Resumo

Este artigo pretende abordar as representações criadas pelos cientistas-viajantes do século XIX que percorreram o interior do Brasil. Os textos aqui analisados são as narrativas de viagem realizadas por Auguste Saint Hilaire (1779-1853) e Johan Emanuel Pohl (1782-1834) na antiga Província de Goiás e na Província de Minas Gerais. Tais representações estão calcadas em dois pressupostos básicos: uma bagagem repleta de códigos culturais trazida pelos naturalistas os quais condicionam os seus modos de ver, e a existência de uma missão civilizadora, considerada como objetivo maior das viagens científicas e levada a cabo pela “Europa das Luzes”. Outras questões perpassam essa leitura do interior do país, como a comparação entre as cidades, vistas sob um prisma de decadência devido ao declínio da mineração e a natureza, vista como alternativa à pobreza vigente. De qualquer maneira, as narrativas dos viajantes naturalistas, sempre centradas em seus autores, mas revestidas de um caráter filantrópico e utilitarista, têm seu papel na formação da nação recém-independente e constituem uma das bases da historiografia das cidades brasileiras.

Palavras-chaves – naturalista, viagem, representação, cidade, natureza

Abstract

This article intends to approach cultural and natural aspects on the representations created by scientists-travelers of XIX century that visited the countryside of Brazil. The texts studied here are travel narratives by August Saint Hilaire (1779-1853) and Johan Emanuel Pohl (1782-1834) on the provinces of Goiás and Minas Gerais. Such representations are based on two basic assumptions: the view tinted by cultural codes brought by naturalists that conditioned their ways of seeing, and the existence of a civilizatory mission that was the main goal undertaken by European travelers in America. Other issues are noted on those documents about the countryside of Brasil because while the cities were seen as decadent, nature was considered as an alternative outlet for the poverty context. Anyway, the naturalist- travelers narratives always focused on the authors but disguised as utilitarian and philanthropist, had a role on the formation of the newly independent nation and figure as one of the basis of Brazilian cities historiography.

Keywords: travel, representations, cities, nature, cultural

Introdução

Este artigo pretende abordar as representações criadas pelos cientistas-viajantes do século XIX que percorreram o interior do Brasil. Os textos aqui analisados são as narrativas de viagem realizadas por Auguste Saint Hilaire (1779-1853) e Johan Emanuel Pohl (1782-1834) na antiga Província de Goiás e na Província de Minas Gerais. A tentativa é de desconstruir as narrativas dos viajantes revelando sentidos e relativizando verdades tidas como inquestionáveis. A pesquisa de autores que se debruçaram sobre o tema, em paralelo com a leitura dos relatos dos viajantes, possibilitou enxergar outros discursos atrás daquele oficial.

O século XIX inicia-se com a chegada ao Brasil do príncipe D. João VI e sua corte - o país é oficialmente inaugurado pela Corte Portuguesa e passa da condição de colônia para Reino Unido de Portugal, Algarves e Brasil. Isso implicou em “uma abertura econômica, mas também cultural, visto que a América portuguesa até então permanecia fechada aos olhares estrangeiros” (LAHEURTA, 2006, 4). No campo do saber, surgem as expedições científicas, mas também artísticas, as quais “produzirão um conhecimento sistemático sobre o território luso-americano, motivadas pelo novo contexto de abertura dos portos, influindo na construção do Império do Brasil” (idem, ibidem, 2).

Esse século assiste a uma mudança na forma como era descrita a natureza, pois, se a mesma era vista como algo hostil e degradante por Buffon e de Pauw no século XVIII, a partir de Humboldt inicia-se uma estetização da paisagem (TORRÃO FILHO, 2010, 128). Humboldt realizou viagens à América tropical e à Ásia Central e foi um dos primeiros naturalistas viajantes a descrever a paisagem de forma sistemática, como produto complexo de interações entre elementos naturais e humanos. A fina percepção que Humboldt revelou ao descrever os processos espaciais e temporais que formaram as atuais feições geológicas serviria de modelo aos viajantes naturalistas do século XIX que empreenderam viagens de cunho científico ao continente americano e criaram representações que não eram mera percepção do real, mas narrativas às quais estão associados os códigos culturais da época e uma “visão afirmativa da ordem humana na paisagem” (BELLUZZO, 2000, 158).

Em geral, os naturalistas eram patrocinados por algum monarca que custeava a viagem para a qual saíam munidos de cartas de apresentação, o que lhes permitiam se deslocar pelas diversas barreiras fiscais instaladas ao longo dos caminhos e encontrar acomodações com mais facilidade. A pretensão desses governantes europeus inseria-se em um contexto de disputa de poder que, naquele momento, significava a supremacia científica e cultural.

Alguns viajantes vieram para compor as “missões” como a Missão Francesa que, a convite do Imperador D. João VI, desembarcou no Rio de Janeiro em 1816 e a Missão Austríaca que veio ao Brasil com a arquiduquesa D. Maria Leopoldina quando de seu casamento com D. Pedro de Alcântara, futuro D. Pedro I. Houve também a Missão Inglesa que aqui aportou como mediadora entre Brasil e Portugal à época da declaração de independência do primeiro.

Esse caráter de “missão” é contestado por Schwarcz que na publicação O sol do Brasil (2008) propõe outra leitura desse fato. Para a autora, há duas versões sobre a vinda dos franceses ao Brasil: uma oficial que reserva à corte a iniciativa de convidar os artistas para virem ao Brasil e uma segunda que os considera como o “espólio de Napoleão”, ou seja, artistas desempregados depois da queda do Imperador que se reuniram para vir ao Novo Mundo em busca de novas oportunidades. De qualquer maneira, essa denominação surgiu posteriormente, sendo atribuída a Afonso d’Escragnolle Taunay em um artigo que publicou na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1912 (Idem, ibidem, 179).

Os sábios ilustrados vinham com objetivos claros: pretendiam explorar a região, avaliar suas riquezas naturais, indagar os costumes e hábitos dos habitantes e a formação de seus povoados. Porém, o caráter de aventura de que se revestiam as viagens era reservado a acontecimentos imprevistos, já que esses viajavam com um roteiro traçado, acompanhados por guias experientes, cartas de apresentação que facilitavam o contato com pessoas importantes e, principalmente, com uma sólida bagagem cultural baseada em leituras, mormente a de outros viajantes e, fato que o distingue do viajante comum: virem armados de “sólidos conhecimentos de ciências naturais que apenas atesta e amplia diante de novos espécimes e terras desconhecidas” (SUSSEKIND, 1990, 110). De acordo com a "Brasiliana da Biblioteca Nacional" (2001, 69), as intenções de viagem de Saint Hilaire já vinham traçadas:

Não foi um amador que veio ao Brasil. Saint-Hilaire conhecia profundamente a literatura científica e de viagens da época e os procedimentos práticos do trabalho de um naturalista, tais como noções básicas de agricultura, confecção de herbários, transporte de vegetais e, principalmente, dissecação de plantas, a fim de descobrir seus órgãos, por menores ou mais escondidos que estivessem. Uma das características mais marcantes do envolvimento de Saint-Hilaire com o Brasil foi sua vinculação aos discursos e práticas utilitárias e filantrópicas que dominam a literatura de viagens desde fins do Antigo Regime.

Os objetivos dos naturalistas não se limitavam às pesquisas científicas, desejavam também atingir um grande número de leitores, já que a literatura de viagem estava em voga àquela época. Para tal, descrevem paisagens, vistas, espécimes de plantas e de animais, arraiais e vilas em uma linguagem seca de diário, mas, mesclada de imagens poéticas destinadas a descrever certos aspectos e fenômenos da natureza. Frequentemente, essa linguagem, que se pretendia objetiva, revela preconceitos e uma certa estranheza que caracterizam esse olhar-de-fora dos viajantes naturalistas. Trata-se de uma estratégia para definir o “outro” “por meio de alguns procedimentos retóricos que dão inteligibilidade à diferença, tais como a inversão, a comparação, a analogia, a tradução, e pela ênfase na singularidade do descrito, de suas ‘maravilhas’ e ‘curiosidades” (TORRÃO FILHO, op. cit, 54). Outro recurso utilizado era a separação da narrativa pitoresca, baseada em seus diários de viagem, dos textos propriamente científicos destinados à classificação dos elementos encontrados, o que é assinalado por Pohl, em 1832, logo no prefácio de sua Viagem no interior do Brasil (1976, 14).

A despeito das grandes expedições, muitos naturalistas se aventuraram e empreenderam sozinhos viagens ao interior do Brasil, acompanhados apenas de serviçais e de uma pequena tropa de mulas para transportar as caixas carregadas de material coletado. Dentre esses, destacam-se Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) e Emanuel Pohl (1782- 1834).

Saint Hilaire e Pohl foram contemporâneos sendo que Pohl precedeu o colega naturalista nas viagens às províncias de Minas Gerais e Goiás. É comum encontrar nas narrativas de Saint Hilaire referências ao texto do primeiro, muitas vezes confirmando e outras corrigindo ou discordando das informações veiculadas - tal recurso era freqüente nos relatos dos naturalistas e conferia-lhes credibilidade pelo fato de que o visto e vivenciado por um era atestado pelo outro, ainda que divergisse do primeiro.

As cidades da mineração no século XIX

Primeiramente, é necessário examinar o contexto do interior do Brasil que encontraram os sábios cientistas. Em linhas gerais, o povoamento das terras brasileiras pelos europeus pode ser resumido por Palacín (1995, 33):

Durante os séculos XVI e XVII, o povoamento das Capitanias da costa brasileira dera-se em função da empresa agrícola. [...] Com a mineração, a situação inverteu-se: os núcleos urbanos, surgidos da concentração mineira, congregaram a maioria da população, marcando o ritmo da vida social e das mentalidades; [...] Décadas mais tarde, a decadência da mineração gerou uma ruralização progressiva da economia e dos costumes e, de forma mais lenta, das mentalidades. Em Goiàs, repetiu-se o modelo das Gerais, embora em proporções

mais modestas, em virtude da menor escala da empresa mineradora goiana.

No entanto, pesquisadores mais recentes como Fonseca (2012) contestam a versão sobre o estado de estagnação econômica que dominou o interior do país com o declínio da mineração. Com relação a Minas, Fonseca argumenta que não foi o ouro, mas as atividades agro-pastoris e comerciais que aportaram riquezas a essa região do país. Nesse sentido, observa que novas localidades foram formadas no período em função dessas atividades econômicas enquanto que na zona mineradora, “os arraiais e vilas apresentavam, então, quadros variados de estabilidade, de prosperidade, ou de decadência, dependendo dos trunfos de que dispunham” (FONSECA, 2012, 85). Desse modo, o cenário generalizado de decadência, com locais abandonados, casas semi- arruinadas, de população escassa e vastidões inexploradas, oriundos da visão dos viajantes e da historiografia mais antiga, recebem uma nova interpretação que relativiza essa idéia comum, perpetuada por tanto tempo no imaginário brasileiro.

De outro modo, para Garcia (2010, 92), as relações dos viajantes com o interior do país, denominado sertão, determinavam a existência de “dois brasis”, um mais civilizado que correspondia às vilas e cidades do litoral e outro caracterizado pela imensidão deserta que caracterizava o sertão, principalmente de Goiás. Assim, para descrever os povoados interioranos eram comuns expressões como “mísero arraial”, “miserável lugarejo”, “lastimável lugar” e outras que expressam o sentimento que provocava nos naturalistas a vista de tais lugares (idem, ibidem, 92), pois, suas idéias de prosperidade e progresso eram bem diferentes daquilo que tinham diante dos olhos. Como em Saint Hilaire (1975, 14/15):

Não se deve julgar, porém, o interior da América segundo os padrões europeus. Nas regiões escassamente povoadas, as coisas mudam com extrema lentidão. Faltam a eles os elementos que propiciam um progresso rápido. Uma população rala, disseminada por vastidões imensas e entregue à própria sorte, atormentada por um clima ardente, sem nenhum estímulo e quase nenhuma aspiração, não deseja e não sabe mudar nada.

Ao mesmo tempo, os cientistas buscam explicação para tal estado de coisas, e, investidos de uma superioridade que lhes dá suas origens, sugerem mudanças utilitaristas que pudessem alterá-lo. Por exemplo, Pohl (1975, 394), encarregado de investigar as riquezas minerais do país, expõe as causas do declínio da mineração:

Mas, por um lado, faltam braços; por outro, faltam os necessários conhecimentos de mineração para um trabalho mais racional; e, por fim, não se empregam máquinas, o que dispensaria boa parte da mão- de-obra exigida.

Uma imagem recorrente nos relatos dos viajantes é a descrição de povoados formados por um conjunto de casas modestas, dispostas em duas ou três ruas sem edifícios monumentais ou outras espécies de atrativos. Essa revela, implícitamente, os aspectos formais oriundos das normas do urbanismo português, as quais estavam presentes nas Cartas Régias que regulavam a formação dos povoados e que determinavam que as ruas fossem largas e retilíneas e a escolha de um sítio físico adequado com bons ares e boas águas.

Essa padronização no modo de se construir também explica a semelhança entre os arraiais e vilas de Goiás, exceção à capital Vila Boa, e de Minas, com exceção de Vila Rica e Mariana que, por serem sedes administrativas, se notabilizaram por possuir construções mais requintadas. No mais, as descrições se repetem variando somente o número de casas que eram,”como na maioria das construções das cidades brasileiras,

feitas de barro e madeira e cobertas de telha” (POHL, op. cit, 328). Com relação às descrições da implantação dos sítios, o naturalista desdobra-se em adjetivos e explicações geomorfológicas que acabam por privilegiar a natureza e deixar de lado a porção construída:

A aldeia de Cocal Grande fica situada na elevada margem direita do Maranhão. Deste ponto, é magnífica a vista, sobre o largo rio que rola majestoso. Avistam-se, na margem oposta (oriental), serras em forma de tenda, pitorescas, cujos cumes, com formações que lembram ruínas, sobrepujam do lado do norte, ao fundo, a cerca de meia légua de distância, uma cordilheira que se estende de leste para oeste. As belas palmeiras, abundantes nesta região, que se destacam com o seu viçoso crescimento sobre as árvores mais baixas, completam o belo conjunto desta paisagem.

Percebe-se então que a imagem do povoado, arraial ou vila adquire uma dupla conotação, pois, se vistos de longe constituem-se em paisagens pitorescas, com a aproximação é retomado o ritmo corrente na descrição dos lugares habitados. Desse modo, a interrelação entre a natureza e o ser humano revela concessões que a pena dos naturalistas faz às obras humanas nos trópicos, mormente no interior do Brasil. Como em Pohl (op. cit, 115) na descrição que faz ao se aproximar do Arraial de Corumbá/GO:

Fica este numa colina, além da qual se elevam serras mais altas e finalmente, a três milhas de distância, em forma de anfiteatro, as moles rochosas dos Montes Pirineus. Esse panorama e, em parte, a vista da própria aldeiazinha com os seus telhados vermelhos, dão a toda a região um caráter muito pitoresco. A aldeia não corresponde em nada ao seu aspecto à distância. Vê-se, ao penetrar nela, depois de transposto o aurífero Rio Corumbá, que os telhados, alegres e brilhantes ao longe, cobrem miseráveis e semi-arruinados casebres de barro.

Se a paisagem urbana é relatada com os mesmos procedimentos retóricos que usavam para tratar da natureza, a ênfase é dada aos aspectos negativos dos povoados, lugares onde a civilização deveria acontecer. Para os naturalistas, não é somente a paisagem urbana que se mostra decadente, mas a total precariedade que a acompanha – faltava-lhe não só os meios, mas, também a falta de civilidade que caracterizava seus construtores e habitantes. A esse “mal” de raiz, que Torrão Filho (op. cit., 113) denomina a “mácula portuguesa” e que está associado à posição periférica de Portugal na Europa, somavam- se outras causas determinando o cenário que lhes parecia como que generalizado em todo sertão: a falta de braços escravos e o esgotamento da extração fácil do ouro. Essa situação se caracterizava pelo êxodo das cidades e uma mudança em direção às atividades agro-pastoris. Privados das benesses oferecidas pela mineração, os habitantes procuravam o campo para se estabelecer, cultivando produtos de subsistência, dos quais vendiam o excedente, tais como o milho, a mandioca, o algodão e o fumo, além da criação de gado. De forma que as afirmações dos viajantes sobre a decadência dos povoados mostram-se contraditórias com aquela em que pregavam como solução, um retorno ao campo, pois isso, já acontecia, como foi documentado por Pohl (1976, 175):

O lugar consiste numas duzentas casas, todas em péssimo estado. Em toda parte vê-se necessidade e miséria, e a povoação aparenta uma completa decadência. As casas, na maioria, estão desabitadas. Os moradores abandonaram-nas e vivem em suas longínquas roças, onde cultivam milho e feijão.

Mas, se de modo geral, a principal razão de todos os males que afligiam os brasileiros do interior era, para os naturalistas, a tão propalada indolência, a ela se juntava a degeneração moral que os atingia. Para os sábios ilustrados, esses traços de personalidade do nativo evidenciavam sua incompetência em não saber aproveitar os recursos naturais abundantes no país e reafirma seu discurso moralista, como em Saint Hilaire (1975, 52):

Se esses lamentáveis abusos ainda não tiverem sido sanados no momento que escrevo, espero que minhas palavras possam contribuir para chamar a atenção daqueles que disso precisam ter conhecimento, incitando-os a se esforçarem para que retorne ao caminho do cristianismo e da verdadeira civilização um povo que, à época da minha viagem, tendia cada vez mais a se afastar dele.

A cidade é o lócus da sociabilidade por excelência – e essa acontecia tanto nas classes mais abastadas como entre o povo mais humilde, comerciantes, artífices, ex-escravos e escravos. A festa dava lugar à evasão, à alegria e à confraternização; para a gente mais baixa as comemorações giravam sempre em torno de algum santo padroeiro, tinham caráter religioso mas, terminavam em cantos e danças. Aí se percebe que a participação dos escravos trouxera novos aportes à sociedade de então: o sincretismo religioso e a propagação das danças e cantos de origem africana que se perpetuaram na cultura brasileira. Saint Hilaire (1975, 47) assiste a uma dessas festas, a de São João, realizada em Jaraguá/GO e ao ver os europeus imitarem os gestos dos negros, sua reação é de escândalo e revela um preconceito,

Todavia, logo começaram os batuques, uma dança obscena que os brasileiros aprenderam com os africanos. Só os homens dançaram, e quase todos eram brancos. Eles se recusariam a ir buscar água ou apanhar lenha, por ser isso atribuição dos seus escravos, e no entanto não se envergonhavam de imitar suas ridículas e bárbaras contorsões.

Por outro lado, as reuniões e saraus da “elite” eram, para Pohl, uma grotesca imitação dos modos de ser e de viver que caracterizavam os europeus, tanto que contrariando o preceito português de se resguardar as mulheres, elas passaram a ser admitidas nas festas:

Há em Vila Rica o costume, não só do Governador Geral, como também das pessoas mais notáveis, de se promoverem reuniões regulares, à noite, das quais participam os dignitários da cidade e estrangeiros distintos. Só depois da chegada do atual Governador passaram a ser admitidas nessa sociedade também senhoras, que anteriormente eram mantidas distantes de tais serões.

As representações de cidade dos naturalistas que, de modo quase homogêneo, perpassam a Província de Goiás e se repetem na Província de Minas Gerais formam um panorama de locais longínquos e precários, nos quais a civilização não chegou, o que dificultava, para os governantes, a construção de uma de” nação forte e unida territorialmente”. (GARCIA, op.cit., 68)

Dessa maneira, em contraponto à noção de cidade, que deveria ser a ponta de lança da civilização nos trópicosaparece como algo negativo tanto fisicamente como no âmbito das relações sociais, a natureza surge como o grande trunfo da América e o lugar de conquistas futuras.

A natureza: a visão do paraíso e do inferno na narrativa dos viajantes

Os inúmeros viajantes estrangeiros que aportaram no Brasil no século XIX não formavam um todo homogêneo. Alguns, mais preocupados com as questões políticas não se afastaram da capital; outros atendendo aos desígnios econômicos da Coroa

dirigiram-se a pontos precisos do território de modo a proceder às investigações de que eram encarregados. “O estudo da natureza coube, no entanto, como é de se prever, aos viajantes naturalistas, que se propuseram a adentrar o interior do Brasil em busca do conhecimento de novas espécies” (LAHUERTA, op. cit., 5). Esses trouxeram aportes importantes para a ciência natural e foram responsáveis por definir melhor os traços da geografía física do país.

Por outro lado, a imagem formada diante de uma natureza exuberante que encantava e extasiava os viajantes como se retratasse o jardim do Éden da tradição cristã ou o Paraíso Terreal de que falavam os navegadores da época dos descobrimentos, na verdade, trata-se de uma idéia que desde o medievo habitava o imaginário europeu e que pode assim ser definida por Holanda (1969, 178):

Essa psicose do maravilhoso não se impunha só à singeleza e credulidade da gente popular. A idéia de que do outro lado do Mar Oceano se acharia, se não o verdadeiro Paraíso Terreal, sem dúvida um símile em tudo digno dele, perseguia, com pequenas diferenças, a todos os espíritos. A imagem daquele jardim fixada através dos tempos em formas rígidas, quase invariáveis, compêndio de concepções bíblicas e idealizações pagãs, não se podia separar da suspeita de que essa miragem devesse ganhar corpo num hemisfério ainda inexplorado, que os descobridores costumavam tingir da cor do sonho.

Se no século XIX, a idéia de Éden ainda persistia na apreciação da natureza, novos elementos vieram se juntar a fim de constituir representações sobre a paisagem brasileira nas quais predominava o sentido do pitoresco. De acordo com Belluzzo (2000, 19):

A visão pitoresca proporciona entendimento mais adequado de aspectos fundamentais da construção da paisagem, equivocadamente atribuídos ao apelo dos lugares sobre o observador. O “mundo exterior” só passa a estimular o artista quando intuído ou percebido através de códigos culturais, sendo sempre oportuno questionar a falsa suposição de que a paisagem brasileira do século XIX possa brotar de “dados imediatos da percepção”.

Entretanto, nos momentos em que se presencia a fúria da natureza através de vendavais e tempestades ou são vislumbrados soberbos espetáculos da natureza, como a vista de uma cachoeira gigantesca ou de uma floresta carregada de mistérios, outra poética perpassa o discurso dos naturalistas, como propõe Belluzzo (op. cit., 158):

As visões afirmativas da ordem humana na paisagem, do controle e supremacia do homem sobre a natureza, associadas aos padrões de apreciação do pitoresco, dominam a cena, existindo raros momentos em que se tira proveito da imensidão da paisagem em favor do desenvolvimento do sentimento do sublime, ainda que essa poética vigore paralelamente à do pitoresco.

A natureza dos campos e cerrados mineiros e goianos adquirem contornos diversos na narrativa desses viajantes naturalistas do século XIX: tanto podia significar fascínio como podia ser comparada a um deserto. Essas sensações se alternam ao longo da viagem e revelam o estado de tédio ou de entusiasmo do viajante em confronto com a paisagem. Mas é sob a lógica da ciência que ele a descreve, classifica, herboriza, enfim vai nomeando as coisas, dando-lhes uma identidade e um lugar no mundo ilustrado. Para que isso acontecesse foi necessário o desenvolvimento das ciências exatas como a física e a química e das ciências da natureza como a botânica, a zoologia e a

mineralogia, “instituindo novos campos de saber, operando mudanças na forma de ver o mundo e, consequentemente, de organizar o conhecimento sobre ele” (PEREIRA e CRUZ, 247).

O maravilhamento diante de paisagens imponentes caracterizava certos momentos da longa travessia a que se propunham. Porém, tais arroubos pouco duravam e se convertiam em meras divagações, pois, os naturalistas tinham em mente que seu objetivo era de “dimensionar o território visitado sem o “senso do maravilhoso”, com olhar de cientista; sem o “desejo do paraíso”, com interesse de aprendizado” (SUSSEKIND, op. cit., 148).

No entanto, essa dimensão do olhar “científico” na contemplação da natureza, em alguns momentos, parece dar lugar a um desarmamento no qual ele percebe uma paisagem “não atemporalizada, como nas generalizações e sistemas de classificação, mas presente, perceptível com aquela luz e aquelas cores exatas apenas naquele instante preciso” (SUSSEKIND, op. cit., 120). Como se pode observar na confissão de Pohl “(op. cit., 351) de que lhe faltavam palavras para descrever o lugar quando de sua viagem pelo Rio Jequitinhonha/MG: “Se já estávamos encantados com a visão das outras quedas de água, muito mais iríamos ficar agora com a contemplação desse majestoso e sublime espetáculo da Natureza, que se pode ver, mas não descrever”.

Para Sussekind (op. cit., 120), esses momentos de entrega na relação com a natureza, geralmente, são interrompidos por acontecimentos que interferem na contemplação rompendo assim o encanto da situação: “[...] algo parecer interferir de imediato – um ruído, um perigo, um espécime novo qualquer – e remetê-los a sua atividade princeps. Em Pohl (op. cit., 158), essa situação fica clara, como no relato seguinte:

Pela sua majestade e pujança, desdobrada em sombras solenes neste palácio de árvores entrelaçadas com os viçosos adornos da vegetação tropical, a Natureza poderia prender nossa atenção não fossem os incômodos e perigos que apresentava a continuação de nossa viagem, aliás tão agradável sob outros aspectos.

À idéia da pujança da natureza contrapõe-se, em alguns momentos, a outro tipo de representação corrente nos relatos dos naturalistas: a natureza vista como lugar ermo, desolado, cujo retrato mais próximo era a solidão dos desertos. Isto ocorre principalmente na província de Goiás devido a seu imenso território e à baixa densidade que obrigavam os viajantes a percorrerem léguas e mais léguas sem encontrar um ser humano ou outro resquício de civilização. Também o tipo de vegetação de cerrado, rala e esparsa, que cobria a maior parte de Goiás e uma porção considerável de Minas Gerais contribuía para formar a imagem de deserto. Havia ainda outro fator que fortalecia essa imagem: o habitante primitivo que, em Goiás, ocupava grande parte das terras. Em 1789, Antônio de Souza Telles e Menezes (in: Palacín, 1995, p.61) aponta: “Ainda há por descobrir e examinar uma grande parte da Capitania [...] se conservam dilatados sertões, ocupados ainda na maior parte do gentio”. Desse modo, fixada a imagem de “deserto”, por muito tempo, ela passou a definir a Capitania de Goiás.

Considerações finais

Se a “cidade” do interior do país era desfavorecida na comparação com aquelas européias, o mesmo não se pode dizer da natureza. Acostumados a uma paisagem na qual sobressaíam os campos cultivados e eram raros os espaços naturais, a natureza exuberante e selvagem dos trópicos extasiava os viajantes, os quais a considerava como a própria essência do lugar. De modo que, ao propor o retorno ao campo como alternativa à penúria das cidades, os naturalistas não somente demonstravam seu pouco apreço pelos agrupamentos humanos do interior, mas revelavam sua faceta romântica,

que tão bem caracterizou o século XIX e teve defensores do porte de Goethe e o próprio Humboldt.

A ‘‘cidade” na narrativa dos viajantes representava, ao mesmo tempo, a falta e a possibilidade de civilidade em um futuro longínquo. Mas mesmo esse progresso anunciado não encontrava seu potencial na cidade, mas estava na natureza a possibilidade de se tornar realidade. São as plantações em campos sem fim, a criação de imensos rebanhos e a navegabilidade dos numerosos rios que o tornaria possível. Isso tudo dito como que espelhando reflexos da Europa no interior do Brasil.

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