Resumo

O projeto de uma cidade nova contém em si a potência da intervenção sobre uma nova sociedade que se forma, diretamente influenciada pelo novo espaço que ocupa. Ao arquiteto criador do novo núcleo, cabe ao mesmo tempo a busca pela cidade ideal e as limitações impostas pelas condições sociais, econômicas e culturais impostas pelas condições reais de seu trabalho. Aos utópicos, do renascimento ao modernismo, a rigidez geométrica aparece como a expressão espacial da necessidade de suprimir o tempo e a transformação que, na cidade ideal, só podem conduzir à corrupção. Avesso à utopias mas, ao mesmo tempo, longe do conformismo, Joaquim Guedes faz de sua experiência no projeto da cidade nova de Caraíba uma investigação sobre as possibilidades do urbanismo diante de uma estratégia de equilíbrio dinâmico em uma cidade aberta que não pode nem deseja evitar sua própria transformação.

Palavras-chave: Joaquim Guedes, Caraíba, Cidades Novas, Cidades Ideais, Urbanismo

Abstract

The design of a new towns contains within it the power of intervention on a new society that forms directly influenced by the new space it occupies. It is up to the architect creator of the new core to search for the ideal city and simultaneously the constraints imposed by social, economic and cultural conditions imposed by the real conditions of their work. For those who are utopian, from Renaissance to Modernism, geometric stiffness appears as the spatial expression of need to eliminate the time and the transformation that in the ideal city can only lead to corruption. Averse to utopias but at the same time far from resignation .Joaquim Guedes makes his experience in the design of the new town called Caraíba an investigation into the possibilities of urbanism project on a strategy of dynamic equilibrium in an open city which may not even want to avoid its own transformation.

Keywords: Joaquim Guedes, Caraiba, New Towns, Ideal Cities, Urbanism

Corpo do Texto

Historicamente, a cidade se apresenta como um ambiente criado pelo homem a partir de suas necessidades e possibilidades, quase sempre em oposição à natureza selvagem, ora vista como caótica, ora vista como divina, que de qualquer modo deve permanecer apartada do espaço urbano. A cidade, criada e habitada pelo homem, surge como uma recriação da própria natureza e, logo, como a possibilidade da superação dos conflitos não apenas entre o homem e seu meio, mas também entre os próprios homens. Assim, a construção da cidade – especialmente de novas cidades - se torna um caminho para a realização de utopias, tanto física como socialmente estáveis. Ao participar da experiência de projetar uma cidade nova, também o arquiteto paulista Joaquim Guedes precisa, necessariamente, encontrar uma forma de relacionar-se com essas expectativas e, ao mesmo tempo, com as inevitáveis limitações que a realidade do fazer arquitetônico impõe. Ainda assim, encontra entre a perspectiva utópica e o pragmatismo conformista um caminho para guiar seu urbanismo. Declarado avesso à utopias e defensor do livre desenvolvimento das cidades, Guedes procura encontrar para as novas cidades um equilíbrio dinâmico capaz de através da inevitável e bem-vinda transformação.

A relação do homem com a cidade acompanha historicamente a relação do homem com o mundo natural em que habita. FEITOSA (2004) destaca, assim, três períodos distintos da relação entre homem e natureza no ocidente: a natureza da tradição grega aristotélica, composta por tudo o que tem em si mesmo a fonte de seus movimentos; a natureza pós revolução científica do século XVI, controlada como fonte de matéria prima e energia para produção e consumo em um paraíso tecnológico idealizado como os retratados em Utopia (1516) de Tomas Morus ou Nova Atlântida (1478-1535) de Francis Bacon e, a natureza pós segunda guerra mundial, permeada de cenários catastróficos ou distopias como as apresentadas em Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, 1984 (1948), de George Orwell ou o filme Blade Runner (1982), de Ridley Scott.

O projeto de cidades novas após o renascimento carrega em si o desejo utópico da construção da cidade ideal, o que corresponderia à criação de uma sociedade ideal, como ilustram os projetos e tratados de urbanismo de Leonardo da Vinci, Alberti ou Filarete, que procuram uma cidade modelo perfeita tanto em seus edifícios quanto em suas instituições (Figura 2). Influenciada pelo neoplatonismo renascentista, a perfeição política só poderia corresponder a perfeição matemática da forma geométrica. Para ARGAN (1998), a ciência urbanística de Alberti é tipicamente humanista, ou seja, baseada no domínio do furor irracional da natureza pela racionalidade humana. A geometria aparece, assim, sob o posicionamento do arquiteto-demiurgo que carrega o ato da criação urbanística com uma carga ideológica oculta sob o discurso do próprio urbanismo como ciência, ou ainda como técnica ou arte. Segundo SICA (1977, p. 72), o antropocentrismo alterou as relações entre realidade e ideal, fazendo surgir a utopia da cidade e do Estado “como produto de una forma mentis que quiere crear verdades capaces de guiar, o juzgar, a la historia.” A cidade ideal divina torna-se, agora, obra humana, baseada no sentido de consciência civil e identificada política e culturalmente com a pólis grega apresentada na República de Platão. Para GARIN (1996, p.60), o pensamento urbanístico da renascença resulta de um encontro matemático entre beleza e funcionalidade como um tipo de busca da razão difusa que existe no seio de toda a Natureza:

Alguém que, além do urbanismo e da arquitetura em geral, examinasse a concepção filosófica da natureza presente num Alberti ou num Da Vinci, encontraria muitas analogias entre os dois artistas, justamente na idéia comum de (λόγι), de “razões seminais”, de leis matemáticas imanentes, que o homem descobre no fundo do ser para inserir entre as coisas naturais as próprias obras (...). Homem e natureza, razão humana e lei natural, integram-se reciprocamente; e a cidade construída segundo a razão e na medida do homem, mas também a cidade que corresponde perfeitamente à natureza no homem.

Cidade Ideal Renascenca, MARTINI ou
LAURANA{width=”5.770833333333333in” height=”6.125in”}

Figura . Três painéis retratando a cidade ideal renascentista, atribuídos a Luciano Laurana ou Giorgio Martini – ou ainda a Fra Carnevale, Piero della Franchesca ou Alberti. Óleo e têmpera sobre madeira, 0,60 x 2m, 0,78 x 2,17m e 1,24 x 2,34m respectivamente. Fonte: WIKIMEDIA, 2013.

FILARETE,
Sforzinda{width=”5.208333333333333in” height=”4.604166666666667in”}

Figura . Sforzinda de Filarete. Fonte: BENEVOLO, 2003.

Assim, o desafio de se projetar novas cidades estimula o desejo da utopia, que se torna uma de suas características mais fortes e fortalece a posição demiúrgica do arquiteto-criador, cujo traço possui a potência de conduzir o destino da cidade e seus moradores. Sobre isso, segundo GUEDES (1981, p.8):

Somente quem já teve alguma vez a oportunidade de traçar o primeiro risco de uma obra, edifício (não importa o tamanho) ou cidade, conhece a gravidade, a densidade, os significados, os compromissos e a invenção existentes num simples traço sobre o papel.

Risco e traço aqui querem dizer idéias, números, conceitos, realidades, vida.

O urbanismo modernista não rompe essa tradição, também carregando alta dose da utopia renascentista como observamos nas propostas de Le Corbusier ou Lúcio Costa, por exemplo. Essa herança pode ser detectada na própria imagem profissional do arquiteto, que não se restringe a um técnico da construção apenas, mas coloca-se sobretudo como um pensador, humanista versado nas artes e em diferentes assuntos.

Particularmente na primeira metade do século XX, este humanismo deposita suas esperanças no desenvolvimento científico e tecnológico que, natural e forçosamente, conduziriam o homem ao bem estar físico e social como imposição de seu processo normal de evolução. Em O Novo Humanismo Científico e Tecnológico, artigo de Lúcio COSTA (1997, p.393) escrito em 1961, diz o autor:

Os homens de ciência e, de um modo geral, os donos da tecnologia, presos cada qual ao campo restrito do respectivo domínio, subestimam o seu valor conjunto. Serão eles, no entanto, que levarão afinal a humanidade de volta ao “paraíso perdido”.

Para Costa, o processo tecnológico acabará por reconciliar opostos e resolver dilemas entre, por exemplo, individualismo e coletivismo, arte autônoma e arte social e, por fim, o dualismo arquitetônico entre as tradições orgânico-funcional e plástico-ideal (Figura 3), flor e cristal, expressas pelos eixos nórdico-oriental e mesopotâmio-mediterrâneo como já defendido em Considerações sobre arte contemporânea, quando afirma o caráter sintético da arquitetura moderna (COSTA, 1997, p.247):

É na fusão desses dois conceitos, quando o jogo de formas livremente delineadas ou geometricamente definidas se processa espontâneo ou intencional – ora derramadas, ora contidas -, que se escondem a sedução e as possibilidades virtuais ilimitadas da arquitetura moderna.

LUCIO COSTA, Eixos historia da
arte{width=”5.760416666666667in” height=”4.322916666666667in”}

Figura . Diagrama dos eixos Nordico-Oriental e Mesopotamio-Mediterrâneo na história da arte e da arquitetura.

Nos projetos de Le Corbusier e de Costa verifica-se uma natureza utópica, em seu aspecto conciliador, estável e definitivo, uma síntese dos processos históricos que lhe precederam. A supressão da dimensão temporal das cidades, característica da construção da utopia, implica em modelo sintético que não pode ser transformado sem ser corrompido, condição essa que aborta consequentemente as diferenças e os conflitos que historicamente colocam a cidade em incessante movimento, atrelando a estagnação física à social e vice-versa.

Assim como houvera sido na Atlântida platônica, nas cidades-fortaleza renascentistas ou nos modelos dos chamados socialistas utópicos no século XIX, também a utopia modernista se encaminha para a perfeição geométrica como sua expressão formal. A linha reta das tramas axiais e a regularidade das unidades de habitação se desdobram no retângulo áureo estabelecido por Corbusier para a Cidade Contemporânea para 3 Milhões de Habitantes (Figura 3), percebido apenas a voo de pássaro, ou então pelo arquiteto criador diante da prancheta. Protegido por uma grande área verde não edificada - o retângulo - forma fechada expressa a imutabilidade da cidade: qualquer acréscimo ou retirada só pode resultar na corrupção da regularidade física e social da utopia.

LE CORBUSIER Ville Contemporaine
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Figura . Cidade Conemporânea para 3 Milhões de Habitantes, de Le Corbusier. (Fonte: LE CORBUSIER, 2000)

De fato, Lúcio Costa considera um equívoco a leitura recorrente que relaciona a forma geométrica corbusieana à metáfora mecanicista antinatural, normalmente em oposição ao desenho orgânico de Frank Lloyd Wright, posição compartilhada por MONTANER (2008) para quem as formas geométricas, citando Jorge Wagensberg e D’Arcy Thompson, são as formas fundamentais não apenas das máquinas, mas também das estruturas da natureza, de modo que não podem ser fundamentais para este tipo de classificação de projetos arquitetônicos ou urbanísticos mas sim sua capacidade orgânica de crescer e transformar-se e com a libertação de suas energias naturais externas e libidinais internas.

É a imobilidade, e não a geometria, portanto, o argumento capaz de colocar Corbusier em uma posição distante do chamado organicismo. Lembremo-nos da adoção também por Howard da forma geométrica como referencial em sua proposta para as cidades jardins (Figura 5). No entanto, há diferenças fundamentais: em primeiro lugar, a constelação de núcleos circulares do esquema visava justamente uma articulação dinâmica entre eles, extraindo do modelo exatamente sua capacidade de crescimento e não sua imobilidade. Além disso, embora constituindo um esquema fundamental, o que se viu foi que as cidades-jardim construídas puderam se adaptar livremente ao sítio sem abdicar dos princípios de sua composição.

HOWARD, Esquemas cidade
jardim{width=”5.760416666666667in” height=”4.166666666666667in”}

Figura . Esquema das cidades-jardim de Howard. Fonte: HOWARD, 1996 e PRUDON, 1949.

Quando Joaquim Guedes projetou Caraíba, hoje Núcleo do Pilar, uma company town para a mineração de cobre no sertão da Bahia, viu-se frente ao desafio de fazer nascer uma cidade do nada, isolada, marcada pela forte presença de uma empresa, numa região de clima hostil, com 75% da população de origem rural, a maioria analfabeta, ganhando menos de três salários mínimos, vivendo em um ambiente de trabalho intenso com forte tendência à segregação social e espacial.

Caraíba{width=”5.760416666666667in” height=”2.9375in”}

Figura . Planta baixa da cidade de Caraíba, hoje Núcleo do Pilar (distrito de Jaguarari), de Joaquim Guedes. Fonte: CAMARGO, 2000.

As condições naturais para a implantação desse núcleo, conforme descrito por GUEDES (1981), eram pouco amigáveis: vegetação característica da caatinga, bela porém pouca e árida, clima seco e com altas temperaturas, especialmente durante o dia, minimamente atenuadas pelos ventos SE e E. Caraíba, afinal, como todas as cidades, tinha o desafio de dominar e recriar a natureza a fim de possibilitar a fixação do homem naquele local. Ao contrário destas difíceis condições, a cidade imaginária de Le Corbusier não encontra nenhuma dificuldade geográfica maior do que uma suposta trajetória solar que sequer é alterada pela desconhecida latitude do plano. Não há falta ou excesso de umidade ou calor ou qualquer acidente geográfico, a não ser pelo rio convenientemente colocado à margem da cidade junto à zona industrial para o escoamento da produção. Diferentemente, as dificuldades geográficas e ambientais de Caraíba estão presentes desde a escolha do local para a construção da cidade, que deveria estar protegido da bacia de rejeitos da mina de cobre, cujos trabalhadores a cidade deveria abrigar. A natureza marca também as previsões para o desenvolvimento econômico da região. O solo pobre descarta a agricultura como possibilidade de desenvolvimento futuro, considerada por Guedes como uma alternativa inviável à manutenção econômica do núcleo urbano no caso de esgotamento da mina de cobre – ameaça prevista para as primeiras décadas após a fundação, mas até os dias de hoje não se concretizou.

Guedes reconhece que o desenvolvimento tecnológico, fruto da inteligência humana é capaz de dominar a natureza e reverter a situação: é possível irrigar o sertão e fazê-lo fértil. No entanto, se a técnica existe, a utopia encontra a realidade inviabilizada pelo custo de sua implantação. Assim, declarando-se avesso a utopias, Guedes questiona se o arquiteto deve projetar uma nova cidade imaginando que dispõe de técnicas que não pode realmente implantar, tradições que não pode superar ou imaginando que não exista sobre o solo, por exemplo, as linhas que demarcam a propriedade privada?

Se projetar uma cidade mineira sem classes é ilusório, ingênuo e anti-histórico em nossa realidade, quais seriam hoje os critérios capazes de definir a forma urbana, expressando positivamente e criativamente suas hierarquias e conflitos, seus caminhos de transformação? (GUEDES, 1981, p.235):

Ao ter a consciência de que não pode construir a utopia, os caminhos de transformação são, para Guedes, a forma pela qual a própria cidade pode definir os caminhos de sua direção. Guedes retira, assim, a potência demiúrgica do profissional arquiteto, colocando-o como um agente entre muitos da constituição da cidade, papel inicial que deve ser gradual mas inevitavelmente substituído pela dinâmica da própria cidade que, viva, se transformará segundo seus próprios desígnios.

De fato, Guedes já havia demonstrado entendimento semelhante quando, recém-formado, apresentou proposta para o Plano Piloto de Brasília com o grupo STAM, em 1957. A ideia de que Brasília deveria constituir-se em uma cidade aberta, de crescimento natural e libertada da exclusiva função administrativa causou, segundo GUEDES (1972), a desclassificação do projeto. De fato, o vencedor do concurso, Lúcio Costa, era resistente ao crescimento e à transformação da cidade, defendendo rigidamente a manutenção do seu desenho. COSTA (1997) propõe, por exemplo, que no caso da instalação de painéis luminosos em área próxima ao eixo monumental, outros painéis deveriam ser instalados no lado oposto a fim de reestabelecer a simetria da paisagem (Figura 8). Como comentamos anteriormente, essa rigidez formal corresponde a uma imaginada estabilidade/rigidez social, ilusória, cuja maior consequência foi o crescimento desordenado das cidades satélite.

JOAQUIM GUEDES Brasilia Croqui
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Figura . Esquema para o crescimento de Brasília conforme projeto do grupo STAM. Fonte: Acervo pessoal de Teca Guedes.

LUCIO COSTA, Simetria de
Brasilia{width=”5.760416666666667in” height=”4.322916666666667in”}

Figura . Fotografia de Brasília apresentada por Lúcio Costa com a legenda: “Como se pode ver, já é mais que tempo de providenciar os painéis luminosos do lado sul, restabelecendo assim a simetria proposta no Plano Piloto.” Fonte: COSTA, 1997.

Entendemos que a renúncia à utopia resulta, portanto, na desconstrução da forma pura. As gradativas transformações sociais não podem se restringir à harmonia alcançada por um desenho monopolizado por um único criador. Tanto o retângulo áureo corbusieano como os eixos de Lúcio Costa denunciam qualquer acréscimo ou subtração ao plano original que não esteja devidamente incorporado à figura geométrica ideal. Em sua perfeição geométrica, qualquer alteração ao retângulo só pode representar a corrupção de sua forma tanto física quanto social. A cidade geométrica não é feita para se transformar, quando muito pode se multiplicar.

Em seus estudos para Caraíba, Guedes utiliza-se inicialmente do retângulo como base para a distribuição dos elementos (Figura 9). Define os eixos principais, norte-sul e leste-oeste, a grande praça central e o sistema de praças menores que desde os primeiros croquis condicionam o projeto. No entanto, em determinado momento e sem explicação aparente, Guedes simplesmente desfaz o retângulo, adicionando e removendo quadras, e introduz uma longa curva ao norte, que resulta em uma conformação urbana distinta da anterior (Figura 6). Apesar da malha em grelha, não mais se inscreve em uma forma geométrica rígida.

GUEDES, Caraiba
croqui{width=”5.760416666666667in” height=”2.8645833333333335in”}

Figura . Croqui de Guedes mostrando uma Caraíba retangular. Fonte. GUEDES, 1982.

A opção pela forma geométrica pode ser facilmente justificável, quase autoexplicativa. Realmente, ela sintetiza alguns conceitos fundamentais sobre os quais se estrutura a própria ideia de cidade. O primeiro deles é a relação entre centro e limite, que está expresso, segundo TREVISAN (2009), desde o antigo hieróglifo egípcio para cidade: um círculo dividido por dois eixos que se encontram em seu centro.

Hieroglifo
Cidade{width=”5.760416666666667in” height=”4.354166666666667in”}

Figura . Hieroglifo egípcio para cidade. Fonte: TREVISAN, 2009.

Centro e limite configuram e determinam originalmente, no desenho da cidade, a relação entre esta – e o homem, seu construtor – e a natureza. A acrópole grega, monte dedicado aos templos mais importantes, ou o mundus romano, cova aberta no encontro entre cardo e o decumanus maximus onde o áugure, o fundador da nova cidade, depositando um punhado da terra natal tomava posse da nova terra instituindo um santuário em homenagem aos manes, os espíritos dos antepassados são expressões do axis mundi, o eixo vertical que liga o plano terreno aos planos superiores ou inferiores. Esses eixos possuem um papel fundamental na medida em que representam a nova conexão entre a natureza usurpada e transformada pelo homem na cidade e os deuses que dela devem novamente tomar posse. Da mesma forma, a muralha aparece como a expressão da necessidade de um limite identificável com a natureza. Tão sagradas quanto o centro, a acrópole ou o mundus, a muralha também era palco de seus próprios rituais sagrados. Assim, para SICA (1977) a função da muralha não é apenas a proteção contra inimigos externos, mas também a contenção do crescimento da cidade a fim de evitar a contaminação de sua ordem pelo caos natural. Segundo PERULLI (2012), a lira era o sulco que delimitava a cidade que, se fosse infinita, perderia completamente o sentido de modo que delirar significa estar fora dos limites da cidade, vagando sem rumo algum na natureza infinita que, portanto, não pode oferecer referência alguma. Um dos desafios da cidade moderna consiste em lidar com a dissolução desses limites, cada vez mais imprecisos e fluidos.

Dessa forma, a estratégia de Guedes em desfazer o retângulo inicial procura enfraquecer os limites da cidade, neste caso, como contenção. Ao romper com a rigidez geométrica, Guedes indica desde cedo seu desejo de que a cidade se transforme conforme o desejo de seus habitantes, viva, cresça e se expanda libertando-se não apenas da mina de cobre como única fonte de renda mas também de seu arquiteto criador.

Quando Guedes imagina uma Caraíba aberta, não limita-se a uma abertura interna, mas também às cidades vizinhas, sendo este um dos princípios que norteiam o projeto. Sendo a região carente de quase todo o tipo de infraestrutura, o núcleo é imaginado como um difusor desses serviços o que, segundo depoimento de MANINI (2013), levou Guedes a posicionar o hospital e a escola de 2º grau junto o eixo principal de entrada na cidade, por exemplo, de modo a torna-lo acessível aos habitantes das cidades próximas. Caraíba é, assim, não apenas um núcleo urbano, mas também um difusor de serviços e progresso para toda a região.

Parte dessa estratégia é absorvida das influências dos teóricos ingleses, especialmente do biólogo Patrick Geddes que, como afirma o próprio GUEDES (1972), deu ao urbanismo a condição de complexidade e interdisciplinaridade em oposição à tendência moderna da especialização. São importantes também as experiências de Guedes nas pesquisas sociais e demográficas desenvolvidas na SAGMACS do padre Lebret, por quem Guedes nutria profunda admiração e por quem chegou a cursar, por um período, o curso de sociologia como ferramenta para uma percepção mais completa da cidade. Graças a essas experiências, Guedes é capaz de ampliar o modelo modernista em favor de uma resposta ao mesmo tempo mais possível e menos definitiva. Assim, observa-se que a aversão às utopias não pode ser em momento algum confundida, em Guedes, com conformismo. Ao contrário, o arquiteto possui uma visão bastante particular sobre o papel de seu urbanismo na construção dinâmica, e não estática, do progresso e do futuro, escapando às tentações misóginas e totalitárias tão comuns aos utopistas.

Referências bibliográficas

ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

COSTA, Lúcio. Registro de Uma Vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1997. 2ª ed.

FEITOSA, Charles. Explicando a Filosofia com Arte. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. 2ª reimp.

GARIN, Eugenio. Ciência e vida civil no Renascimento italiano. São Paulo: Unesp, 1996.

GUEDES Sobrinho, Joaquim Manoel. Considerações sobre planejamento urbano, a propósito do Plano de Ação Imediata de Porto Velho. Tese de Doutoramento – Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, 1972.

__________. Um projeto e seus caminhos. Tese de Livre Docência

  • Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP, São Paulo, julho de 1981.

MANINI, Luiz. Depoimento [jun. 2013]. Entrevistadores: Mônica Junqueira de Camargo, Rogério Penna Quintanilha e Gabriele Rodrigues Pereira. São Paulo: s/ ed., 2013.

MONTANER, Josep Maria. Sistemas arquitectónicos contemporâneos. Barcelona: Gustavo Gili, 2008.

PERULLI, Paolo. Visões da Cidade. São Paulo: SENAC, 2012.

SICA, Paolo. La imagem de la ciudad. De Esparta a Las Vegas. Barcelona: Gustavo Gili, 1977.

TREVISAN, Ricardo. Cidades Novas. Tese de Doutorado – Programa de Pesquisa e Pís-Graduação – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. Brasília, 2009.