Resumo

O trabalho aborda as representações das cidades através do cinema, e sua atuação na composição de imaginários. São exploradas especialmente as obras cinematográficas que se utilizam da captação de imagens da metrópole em si, partindo das Sinfonias Urbanas do cinema de vanguarda dos anos 1920, passando pelo neorealismo italiano e chegando à cinematografia moderna brasileira. Sobre a cidade de São Paulo e seu imaginário de “Cidade Máquina”, percorrem-se as obras São Paulo Synphonia da Metropole (Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, 1929), Simão o Caolho (Alberto Cavalcanti, 1952), Noite Vazia (Walter Hugo Khouri, 1964) e São Paulo Sociedade Anônima (Luís Sérgio Person, 1965). Já sobre o Rio de Janeiro, “Cidade Samba”, são abordadas as obras Rio 40 Graus (1955) e Rio Zona Norte (1957), ambos de Nelson Pereira dos Santos, Cinco Vezes Favela (Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, 1962) e A Grande Cidade (Cacá Diegues, 1966).

Palavras-chave: Cidade, Cinema, Imaginário, Rio de Janeiro, São Paulo

Abstract

The work examines the representation of cities through film, and its performance in composing imageries. Are especially approached cinematographic works that capture images of the metropolis itself, like the Urban Symphonies of 1920’s avant-garde cinema, Italian neorealism, and finally the Brazilian modern filmmaking. About the city of São Paulo and its imagery of "Machine City", are presented the movies São Paulo Synphonia da Metropole (Adalberto Kemeny and Rudolf Rex Lustig, 1929), Simão o Caolho (Alberto Cavalcanti, 1952), Noite Vazia (Walter Hugo Khouri, 1964) and São Paulo Sociedade Anônima (Luís Sérgio Person, 1965). About Rio de Janeiro, “Samba City”, are discussed Rio 40 Graus (1955) and Rio Zona Norte (1957), both by Nelson Pereira dos Santos, Cinco Vezes Favela (Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade and Leon Hirszman, 1962) and A Grande Cidade (Cacá Diegues, 1966).

Keywords: City, Cinema, Imageries, Rio de Janeiro, São Paulo

Cinema e Cidade: Representações

Desde o surgimento do cinema, ao final do século XIX, as imagens produzidas por este meio estiveram estreitamente ligadas à formação e difusão do imaginário da cidade moderna. Se os primeiros filmes da história já se dedicavam a cenas essencialmente urbanas – a saída dos funcionários de uma fábrica, a chegada do trem na estação – com o passar dos anos, e com o desenvolvimento das linguagens cinematográficas, os retratos inicialmente descritivos ou factuais se diversificaram e refinaram, criando uma extensa gama de representações e ressignificações da urbe, variáveis em suas tonalidades e intensidades, dialogando com específicas conjunturas temporais, geográficas e estéticas.

Em alguns dos momentos da história do cinema, as cidades fílmicas – que podem

resultar da construção de cenários, efeitos e trucagens – se aproximam, seja por questões artísticas ou técnicas , das “cidades reais”, tendo suas imagens captadas diretamente do meio urbano.

Um dos pioneiros e mais contundentes momentos de encontro do cinema com a “cidade real” acontece nas primeiras décadas do século passado, quando fascinados pela vitalidade da metrópole, que se tornava o locus por excelência da vida moderna, os cineastas levaram suas câmeras para as ruas, compondo verdadeiras odes à modernidade sob a forma das Sinfonias Urbanas. Inseridas no ambiente de experimentações vanguardistas do cinema do período entre guerras, esta alcunha em geral recai sobre uma série de filmes desenvolvidos durante a década de 1920 onde as cidades e os elementos urbanos atuam como substrato-base para a composição estética e narrativa da obra. O termo “Sinfonia” faz referência direta ao filme de Walter Ruttman, Berlim, a Sinfonia da Metrópole (Berlin: Die Sinfonie der Großstadt, 1927) que, embora não seja o pioneiro do “gênero”, é uma obra emblemática. Podemos citar também Apenas as Horas (Rien que les Heures, 1926), do brasileiro Alberto Cavalcanti sobre Paris, Um homem com uma câmera (Tchelovek s kinoapparatom, 1929) de Dziga Vertov, sobre as cidades da União Soviética, a brasileira São Paulo, Synphonia da Metropole (1929), de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, além de uma série de curtas-metragens . Em um breve período, cada uma das grandes metrópoles possuía sua própria “Sinfonia”.

Nestes filmes, embora as imagens tenham sido captadas a partir das cidades reais, suas composições, advindas da montagem e das linguagens particulares de cada uma das obras, resultaram em peças ímpares que, embora conformassem um retrato cauteloso em relação à metrópole moderna, ainda guardavam uma dose de otimismo, baseada na promessa, nas possibilidades de um novo mundo.

Logo após a Segunda Guerra Mundial, quando já havia caído por terra boa parte destas aspirações positivas, a cidade cinematográfica novamente se liberta do ambiente controlado dos estúdios e mergulha nas ruas. Este momento, que acontece no Neo-Realismo Italiano e se estende para os outros movimentos do cinema moderno, é identificado por Filippelli como um ponto de inflexão na história da relação entre o cinema e a cidade, quando irrompe na tela a cidade real. Segundo o autor, ali o cinema leva inscrito em sua condição estética o ideal da conquista do urbano, e a apropriação da cidade contemporânea configura um momento inevitável na consolidação de sua linguagem. (FILIPPELLI, 2008, pp. 30-31)

É nesse contexto de busca da “cidade real” renovado pelo Neo-realismo Italiano – que ofereceu ao cinema brasileiro, mais do que modelos estéticos, “uma atitude moral ao mostrar como debruçar-se sobre a realidade local, principalmente sobre o mundo popular” (FABRIS, 2007) – que viria a se desenvolver a cinematografia moderna brasileira das décadas de 1950 e 1960, alvos de nosso estudo. Nestas obras, as câmeras não apenas mergulharão nas ruas, mas adentrarão as periferias e subirão os morros, em filmes emblemáticos que subverterão a “ordem” das sinfonias, fazendo as imagens da cidade se renderem aos acordes sinuosos do samba.

Quais Cidades, Quais Cinemas?

As décadas de 1950 e 1960 configuraram um período de profundas transformações nas cidades – e na sociedade – brasileiras. Conforme apontou Lopes (2008, pp. 23- 24), o ritmo da urbanização no período entre 1940-1960 é especialmente

impressionante: enquanto a população total cresce no período pouco mais de 70%, a população das cidades, com destaque para aquelas com mais de 500 mil habitantes, mais que triplicam. Foi ainda durante a década de 1960 quando a população urbana do país ultrapassou, em números absolutos, a população rural.

Embora o crescimento urbano não seja um fenômeno exclusivo do Brasil ou de outros países em desenvolvimento, Brito e Souza (2005, p. 49) apontam que a grande novidade, neste caso, foi a velocidade do processo de urbanização, muito superior à dos países capitalistas mais avançados.

Este processo de urbanização é impulsionado pela industrialização que, de acordo com Lopes (2008, p. 60), provoca pronunciados desníveis socioeconômicos no país, ao mesmo tempo em que se cria a rede de transportes e de comunicações, unificando em um mercado nacional as várias regiões brasileiras, gerando as condições básicas das migrações internas. Neste movimento, são atraídos para as grandes cidades – em especial Rio de Janeiro e São Paulo – antigos moradores do meio rural, inclusive de outras regiões do país, principalmente do Nordeste, com a promessa de emprego e melhores condições de vida.

Entretanto, esta promessa, em grande parte dos casos, não chegava a se cumprir: mesmo aqueles que conseguiam empregos, ou sub-empregos, acabavam por ficar às margens do prometido “progresso”, já que a agressiva expansão das cidades fez com que grande parte dos novos habitantes ficassem alijados da infraestrutura urbana, e em condições precárias de moradia, fosse em bairros periféricos ou em ocupações irregulares de terrenos, como os morros. A situação destas regiões periféricas configurava um contraste absoluto ao imaginário propagado naquele período que vinculava a metrópole à “euforia de um progresso marcado por símbolos urbanos” (BONDUKI, 1998, p. 266), ilustrado pelas avenidas, pelos arranha-céus, pelos automóveis, pela indústria e pelo desenvolvimento.

É importante apontar ainda que a expansão urbana, conforme apontam Brito e Souza, configurava um dos componentes fundamentais das mudanças estruturais da sociedade brasileira, que deve ser entendida como “a construção irreversível da hegemonia do urbano, não só como o locus privilegiado das atividades econômicas mais relevantes e da população, mas também como difusora dos novos padrões de relações sociais – inclusive as de produção – e estilos de vida.” (BRITO & SOUZA, 2005, pp. 48-49)

Nesse contexto, a “hegemonia do urbano” viria a se estender, no âmbito cultural, também para a produção cinematográfica nacional.

É importante pontuar nas décadas de 1930 e 1940 a produção do cinema brasileiro se concentrava quase que exclusivamente no Rio de Janeiro, e a grande maioria das obras orbitava entre o melodrama e a comédia, gêneros de grande apelo popular e que, de acordo com Catani e Oroz (1997, p. 309), narravam histórias que representavam o universo simbólico dos espectadores da época, como metáfora das “cidades semi- rurais”. Os autores apontam também a importante presença das chanchadas, que a partir dos anos 40 passam a se dedicar ao cotidiano do homem urbano, abordando temas como a “a carestia, a falta de água, as deficiências do transporte urbano, a demagogia eleitoreira, a corrupção política, a indolência burocrática, o empreguismo generalizado no serviço público, etc.” (CATANI & OROZ, 1997, p. 314)

Já a década de 1950, uma das mais complexas na história do cinema brasileiro, viria renovar a produção cinematográfica nacional tanto nos modos de produção como em sua linguagem. A criação da Companhia Vera Cruz, que tinha como objetivo a instalação de um modelo industrial de produção cinematográfica, foi dirigida por Alberto Cavalcanti e trouxe técnicos europeus com o intuito de “profissionalizar” a atividade no Brasil. Mesmo tendo vida breve – criada em 1949, entrou em declínio já em 1954 – a Companhia realizou dezenas de obras, e impulsionou a criação de outros estúdios, como Maristela, Multifilmes e Kinofilmes, que acabaram por incluir São Paulo no mapa da produção cinematográfica nacional. Entre os filmes produzidos neste contexto, obras como Simão o Caolho (1952) de Alberto Cavalcanti e Na Senda do Crime (1954), de Flaminio Cerri, já direcionam o olhar para a cidade a partir das grandes mudanças do período.

Foi também na década de 1950 que se iniciaram as transformações na linguagem cinematográfica, com o chamado “cinema de autor” – inaugurado por Rio 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos – que viria abrir caminhos para a consolidação do Cinema Moderno brasileiro, em especial sob a forma do Cinema Novo.

É interessante observar, conforme já apontou Pinto (2013, p. 15), que os “filmes urbanos” não eram então um ponto pacífico neste contexto, já que alguns dos cinemanovistas, marcados por uma formação de esquerda, tendiam a ver esse tipo de produção como “burguesa” e “alienante”, atrelada ao imaginário da modernidade, que mascarava as mazelas sociais. Sob este ponto de vista, os filmes rurais estariam mais próximos da realidade. Entretanto, outros cineastas acreditavam que “a cidade deveria ser representada em toda a sua complexidade metropolitana, porque – essa, sim – representaria a realidade que desejavam desvendar”.

Desta forma, através do olhar destes cineastas – entre eles Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Walter Hugo Khoury, Luiz Sergio Person – as cidades foram filmadas em seus plenos processos de crescimento e transformações, e ressignificadas em obras cinematográficas que ajudaram a conformar o imaginário da metrópole moderna brasileira.

São Paulo, Cidade Máquina

A cidade de São Paulo – e não o Rio de Janeiro, a então capital federal – foi a “grande metrópole moderna” brasileira escolhida para ser retratada, nos anos 1920, através de uma Sinfonia Urbana: São Paulo, Synphonia da Metropole, de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, em 1929. A obra, de certa forma, inaugura o imaginário cinematográfico da capital paulista sob o signo de “máquina produtiva” brasileira.

Apesar da obra realizada na década de 20, a produção de filmes no Estado, em especial no que diz respeito a longas-metragens de ficção, era muito limitada até a década de 1950, quando aconteceram os esforços de industrialização da atividade cinematográfica, como a criação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, e de estúdios como Maristela e Multifilmes, que viriam a incluir São Paulo no eixo das produções fílmicas do país.

Em seu livro São Paulo em Preto & Branco, Waldir Salvadore (2005, p. 19) aponta que as décadas de 1950 e 1960 demarcam dois extremos do conceito da cidade sobre si própria: dos discursos oficiais triunfalistas, compostos por um otimismo que, muitas vezes, beirava a ingenuidade, à constatação desiludida, poucos anos depois, da

crescente deterioração da qualidade de vida e do empobrecimento da população da metrópole periférica. Nas palavras do autor,

a mancha da cidade que, se ainda apresentava uma escala relativamente humana nos anos 40, no decorrer das duas décadas seguintes explode numa verdadeira “metástase” urbana, destrói-se e reconstrói-se de forma vertiginosa, perde- se nos labirintos que criou, dilui-se nas massas anônimas que em ondas gigantescas vêm povoá-la. As letras, o cinema e as artes em geral, de resto, acompanham e registram a seu modo esse processo de fragmentação, de massificação, de estilhaçamento da identidade urbana e humana da metrópole que “não pode parar”. Uma metamorfose violenta e traumática

– aliás, marca permanente da evolução de São Paulo no século XX – suprimindo marcos urbanos, tradições, espaços públicos, formas de convivência, esgarçando o tecido social e transformando a cidade no que Francisco Weffort chamou com propriedade de um imenso acampamento de obras. (SALVADORE, 2005, p. 18)

Esta “metamorfose violenta e traumática” do tecido da cidade é mostrada com maestria, e com uma inegável dose de saudosismo, na obra Simão o Caolho (1952), de Alberto Cavalcanti. O diretor brasileiro, pioneiro do “gênero” das Sinfonias Urbanas com Rien que les heures, filmado em Paris em 1926, já havia demonstrado naquele filme sua preocupação com a passagem do tempo, retomada em seu filme de 1952, que bebe diretamente das vanguardas europeias. Em uma sequência de aproximadamente dois minutos que representa o salto temporal de 1932 para 1952, Cavalcanti revisita a estética dos filmes de vanguarda, sem perder o “contexto tupiniquim”: iniciada com um muro que cai, e que tem o ruído confundido com os “canhões” da Revolução de 32, a sequência segue com uma montagem ritmada de planos de detalhe que aqui substituem as engrenagens das máquinas por rudimentares processos da construção civil, seguida por uma colagem de edifícios aos moldes de Metropolis de Paul Citröen ou dos cartazes de Berlim, a Sinfonia da Metrópole; segue-se para uma vertiginosa vista do topo de um edifício, a partir de onde é mostrado o skyline da São Paulo da década de 1950, e finaliza-se com uma série de planos noturnos, com enfoque nas luzes e na publicidade de neon. Apesar da apresentação da metrópole nesta cena – que é quase uma licença poética de Cavalcanti – Simão transita por um ambiente urbano, em especial o bairro onde mora, que apresenta características quase rurais, contando com casas com galinheiros nos quintais.

Figura 1 – Fotogramas do filme Simão, o Caolho (Alberto Cavalcanti, 1952)

Estes resquícios interioranos se perderão nos filmes urbanos que retratarão São Paulo nos anos seguintes.

Noite Vazia (1964), de Walter Hugo Khouri, é uma obra essencialmente noturna, e tem grande parte de sua trama desenvolvida entre quatro paredes. Mesmo assim, apresenta uma interessante abordagem da cidade. A obra se inicia com uma tomada das ruas a partir de um carro em movimento, tipo de plano que será recorrente nos filmes ambientados na capital paulista, denotando uma nova forma de flânerie possibilitada pelo automóvel, um dos símbolos do desenvolvimentismo do período. Seus personagens, que frequentam espaços desenhados por elegantes linhas modernas, vagueiam pela cidade na tentativa de preencher o vazio de suas vidas – ou de sua noite, como sugere o título da obra – o que se mostra uma tentativa vã. Com o nascer do dia, os personagens estão tão entediados como estavam no início da noite.

Figura 2 – Fotogramas do filme Noite Vazia (Walter Hugo Khouri, 1964)

Este vazio enunciado pelo filme de Khouri viria se repetir naquela que é, talvez, a obra mais significativa sobre a capital paulista daquele período, São Paulo S.A. (1965), de Luis Sergio Person. Como o título denota, a São Paulo de Person é uma cidade indústria, uma sociedade anônima, em todas as interpretações possíveis. Situada no cerne da discussão sobre o desenvolvimentismo, os personagens estão sempre buscando algo que não conseguem alcançar: parecem ser todos levados pelo mecanismo implacável da metrópole-máquina.

Figura 3 – Fotogramas do filme São Paulo S.A. (Luís Sérgio Person, 1965)

O personagem principal, Carlos, assim como fará Calunga em A grande cidade (Cacá Diegues, 1967), vagueia pela cidade, dialoga com ela ou apesar dela. Entretanto, seu vagar não é aquele de quem não tem nada a perder, como será o do personagem carioca, mas o de quem não tem nada a ganhar. Apesar de possuir tudo o que a cidade lhe pode oferecer, ela representa uma prisão e, ao resolver se libertar dela, ao final do filme, se vê impelido a voltar, adentrando por suas periferias como em uma imagem de pesadelo. Ao habitante metropolitano só resta um destino: deixar-se levar por suas engrenagens e “recomeçar, recomeçar, mil vezes recomeçar”.

Rio De Janeiro, Cidade Samba

A cidade do Rio de Janeiro, além de desde cedo ter se estabelecido como principal polo produtor de cinema do país foi também, muito provavelmente, a cidade brasileira mais presente nas telas, tanto em produções nacionais como internacionais. Capital Federal até 1960, seu status de “capitalidade” , como coloca Carlos Eduardo P. de Pinto (2013, p. 14), persistiu ainda durante alguns anos após a transferência da capital para Brasília , sendo que o “imaginário” carioca acabava por representar, como metonímia, a imagem do próprio Brasil.

Antônio Rodrigues, em seu livro O Rio no Cinema destaca que a evolução da mitologia e da imagem do Rio no cinema acompanhou, em certa medida, a evolução da realidade da cidade e da percepção desta, passando da “contemplação do belo quadro geográfico e de um ambiente marcado pela alegria de viver para filmes em que a cidade é vivida na sua banalidade cotidiana, e depois para a anormalidade da violência e da instabilidade.” (RODRIGUES, 2008, p.15)

Se até o início da década de 1950 a representação cinematográfica do Rio consistia em um “Éden tropical hedonista, sem complexidade e representativo de todo o Brasil” (PINTO C. E., 2013, p. 14), foi em Rio 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, que a cidade foi mostrada pela primeira vez com suas veias abertas e sua crua realidade. Ao subir o morro, mais do que “apenas” mostrar a favela, a obra constrói uma interpretação sobre ela, que a exibe de forma simpática (PINTO C. E., 2013, p. 41). Esta mudança de perspectiva não foi bem-vinda para alguns dos setores conservadores da sociedade, e inaugurou uma série de discussões públicas que só viriam aumentar a visibilidade da obra.

Figura 4 – Fotogramas do filme Rio Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1967)

Rio 40 Graus, entretanto, seria apenas o primeiro de uma série de outros filmes que viriam abordar de forma rica e complexa as questões urbanas da cidade do Rio de Janeiro, com destaque para Rio Zona Norte (1957, Nelson Pereira dos Santos), Cinco Vezes Favela (Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, 1962), e A Grande Cidade (1966, Cacá Diegues).

Os dois filmes de Nelson Pereira dos Santos se dedicam a mostrar nas telas os habitantes das regiões marginalizadas da cidade, contraposta à imagem da Cidade Maravilhosa. É interessante notar que, em Rio 40 Graus, o diretor “inaugura” a apropriação da favela como elemento de identidade da cultura popular no cinema, e que Rio Zona Norte apresenta uma ácida crítica sobre o processo de apropriação dessa mesma cultura popular pelos artistas e intelectuais.

Cinco Vezes Favela, filme em cinco episódios, dirigidos por cineastas diferentes, chama a atenção pela abordagem direta às questões urbanas em suas tramas. Em Um Favelado, de Marcos Farias, é abordada a falta de possibilidades de um morador da favela, desempregado, se inserir na sociedade; o personagem é levado a participar de um crime, acabando linchado e preso. Zé da Cachorra, de Miguel Borges, insere sua trama em uma favela “grilada”, abordando o acordo informal dos moradores com o suposto “dono” da favela, em um retrato das disputas sobre o solo urbano que adquire contornos de uma nova forma de coronelismo. Escola de Samba, Alegria de Viver trabalha as relações da comunidade do morro com a Escola de Samba local. Em Couro de Gato, de Joaquim Pedro de Andrade, um grupo de crianças sai à caça de gatos para serem vendidos a uma fábrica de tamborins; na obra, chamam atenção não apenas o contraste entre o conforto em que vive o gato “de madame” roubado e a vida precária dos próprios meninos, mas também a impossibilidade de um dos garotos manter o animal para si, já que não tem condições de alimentá-lo e acaba vendendo-o para a fábrica. Por fim, Pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman, aborda o dilema de um grupo de trabalhadores de uma pedreira que se vê dividido entre atender o comando do chefe – detonar uma carga grande de dinamite – e manter a segurança do local que habitam, uma favela sobre o próprio morro da pedreira. Mesmo que o final da maioria dos episódios seja trágico, o desfecho de Pedreira de São Diogo confere à obra um encerramento otimista e de caráter alegórico: a comunidade do morro se mobiliza e, unida, faz com que o dono da pedreira desista da explosão.

Figura 5 – Fotogramas do filme Cinco Vezes Favela (Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, 1962)

Por fim, A Grande Cidade, de Cacá Diegues, como o próprio título indica, configura uma “ode” à “grande cidade”, o Rio de Janeiro. A obra reúne uma série de questões intrínsecas ao acelerado crescimento urbano: a migração, impulsionada pela oferta de trabalho na construção civil e pelo sonho de uma vida melhor; a falta de infraestrutura e a precariedade das habitações nas favelas; a criminalidade, à qual muitos dos migrantes acabam por ser conduzidos a aderir. Mais do que um retrato, o filme compõe uma crítica ácida e irônica aos processos inerentes à urbanização e à “vida moderna”, sob o ponto de vista de Calunga, personagem que atravessa o filme da mesma forma que vagueia pela cidade, como um flâneur que, por não ter nada a perder, pouco se importa com as tragédias à sua volta; em suas próprias palavras, “só tenho medo é da morte, que ela é fiel. E o resto, que se dane”.

Figura 6 – Fotogramas do filme A Grande Cidade (Cacá Diegues, 1966)

Considerações Finais

Inseridas em um contexto demarcado por um crescimento urbano desmedido e contraditório, as obras cinematográficas produzidas no Brasil nas décadas de 1950 e 1960 participam ativamente da construção do imaginário de nossas metrópoles, dotado de visões muitas vezes adversas, mas não excludentes entre si.

A cidade de São Paulo, que teve como pioneira representação cinematográfica uma Sinfonia Urbana ainda em 1929, reafirma, nas décadas de 1950 e 1960, seu status de metrópole como máquina produtiva, como lócus do progresso e da vida moderna. Embora sejam retratados alguns bairros que apresentam fortes relações de vizinhança

e mesmo características semi-rurais, como em Simão o Caolho, na filmografia consultada as favelas ou assentamentos periféricos não chegam a compor o universo cinematográfico, mesmo que já fizessem parte da realidade da cidade. A representação fílmica da capital paulista possui olhar direcionado para os dilemas de seus habitantes que, com maior ou menor poder aquisitivo, se enquadram no perfil desenhado pelas rígidas engrenagens da metrópole formal.

Já o Rio de Janeiro, antiga Capital Federal e polo cinematográfico nacional, teve seu imaginário de “Éden tropical” retrabalhado a partir dos anos cinquenta, quando a “Cidade Maravilhosa” foi contraposta – ou passou a ser somada – ao seu território limítrofe, às margens resultantes do crescimento urbano desigual, os espaços dos subúrbios, das favelas e dos morros. Neste processo, alguns dos elementos representativos da cultura popular destas localidades foram incorporados como constitutivos da ideia de Cultura nacional.

Através de suas características específicas, as representações cinematográficas destas duas cidades ajudam a compor o imaginário da metrópole de um país em plenas transformações que, ao mesmo tempo em que deseja se afirmar como locus do progresso e da vida moderna, busca constituir seu diferencial nas bases de sua cultura popular, tramitando em um terreno fronteiriço entre a sinfonia e o samba.

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