se pretendiam para o país. Por um lado, a manutenção da vocação agrária brasileira, muito fundamentada nas concepções de Alberto Torres e Oliveira Vianna, este último, inclusive, bastante influente na definição das políticas públicas do Estado Novo; e, por outro lado, o projeto industrializante, ainda incipiente no Brasil, que igualmente orientou muitas das ações do governo Vargas. Vale ressaltar que os dois projetos estavam presentes na reforma empreendida no período, que transformou as estruturas do poder estatal e a organização burocrática do país.

Nos termos de Ianni (2009 [1971]), a reforma partia da incorporação do pensamento tecnocrático e científico para melhorar o desempenho da administração pública, que deu origem a uma tecnoestrutura estatal, considerada pelo autor como um novo estágio do processo de amadurecimento do Estado capitalista. Segundo Draibe (1985), o princípio da reforma estava fundamentado em dois processos concomitantes: a centralização de comandos e a descentralização administrativa. A preocupação do Estado com a reforma era tão grande que foram criados organismos responsáveis por ela. O primeiro deles, o Conselho Federal do Serviço Público Civil (CFSPC), datado de 1936, pretendia atuar na organização do funcionalismo público (Lei nº 284, de 28/10/1936).

Em 1938, quase dois anos após sua fundação, o CFSPC deu lugar ao DASP, que além de funções relativas à contratação de funcionários por meio do sistema de mérito e à fiscalização orçamentária, a ele competia (Decreto-lei nº 579, de 30/07/1938):

a) o estado pormenorizado das repartições, departamentos e estabelecimentos públicos, com o fim de determinar, do ponto de vista da economia e eficiência, as modificações a serem feitas na organização dos serviços públicos, sua distribuição e agrupamentos, dotações orçamentárias, condições e processos de trabalho, relações de uns com os outros e com o público.

Assim, o Estado Novo pretendia transformar a administração pública em agente de modernização e criar uma elite burocrática desvinculada dos partidos para introduzir critérios de eficiência, economia e racionalidade. Nesse processo, o papel do DASP – baseado no modelo americano de administração, que teve sua origem nas Comissões de Eficiência do governo Hoover da década de 1920 – foi fundamental. Para Melo (1993), esse Departamento constituiu o elemento privilegiado do projeto modernizador, mas não foi a única instituição criada para esse fim.

Além do DASP, outros organismos foram decisivos na formação de tal elite burocrática, alguns deles claramente voltados às questões municipais, como é o caso do IBGE. Inclusive, Camargo (2008, p. 37) argumenta que “[...] as relações históricas entre o IBGE e a bandeira do municipalismo se confundem com a modernização do Estado brasileiro.”

O projeto agrarista: o papel do IBGE no municipalismo

A criação do IBGE5 e suas primeiras ações estão ligadas a dois líderes municipalistas: Mário Augusto Teixeira de Freitas e Rafael da Silva Xavier. No caso do primeiro, sua contribuição para o municipalismo é imprescindível, visto que influenciou a Constituição de 1937 no tocante à questão municipal. Segundo Santos (2008, p. 13-14), no IBGE, Teixeira de Freitas:

[...] animou uma campanha municipalista em todo o Brasil, visando a valorização dos municípios, que ele chamava de célula-mater da nação. Os Convênios Municipais propostos por Teixeira nada mais eram do que a tentativa de levar a organização administrativa a todas as cidades brasileiras, por conta da criação e instalação de uma Agência do IBGE em cada município. [...] O grande estatístico sempre defendeu um estreitamento nos laços entre a administração federal e a municipal.

A importância do município para o IBGE refletia-se na sua própria estrutura organizacional, quando da sua criação. Camargo (2008) mostra que, até a década de 1960, a entidade se subordinava diretamente à presidência da República. Através dos seus colegiados, o CNE e o CNG, o IBGE possuía autonomia para deliberar e elaborar sobre sua própria legislação. Assim, “[...] na estrutura de administração colegiada, os estados, os municípios e a União tinham paridade de representação na direção, numa clara estratégia de construir a nação a partir do município.” (CAMARGO, 2008, p. 39)

Durante o Estado Novo, inúmeras foram as ações do IBGE em prol do fortalecimento do papel dos municípios em detrimento dos poderes estaduais, como a uniformização das toponímias dos municípios e de seus respectivos mapas e a definição legal do que se constituiria como cidade e urbano (Decreto-lei nº 311, de 02/03/1938, conhecido como Lei geográfica do Estado Novo); a uniformização cartográfica em variadas escalas e de atualização da carta do Brasil ao milionésimo; e a arbitragem do CNG nas questões de limites interestaduais. De acordo com Camargo (2008, p. 42), o IBGE cumpriu papel de articulador do movimento municipalista no primeiro governo Vargas.

Do mesmo modo que a própria conjuntura política, a atuação do IBGE no período varguista foi marcada por contradições. Por um lado, devido ao peso da base municipal na formulação de políticas nacionais, o quadro técnico do Instituto se aproximava da via agrarista de modernização do Estado brasileiro que, através de instituições como a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres e a Sociedade Nacional de Agricultura, aproximava-se das velhas elites oligárquicas. Por outro lado, a perspectiva de organização do território se fundamentava na autonomia do município e no fortalecimento do poder central, reduzindo a influência das oligarquias regionais (CAMARGO, 2008).

A principal política do Estado Novo voltada aos anseios da elite burocrática de caráter agrarista foi a Marcha para o Oeste, de 1940, como apontado por Melo (1993) e Camargo (2008). Conforme os autores, o programa visava a “redenção do sertão”, na perspectiva de Alberto Torres, Oliveira Vianna e outros intelectuais. Assim, a integração nacional se daria a partir de colônias agrícolas criadas para ocupar o interior do território. Contudo, além de fixar o homem no campo – com o intuito de melhorar suas condições de vida, atender as necessidades de produção agrícola e manter o território defeso, já que o Brasil entrava na II Guerra Mundial (II GM) – a Marcha para o Oeste apresentava um viés industrializante, na medida em que pretendia interiorizar não só a população, como também as indústrias, o que não aconteceu – vide a concentração dos estabelecimentos industriais nos grandes centros urbanos. Mais uma vez, ficam evidentes as contradições que permearam o governo Vargas, conforme elucidam trechos de discursos proferidos pelo presidente em 1942:

O problema da ocupação econômica do nosso território é um postulado da própria criação do Estado nacional. Estamos fazendo a estruturação dos núcleos básicos do nosso crescimento, não apenas ao longo da faixa marítima, mas abrangendo a totalidade do País. E essa obra, que há de ser o maior título de glória da geração atual, porque significa unir e entrelaçar as forças vivas da Nação, retomou o sentido dos paralelos e renovou o lema bandeirante da marcha para o Oeste. O crescimento das nossas cidades tem se intensificado à medida que se desenvolvem as nossas indústrias. Essa evolução encerra, de par com os seus benefícios, perigos contra os quais devemos nos acautelar em tempo, refreando o urbanismo excessivo, que despovoa os campos e enfraquece a agricultura. Os novos estabelecimentos industriais deverão localizar-se, tanto quanto possível, nas proximidades das fontes produtoras de matérias-primas, em vez de procurar os grandes centros urbanos. Facilitarão, assim, a solução do problema das moradias saudáveis e baratas e o aprovisionamento, a preços baixos, dos gêneros necessários à alimentação. Precisamos considerar que, em países como o nosso, a prosperidade da indústria depende, diretamente, do rendimento das atividades rurais, pois que a maior ou menor capacidade de absorção do mercado interno para os produtos industriais resulta dos recursos auferidos na exploração do solo. Cuidando das nossas cidades, trabalhando para melhorá-las, modernizando-as e embelezando-as, não esqueçamos o campo, a terra, que a todos alimenta. (VARGAS, 1942a; 1942b apud IANNI, 2009 [1971], p. 69).

O projeto urbano-industrial: entre ações federais e municipais

Como a própria fala de Vargas apresentada no item anterior elucida, o projeto agrarista não era o único pretendido para o Brasil. Desde a República Velha, o país dava passos lentos em prol da industrialização, o que se intensificou após a Revolução de 1930. Para Ianni (2009 [1971]), esse momento significou a vitória, ainda que parcial, da cidade sobre o campo, na medida em que os setores burgueses mais fortes, apoiados nas forças militares e nas classes médias urbanas, passaram a controlar o poder político e a opinar nas decisões de política econômica, fortalecendo as classes sociais de mentalidade e interesses urbanos perante os grupos voltados à economia primário-exportadora.

Nessa perspectiva, o primeiro governo Vargas trabalhou para consolidar uma tecnoestrutura voltada à expansão e à complexificação da industrialização brasileira, que ocorria acompanhada por inúmeros problemas econômicos, financeiros, administrativos, tecnológicos e educacionais. De acordo com Draibe (1985), nesse período, foram criados órgãos destinados à instauração de políticas gerais, como os de regulação de câmbio, comércio exterior, crédito e seguros; à implantação de políticas de regulação e fomento a ramos específicos da produção e comercialização; à elaboração de políticas setoriais de recursos naturais; à resolução de problemas e proposição de diretrizes para os setores industriais; ao controle das relações entre capital e trabalho; e à organização de grandes áreas da atividade econômica ou de esferas mais abrangentes da ação estatal.

Perante à ossatura material constituída durante o Estado Novo, restaram poucas dúvidas para Draibe (1985, p. 100) “[...] sobre o fato de que, entre 1930 e 1945, no mesmo período em que se desencadeava a primeira fase da industrialização brasileira – a industrialização restringida –, amadurecia também um projeto de industrialização pesada.” No entanto, a mesma autora considera o projeto industrializante do período limitado, conforme os planos elaborados para tal finalidade. O primeiro deles, o Plano Especial de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa Nacional (Decreto-lei nº 1.059, de 19/01/1939), de 1939, foi elaborado pelo DASP e investiu cerca de 10% das receitas orçamentárias federais, por cinco anos, em transporte, siderurgia, petróleo, Fábrica Nacional de Motores e energia elétrica. O segundo plano, intitulado Plano de Obras e Equipamentos (Decreto-lei nº 6.145, de 29/12/1943), de 1943, também foi elaborado pelo DASP, em parceria com a Comissão de Orçamento do Ministério da Fazenda. Era uma continuidade do anterior, centrando investimentos na formação de capital social básico e na instalação e ampliação das indústrias de base.

Nas cidades onde as indústrias começaram a se instalar, a fim de atender ao desenvolvimento capitalista de base urbano-industrial, foi vital a reorganização do seu espaço intraurbano, sobretudo porque novos serviços públicos passaram a ser demandados. Devido à fragilidade política e técnica dos municípios durante o período Vargas, os governos municipais se favoreceram do quadro jurídico-institucional elaborado na escala federal para implantar o projeto de modernização do Estado Novo na esfera local. De acordo com Feldman (2002; 2008), dois tipos de instituição de urbanismo foram criadas. Ao nível dos governos estaduais, e por incentivo da Constituição de 1934, surgiram órgãos de assistência aos municípios, geralmente chamados de Departamento de Municipalidades. Inicialmente, objetivavam o controle e a assistência financeira, mas acabaram assumindo funções de regulação urbanística, especialmente dos municípios do interior.

Já no âmbito municipal, criaram-se as comissões consultivas para elaboração e execução de planos para as cidades, que envolviam representantes da sociedade civil, conforme o Decreto nº 20.348, de 1931, já mencionado. Geralmente, essas comissões restringiam-se às capitais. Apesar das diferentes pautas, os dois modelos de instituição colocavam a área urbana como objeto de intervenção dos urbanistas e de atenção das administrações municipais.

Considerações finais

Como apresentamos, o período Vargas foi marcado por inúmeras contradições. A este trabalho, interessa as que dizem respeito à questão municipal: ao mesmo tempo em que oferecia condições jurídicas e institucionais de autonomia aos municípios, o governo federal aumentava seu controle sobre a escala local, reduzindo o ação dos governos estaduais.

Juntamente com o movimento municipalista, dois projetos de nação eram pensados para o Brasil durante a década de 1930: um agrarista modernizador, gestado em instituições criadas para controle e conhecimento do território (IBGE) e modernização da estrutura administrativa (DASP); e outro urbano-industrial, centrado na atuação de departamentos e conselhos de caráter econômico, a nível federal, e de Comissões de Planos da Cidade e Departamentos de Municipalidades, a nível municipal.

Assim, “urbanismo” e “ruralismo” foram duas vertentes de um municipalismo que, nos anos 1940, tomou novo impulso após a promulgação da Constituição de 1946, desencadeando o que Melo (1993) chama de “municipalismo pragmático” da década de 1940.

Referências bibliográficas

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  1. O trabalho de mestrado a que se refere este artigo objetiva compreender o papel do Instituto brasileiro de Administração Municipal (IBAM) na formação de técnicos para o Planejamento Urbano no Brasil, a partir da experiência de um dos seus cursos: o Curso de Metodologia e Projetos de Desenvolvimento Urbano (CEMUAM), oferecido entre 1965 e 1988. Portanto, a discussão em torno da Reforma do Estado brasileiro no período Vargas e do movimento municipalista são fundamentais à pesquisa. 

  2. A ideologia municipalista brasileira surgiu na segunda metade do século XIX, vinculada a ideais de autonomia municipal e descentralização política e administrativa do Império. Durante a República Velha, o municipalismo associou-se ao ruralismo e assumiu um discurso antiurbano, a fim de recuperar a vocação agrária brasileira e conter o processo industrializante, o que se altera com a Revolução de 1930. 

  3. Alberto Torres foi um dos principais ideólogos da vocação agrária do Brasil, defendendo um Estado forte e centralizado para a manutenção da ordem social e a garantia do desenvolvimento da nação. A Sociedade dos Amigos de Alberto Torres foi fundada em 1932, no Rio de Janeiro, tendo como principal objetivo a discussão dos problemas nacionais à luz do pensamento de Alberto Torres. Abordava temas como a educação rural, a imigração e o aproveitamento dos recursos naturais. Dissolveu-se, provavelmente, em 1945. 

  4. Fausto (2012) considera a história do Plano Cohen bastante obscura, mas o reconhece como um suposto plano de insurreição comunista, datilografado dentro do Ministério da Guerra por um oficial integralista, que pretendia publicá-lo num boletim da Ação Integralista Brasileira (AIB), a fim de ilustrar como seria um levante comunista e como o movimento integralista responderia a ele. 

  5. A origem do IBGE está relacionada à fundação do Instituto Nacional de Estatística (INE), em 1934. Em 1937, no âmbito do próprio INE, foi instalado o Conselho Brasileiro de Geografia, sobretudo para atender as recomendações da União Geográfica Internacional (UGI). Finalmente, em janeiro de 1938, o INE foi reestruturado e deu origem ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, dirigido por dois órgãos colegiais, os Conselhos Nacionais de Estatística (CNE) e Geografia (CNG) (Decreto-lei nº 218, de 26/01/1938).