Resumo

O presente artigo traz reflexões a respeito da representação dos meios urbano e rural no romance de Thomas Hardy Far from the Madding Crowd (“Longe da Multidão Estulta”), publicado em 1874. Thomas Hardy foi um escritor inglês que viveu de 1840 a 1928 e publicou romances entre os anos de 1871 e 1895. O artigo desenvolve a questão do uso da literatura como fonte histórica das representações elaboradas em uma época. Apresentam-se as mudanças ocorridas no campo e na cidade no período e as relações estabelecidas entre eles como consequências dessas transformações. São discutidas as representações dessas espacialidades e como o escritor estabelece mediações entre elas. O romance de Thomas Hardy, apesar de aparentemente colocar o campo e a cidade em regime de oposição, também os aproxima. Encontramos nele dois níveis de representação, um, do imaginário do rural e do urbano predominante na época, e outro, a visão do próprio autor a respeito dessas concepções. São encontradas na obra representações da cidade através do olhar do campo, bem como as concepções do último pela primeira.

Palavras-chave: representação, rural, urbano, literatura, Thomas Hardy

Abstract

This article examines the representations of the urban and rural environments Thomas Hardy’s novel Far from the Madding Crowd, first published in 1874. Thomas Hardy was an English writer who lived from 1849 to 1928 and published novels between 1871 and 1895. Throughout the article, the use of literature as a historical source of the representations created in a given time is explored. The changes which then had been taking place in the country and in towns and cities, and how they shaped the relations between them, are presented. The representations of the rural and urban environments are discussed, and well as how the writer mediates them. Hardy’s novel, even though it seems to oppose country and town, also brings them together. In it, there are two levels of representation, that of the age’s predominant conception of the rural and urban environments, and that of the writer’s own view on such notions.

Thus, the novel reveals both representations of the urban as seen by the rural environment, and the latter as seen by the former.

Keywords: representation, rural, urban, literature, Thomas Hardy

Introdução

O presente artigo traz reflexões a respeito da representação dos meios urbano e rural no romance de Thomas Hardy Far from the Madding Crowd (“Longe da Multidão Estulta”1). Thomas Hardy foi um escritor inglês que viveu de 1840 a 1928, nascido em Dorset, no sul da Inglaterra. Filho de um construtor, Hardy estudou até os dezesseis anos e depois se tornou um arquiteto profissional (WILLIAMS, 1974),

pertencendo, assim, à móvel e instável classe média-baixa rural (EAGLETON, 2005). Entre os anos de 1871 e 1895, publicou romances, sendo Desperate Remedies (“Remédios Desesperados”) o primeiro e Jude the Obscure (“Judas, o Obscuro"), o último. A partir de então, publicou exclusivamente poesias, a cuja produção se dedicara ao longo de toda sua vida.

De acordo com Linda M. Shires (2008), em 1872, o editor da revista Cornhill encomendou um romance a Hardy, que seria publicado na forma seriada. Em 1874, Far from the Madding Crowd foi publicado, sendo considerado como sua primeira grande obra. Em razão do público da revista, o escritor foi submetido a censura conservadora por parte de seu editor.

Far from the Madding Crowd foi o primeiro romance em que Hardy fez uso do termo “Wessex”, designando uma região localizada no sudoeste inglês, onde o escritor situou boa parte de seus romances. No prefácio da obra, explica tratar-se do nome de um distrito existente no passado anglo-saxão inglês, porém inserido no moderno contexto vitoriano. O escritor a descreve como uma região semirreal e semi- imaginária, que confere uma unidade territorial abrangente aos seus romances (HARDY, 2008). Assim, os sítios em que se passam as histórias possuem correspondência no território inglês, porém Hardy altera o nome de várias aldeias e cidades, assim como o fez com a região, o que lhe confere liberdade e licença imaginativa (SHIRES, 2008). No romance objeto deste trabalho, a história se passa nas aldeias Norcombe e Weatherbury e na cidade rural Casterbridge, as três de nomes fictícios. Porém, são feitas referências a Bath e Londres, cidades de maior escala existentes da Inglaterra.

Apesar de ter sido, conforme aponta Raymond Williams, o escritor do século XIX que foi recebido mais amargamente, a crítica a Hardy por muito tempo o elogiou por escrever belos romances pastorais que constituem “a última voz de uma antiga civilização rural” (WILLIAMS, 1974, p. 79-802). Avalia que tal “elogio”, na verdade, reduz a qualidade do trabalho de Hardy e distancia temporalmente o conteúdo de sua

narrativa da nossa realidade, uma vez que, de fato, os sentimentos e ideias sobre que Hardy escreve são complexos e persistem até a atualidade.

Ao longo do artigo, serão desenvolvidas as questões do uso da literatura como fonte histórica das representações e do imaginário de uma época; apresentadas as mudanças ocorridas nos meios urbano e rural no período, e as relações estabelecidas entre eles como consequências dessas transformações; por fim, serão discutidas as representações dessas espacialidades em Far from the Madding Crowd, e como o escritor faz a mediação entre elas.

Literatura como fonte histórica de representações: o imaginário do rural e do urbano

Este trabalho segue a definição de Antonio Candido de Mello e Souza (2000, p. 162). de literatura como “uma reorganização do mundo em termos de arte”. O resultado é uma estrutura literária que “repousa sobre a organização formal de certas representações mentais, condicionadas pela sociedade em que a obra foi escrita.

Devemos levar em conta, pois, um nível de realidade e um nível de elaboração da realidade” (CANDIDO, 2000, p. 153).

Assim, a literatura mantém um vínculo com a realidade, na medida em que constitui

uma forma de representação desta. Sandra Jatahy Pesavento (2003) aponta que a literatura se apresenta como fonte diferenciada quando o que se procura atingir é a representação, a sensibilidade, a significação do mundo passadas, tomando-a não como uma sucessão de fatos fictícios narrados, mas como testemunho da época da escrita. Acrescenta:

A Literatura permite acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela dá a ver sensibilidades, perfis, valores. Ela representa o real, ela é fonte privilegiada para a leitura do imaginário. (PESAVENTO, 2003, p. 82-83)

A autora define imaginário como um “sistema de idéias e imagens de representação coletiva, que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo” (PESAVENTO, 2003, p. 43). O objeto de estudo deste artigo é o imaginário construído a respeito dos meios urbano e rural no romance Far from the Madding Crowd, enquanto conjunto de ideias e imagens que a sociedade da época criou e compartilhou a respeito dos mesmos, de modo a conferir sentido e significado às experiências vividas em cada um.

Como o imaginário consiste em uma forma de representação, é necessário atentar às características que disso decorrem. Pesavento, ao trabalhar a natureza das representações, tendo como referência os pensadores Mauss e Durkheim, estabelece que “A representação não é uma cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele” (PESAVENTO, 2003, p. 40). Ela acrescenta que “As representações se inserem em regimes de verossimilhança e de credibilidade, e não de veracidade” (PESAVENTO, 2003, p. 41).

De acordo com Bruno Jean (2006), os processos de construção social da ruralidade, que definem o significado do mundo rural em um momento dado, demarcam uma maneira eficiente de abordar as “representações da ruralidade”. Possibilitam o aprofundamento sobre as representações frente a questões relativas ao desenvolvimento e às praticas sociais e institucionais próprias do território rural. Para o autor, a dualidade rural-urbano, pensada como uma dicotomia entre “tradicional e moderno” encontra no discurso sociológico e na história cultural um campo diverso de abordagens. O artigo aborda essa dualidade procurando perceber suas relações e aproximações, discutindo como um meio percebe e representa o outro.

Cidade e campo como protagonistas de mudanças: as relações entre o rural e o urbano

Principalmente a partir do século XVIII, a Revolução Industrial e a consequente modernização socioeconômica propiciam uma alteração mais evidenciada na maneira de viver das populações rurais e urbanas no mundo ocidental. Na Grã- Bretanha, por exemplo, o processo de industrialização tem como "partida" o período situado entre 1780 e 1840, caracterizado principalmente pela construção das ferrovias e pela constituição da indústria pesada. Em uma época de intensas transformações, as cidades atraíram os camponeses e artesãos que viviam no ambiente rural, e essas se tornaram cada vez maiores e mais importantes. (HOBSBAWM, 1981).

Segundo Eric J. Hobsbawm (1981), em termos de tecnologia e de investimento de capital, as mudanças no âmbito rural foram um pouco modestas até a década de 1840.

Nesse período, a ciência e a engenharia agrícolas atingiram a maturidade. Registra que houve o aumento substantivo na produção e nas atividades agrícolas britânicas na década de 1830. Destinada ao consumo de uma população de duas a três vezes maior que a de meados do século XVIII, esse aumento da produção apenas foi possível pela adoção geral de métodos descobertos no início do século XIX.

As transformações do período registram o resultado de uma mudança de atitude perante a terra, que é considerada local de produção integrada à lógica capitalista da rentabilidade e da previsibilidade (REMY & VOYÉ, 1974). Os autores analisam que a economia, ao estar ancorada na mecanização da produção agrícola e no incremento da mobilidade, propiciou, entre outros fatores, um estreitamento do território e uma explosão do espaço em atividades diversas. Além da mudança da escala das práticas cotidianas da sociedade, ocasionada pelos meios de trabalho e de transporte, a estrutura espacial também se redefine tendo em vista a articulação com a cidade e sua força de centralidade (LEFÈBVRE, 2002). O resultado é uma sobreposição imprecisa em termos de representação coletiva nas sociedades rural e urbana.

Segundo João Ferrão (2000, p. 45),

Na realidade, a emergência de uma nova sociedade urbano- industrial acarretou duas consequências principais para as áreas rurais. Por um lado, inicia-se um acentuado processo de perda de centralidade económica, social e simbólica por parte do mundo rural. Por outro lado, este tende a ser globalmente identificado com realidades arcaicas, enquanto as aglomerações urbano-industriais são vistas como o palco, por excelência, do progresso.

Por volta de 1850, a população urbana britânica já superava a rural, mas os vestígios socioculturais do segundo ainda podiam ser identificados no primeiro. De acordo com Williams (2011), as mudanças e a reinterpretação dos costumes e mesmo de modos de vida se evidenciavam na cidade condicionada pela égide do capital. Na medida em que a produção e as condições de vida no ambiente rural também se modernizavam, os costumes e mesmo as tradições locais tiveram sua representações redefinidas.

As mudanças dos costumes e tradições locais são marcadas pelo “problema da relação entre modos de vida tradicional [costumary] e culta [educated], entre os sentimentos e pensamentos tradicionais e cultos” (WILLIAMS, 1974, p. 80), que o autor coloca como central nas obras de Hardy. A “vida tradicional” relaciona-se com “o modo e meio de vida das famílias, com o trabalho e o lugar, as crenças que guiam as ações de modo tão profundo que a princípio não percebemos que estão sujeitas a serem mudadas e questionadas” (WILLIAMS, 1974, p. 80). Hardy fala de uma experiência que ainda persiste: o conflito entre o familiar e a mudança, que vai além da dicotomia urbano-rural.

A sociedade rural, de acordo com Pellegrino, está fundada em dois tipos de alteridade: uma, em que as relações de diferenças e de semelhanças entre os aldeões constituem uma identidade inclusiva e uma identidade exclusiva, tematizadas por rituais de sociabilidade. Outra, em que a condição de dependência a outras centralidades define uma identidade racional, referenciada pela economia de mercado. São as relações funcionais que as aldeias mantêm com os centros. (PELLEGRINO, 1986). Assim, temos dois aspectos das dinâmicas do meio rural, referentes a suas relações internas e

externas.

A centralidade das cidades com relação às aldeias está presente na obra de Hardy, sobretudo da cidade rural de Casterbridge. Nela ocorrem feiras para contratação de trabalhadores (Hiring Fairs), os movimentados “dias de mercado” (Market Days) para negociação e venda da produção agrícola, sendo assim fonte de mão de obra e de capital para os fazendeiros. Além disso, é em Casterbridge que os aldeões e fazendeiros buscam serviços especializados, como os de alfaiates, cirurgiões e confecção de caixões.

No entanto, não se trata de uma dependência do rural com relação ao urbano: a cidade também depende do campo. Além de ser deste último que vêm os alimentos e matérias primas, como a lã para confecção de roupas, as cidades rurais dependem diretamente do consumo das aldeias para se manterem. Hardy deixa isso claro em uma passagem sobre a reprimenda dos comerciantes de Casterbridge com relação ao fazendeiro Boldwood, que compra direto dos produtores, em cidades grandes como Bath e Londres. De acordo com os comerciantes, a função das aldeias é fornecer consumidores para as cidades rurais a elas vinculadas (HARDY, 2008, p. 374).

A mediação do rural e do urbano em Thomas Hardy: a representação do urbano através da apresentação do rural

Hobsbawm (1981) analisa que, a partir da década de 1830, a literatura e as artes apresentaram com ênfase a ascensão da sociedade capitalista. Neste sentido, essas criações descreviam um mundo em que todos os laços sociais se desintegravam, apesar da manutenção dos laços entre o ouro e o papel-moeda. De acordo com Williams (1974), Hardy pertence a uma geração literária que teve sua origem na década de 1840, com Charles Dickens, apresentando como marco final as obras de D. H. Lawrence, cem anos depois. O autor sugere que essa geração foi influenciada pelas transformações em curso desde a Revolução Industrial, e marcada por um forte senso de crise, em razão das reestruturações envolvidas no processo de urbanização.

Williams (1974) e Eagleton (2005) apontam que a questão das mudanças que se encontravam em curso é central na obra de Hardy. Elas não são fruto de forças externas sobre um meio antes intocado, conforme Williams frisa:

É comum reduzir a ficção de Hardy ao impacto do estranho urbano sobre o “padrão atemporal” da vida rural inglesa.

Apesar de, algumas vezes, isso estar presente, o padrão mais comum é a relação entre a natureza mutável da vida rural, determinada tanto por suas próprias pressões, como por pressões de “fora”, e um ou mais personagens que se tornam, em alguma medida, separados dela, mas que ainda permaneceram, por algum laço de família, inexplicavelmente envolvidos. É assim que os valores sociais são dramatizados de maneira muito complexa, é assim que surge a maior parte dos problemas das obras de Hardy. (WILLIAMS, 1974, p.

83)

O contato do rural com o meio urbano pode implicar em alterações intrínsecas ao primeiro, que não necessariamente significa serem transformações impostas ou forçadas: o contato entre culturas diferentes é normal e pode ter como consequência a incorporação de elementos de uma na outra, acarretando em mudanças internas . Isso ocorre em Hardy através de personagens de proveniência rural que têm a oportunidade de receber educação formal (WILLIAMS, 1974) e por meio das possibilidades geradas pela mobilidade, que levam a tentativas de ascensão social por parte de personagens da classe média-baixa rural (EAGLETON, 2005). Em ambos os casos, ocorre o contato com modos de vida e de pensamento distintos do da tradição rural, e que muitas vezes estão relacionados com o urbano, embora não necessariamente.

Assim, a narrativa de Hardy fala de processos que ocorrem em um meio rural em vias de transformação, influenciado de maneiras diversas pelas cidades. No entanto, Williams aponta que o público leitor de Hardy era metropolitano. Trata-se de leitores que não conhecem o campo, ou o conhecem em viagens de fim de semana e, conforme analisa Eagleton (2005), têm com ele uma relação contemplativa, e não de produção ou meio de vida. Como consequência, a obra de Hardy é marcada por um esforço de apresentar e valorizar o meio rural para leitores urbanos (WILLIAMS, 1974).

Para tanto, estabelece comparações entre os meios, cujas representações serão discutidas a seguir. Nelas, será possível perceber o imaginário da época a respeito do campo e da cidade, através das visões predominantes a respeito desse meio. Também é possível identificar explicações refinadas a respeito do campo. Finalmente, será demonstrado como alguns desses imaginários e representações são desconstruídos e criticados pela própria narrativa. Os dois último provavelmente constituem mais próximas das do próprio Hardy.

Hardy destaca a diferença da velocidade das ações e pensamentos das pessoas e do ritmo das mudanças de hábitos nos meios urbano e rural. Caracteriza os movimentos do então pequeno fazendeiro Gabriel Oak, ao realizar o parto de suas ovelhas, como sendo lentos e firmes. Frisa que Oak é capaz de pensar e agir rapidamente quando necessário, como os homens da cidade fazem naturalmente, mas apresenta seus comportamentos morais, físicos e mentais como estáticos, em comparação aos dos citadinos, que tendem ao aumento da velocidade (HARDY, 2008, p. 16). Além disso, descreve Weatherbury como sendo imutável em comparação às cidades, pois a aldeia se localiza em uma região de Wessex em que os processos alteração em seus costumes e tradições são extremamente lentos. O escritor diz se tratar de uma questão de ritmo das transformações, e não da sua ausência, (HARDY, 2008, p. 146), e não deixa de reconhecer mudanças no meio rural, como o faz explicitamente sobre a modernização da aldeia de Norcombe (HARDY, 2008, p. 108). Assim, a cidade é representada como locus da velocidade e da mudança, ao passo que o campo parece ser o da estática e permanência, porém oferece a imagem mais precisa de ritmos lentos nesse último.

Passagens como a descrição de Bathsheba e a visita de Gabriel Oak à tia desta demonstram a tentativa de Hardy de desconstruir concepções errôneas do meio rural. Bathsheba Everdene é descrita como uma mulher excepcionalmente bonita, que não usa roupas que revelam o seu corpo. Não se trata de timidez, mas sim do limite que a moça traça entre o visto e o não visto, mais restritivo que o limite adotado nas cidades (HARDY, 2008, p. 22-23). Nesse contexto, Oak observa a beleza Bathseba e, tendo o olhar masculino um efeito desagradável sobre as “faces virgens em distritos rurais”, Bathsheba sente-se desconfortável. Porém, enfatizando não se tratar de timidez por parte da moça, é Oak quem se envergonha e cora com a situação (HARDY, 2008, p.

23). Nessas situações, é desconstruído o ideal de pureza ou de timidez das mulheres rurais, explicando de maneira mais refinada tratar-se do limite do que é revelado, por parte da mulher, e do olhar, por parte do homem. As mulheres da cidade são usadas como contraponto, e representadas como mais ousadas ou promíscuas, além de trazer a sugestão de que o olhar masculino não as incomoda.

Quando Oak vai visitar a tia de Bathsheba, refere a si mesmo como “alguém”, sem identificar-se à pessoa que atendeu a porta. Hardy explica que tal atitude não é sinal da falta de educação do meio rural, mas sim de uma modéstia refinada que os habitantes da cidade, com seus cartões de visita e anúncios, simplesmente não compreendem (HARDY, 2008, p. 31). Trata-se da apresentação mais precisa dos hábitos humildes do campo, em comparação com a concepção dos hábitos extravagantes e grande senso de importância dos habitantes urbanos.

Esta última noção também está presente na passagem em que Hardy descreve Boldowood: mesmo sendo ele a pessoa mais próxima da aristocracia que pode ser encontrada em Weatherbury, os habitantes da cidade, ao visitar a aldeia, não consideram o fazendeiro como companhia a sua altura (good society) (HARDY, 2008,

p. 121). O escritor sugere que esses habitantes urbanos se consideram superiores, em termos culturais, sociais e econômicos, aos aldeões e fazendeiros.

Nesse mesmo sentido, Hardy faz referência a valores individualistas dos citadinos, na passagem em que Bathsheba, após a descobrir que Fanny Robin havia se envolvido com seu marido, Troy, antes dele casar-se com ela, não sentiu um senso de vitória com a morte da moça. O narrador justifica que isso era possível graças aos princípios conservadores de Bathsheba, já que a morte de Fanny e de seu filho não teriam incomodado uma “mulher do mundo”, isto é, da cidade (HARDY, 2008, p. 286). À primeira vista, parece tratar-se de uma valorização da solidariedade que pode ser encontrada no meio rural.

Nessas passagens apresentadas, parece haver uma idealização do meio rural em detrimento do urbano. A passagem em que Hardy descreve o primeiro dia de junho no campo, época em que a tosa das ovelhas se encontrava no auge, vem a reforçar a ideia: o escritor exalta a beleza do meio rural e declara, categoricamente, que, no verão, “Deus estava palpavelmente presente no campo, e o demônio havia ido com o mundo para a cidade” (HARDY, 2008, p. 142).

No entanto, é interessante observar que não há a valorização clara das características de Oak, apenas sua qualificação como estáticas, bem como a rapidez das mudanças na cidade não é criticada, apenas apresentada. Além disso, as diferenças do campo com relação a cidade sugeridas nessas passagens são questionadas pelos eventos da narrativa, pois neles encontramos valores individualistas e hábitos extravagantes de Bathsheba, Troy e Boldwood, um filho bastardo de Fanny, a atração de Bathsheba pelos galanteios pouco convencionais de Troy, dentre outros.

Shires sugere que o autor questiona e ironiza os valores pastorais e que, se o romance Far from the Madding Crowd tem momentos que elogiam o tradicional, o pastoral e o orgânico, o romance o faz “para questionar ou, até mesmo, explodi-los, tanto quanto para celebrá-los ou confirmá-los” (SHIRES, 2008, p. xix-xx), de modo que o romance reúne discursos antitéticos. De acordo com a autora, “O poder de Far from the Madding Crowd está na sua habilidade de não endossar uma ideologia ou perspectiva em particular, mas de apresentar várias e mostrar como elas colocam umas as outras

em questão” (SHIRES, 2008, p. xxix).

O mesmo ocorre com o título da obra. De acordo com Shires (2008), o título é uma citação do poema de Thomas Gray Elegy written in a Country Churchyard (“Elegia escrita em um Adro Rural”, tradução das autoras). O poema constitui um elogio aos habitantes rurais, de hábitos discretos e enraizados, em oposição aos costumes “barulhentos” dos habitantes da cidade. À primeira vista, a escolha parece sugerir a superioridade dos rurais pastorais com relação aos valores urbanos, sendo moralmente superiores, e inseridos em relações sociais mais incorruptíveis e inocentes.

Não obstante, Shires (2008) observa, não é isso que ocorre ao longo do romance, que reúne assassinato, filho ilegítimo, obsessão, morte causada por pobreza e sofrimento ao extremo, promessas não cumpridas, irresponsabilidade, crueldade emocional, dentre outros. A autora sugere que a referência pastoral no título é um artífice que fala de um ideal de passado, transformado em nostalgia, que só é possível através do esquecimento das dificuldades, trabalho duro e das reviravoltas e sofrimentos emocionais.

Shires conclui que a “loucura” é típica do homem, e está presente onde quer que ele esteja, de modo que estar isolado do meio urbano não isenta o homem das vicissitudes que lhe são naturais. Ela afirma que estar afastado da multidão não é um ideal que Hardy defende como superior a fazer parte dela, pois simplesmente não há elementos para chegar a essa conclusão ao longo do romance.

Shires (2008) aponta como exemplo máximo dessa situação o caso de Fanny Robin, que, após fugir da fazenda e não conseguir casar-se com Troy, morre desamparada de sofrimento e de pobreza, e seu filho tem o mesmo destino. Sugere que o meio rural vitoriano, longe da multidão, simplesmente não tem condições de lidar com uma mãe solteira, conduzindo à tragédia tanto de Fanny, como de Troy, Boldwood e Bathsheba. Não se trata, portanto, de um ambiente idílico, superior ao urbano, mas sim igualmente sujeito aos vícios e loucura típicos do ser humano.

Deus está no campo e o demônio na cidade, diz Hardy. No entanto, não é possível fazer uma análise tão simplista das representações selecionadas. Por um lado, as visões apresentadas a respeito do meio urbano podem ser consideradas como igualmente preconceituosas às imagens do rural que o escritor procura desconstruir. Por outro, a exposição de tais estereótipos do meio urbano pode ter sido feita justamente para colocar em evidência as limitações desse tipo de visão, na medida em que seus leitores urbanos seriam capazes de, eles mesmos, avaliar sua veracidade.

A apresentação justaposta do rural e do urbano pode ser considerada como reflexo da mentalidade da época, que revela o imaginário de um em oposição ao outro, como muitas vezes ainda ocorre na atualidade. São apresentados imaginários da cidade a respeito do campo, e do campo a respeito da cidade. No entanto, essas concepções são relativizadas e criticadas pelos eventos narrados no livro, sendo que algumas são diretamente esclarecidas pelo narrador, dando acesso à percepção que Hardy tinha de sua sociedade, sob a forma de representações dos meios urbano e do rural.

Considerações finais

O romance de Thomas Hardy, apesar de aparentemente colocar o campo e a cidade em regime de oposição, também os aproxima, levando em consideração as questões típicas da natureza humana, por um lado, e, por outro, as dinâmicas socioeconômicas

características do urbano-industrial capitalista, que estabelece relações funcionais entre os meios.

Far from the Madding Crowd é um romance de leitura complexa. Por um lado, ele nos fornece imaginários, possivelmente predominantes na época da escrita, dos meios urbano e rural. Por outro, apresenta também representações mais refinadas do campo, e contrapontos aos imaginários construídos ao longo dos eventos da narrativa, dando acesso à interpretação do autor a respeito da realidade. Através dessas situações, é possível pensar como a cidade percebe o campo e, mais diretamente através da voz narrativa, como o campo representa a cidade.

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