Resumo

A cartografia simbólica das representações sociais traçada por Boaventura de Sousa Santos (1988) problematiza uma concepção pós-moderna do direito orientando nossas aproximações entre representação cartográfica e representação jurídica, que se desdobram na articulação entre representação cartográfica e representação política. A problematização construída pelas intersecções entre Santos (1988), De Certeau (1994) e Acselrad (2010), aponta para a relevância epistemológica e política das iniciativas compreendidas no campo constituído pela cartografia social. Na sua elaboração é premente a porosidade ético-jurídica alegada por Santos, no tocante às tensões entre projeção egocêntrica e geocêntrica e à inscrição cartográfica de um novo senso comum; e o reposicionamento frente às disjunções examinadas por De Certeau entre escrita, mapa e oralidade. O presente trabalho posiciona a cartografia social, partir da contextualização da “virada territorial”, no sentido de indagar sobre participação, crítica, visibilidades e legitimidades, frente ao embate entre economia escriturística e alteridade territorial.

Palavras-chave: cartografia, representação, política, participação, alteridade

Abstract

The simbolic cartography of social representation - proposed by Boaventura de Sousa Santos - that ask about the pós-modern sense of law , guide the approach between cartographic representation and politic representation. The problematization articulate Santos (1988), De Certeau (1994) and Acselrad (2010), that indicate the epistemological and political relevance of social cartography field. Some aspects are imperious: the juridical and ethical porosity defended by Santos, concernig the tensions between egocentric and geocentric projection and the new comum sense registered in the mappings; and the repositioning formulated by De Certeau about map and orality disjunctions. This paper contextualizes the social cartography, the territorial turn, inquiring the sense of participation, critical, visibility, legitimacy, and the tension of alterity territorial versus scriptural ecnonomy.

Keywords: cartography, representation, politic, participation, alterity

Introdução

A cartografia simbólica das representações sociais traçada por Boaventura de Sousa Santos (1988), a fim de problematizar uma concepção pós-moderna do direito orienta as aproximações e correspondências entre representação cartográfica e representação jurídica. Esta aproximação será desdobrada na articulação entre representação cartográfica e representação política. A estratégia analítica do autor alinha-se à desconstrução da epistemologia científica da cartografia, uma vez que pretende descanonizar a independência da ciência jurídica e defender a existência da pluralidade de ordens jurídicas ou, noutros termos, múltiplos modos de juridicidade.

Um paralelo analítico é traçado entre direito e mapas cartográficos, no sentido de entender como estes modos específicos de ‘imaginar’ e ‘representar’ a realidade são tributários de representações sociais: “as várias formas de direito tem em comum o fato

de serem mapas sociais e, de tal como os mapas cartográficos, recorrerem aos mecanismos da escala, da projeção e da simbolização para representar e distorcer a realidade” (idem, p.148). Boaventura considera a hipótese de que a escala produz o fenômeno e, por isso, apresenta uma dimensão qualitativa, de modo que a mudança da escala implica também a mudança do fenômeno. Ao traduzir tal mecanismo para o direito alega:

Estas formas de direito criam diferentes objetos jurídicos a partir dos mesmos objetos sociais empíricos. Usam diferentes critérios para determinar os pormenores e as características relevantes da atividade social a ser regulada. Estabelecem diferentes redes de fatos. Em suma, criam realidades jurídicas diferentes. (idem, p.149-150)

O autor identifica mais pontualmente três ordens jurídicas: o direito local (ou vernacular); o direito estatal, consubstanciado pelo Estado moderno e pela ciência política institucionalizada com o direito; e por fim, o direito internacional. Quanto à projeção coloca que cada tipo de projeção determina formas e graus distintos de distorção nas regiões de centro e periferia da superfície projetada, cujas regras são conhecidas, dada sua natureza geométrica. Dirigindo-se ao direito afirma “tipos diferentes de projeção criam objetos jurídicos diferentes e cada objeto jurídico favorece uma certa formulação de interesses e uma concepção própria dos conflitos e dos modos de os resolver.” (idem, p.152) Dadas as implicações sobre extensão e angulação dos territórios, o autor caracteriza a projeção como um aspecto de dramatização das conformações espaciais, por dois vieses principalmente: a projeção egocêntrica e geocêntrica. Trata-se de uma classificação definida por diferentes representações do objeto social em questão, que correspondem a formas de regulação jurídica com especificidades históricas.

Remete-se às considerações de Weber quanto às diferentes comunidades jurídicas vigentes no passado, constituídas por parâmetros como o nascimento, a religião, a etnia ou a ocupação. Neste contexto, predomina o direito egocêntrico fundamentado por representações subjetivas e particulares, próprio e aplicado em um grupo social específico. O direito geocêntrico, por sua vez, configura um direito geral, exercido em todo o território, decorrente da consolidação da economia de mercado, da burocratização das relações sociais e suas instituições. “O Estado moderno se transformou numa instituição coerciva global e o seu direito passou a aplicar-se a todos os indivíduos e a regular de modo geral e abstracto todas as situações.” (SANTOS: 1988, p. 158)

A simbolização como terceiro mecanismo é condicionada pelos anteriores e classifica- se de acordo com os níveis de abstração adotados nos símbolos. Dividem-se em sinais icônicos, cuja visualidade é figurativa e naturalista; e em sinais convencionais, como o próprio nome declara, são convenções arbitradas como detentoras de um índice de abstração apto a comunicar universalmente determinada ideia. Para incorporar essa classificação como uma simbolização jurídica da realidade, o autor delimita dois estilos, correspondentes respectivamente aos dois tipos de simbolização: bíblico e homérico. No estilo jurídico bíblico predomina uma juridicidade imagética, formulada por descrições figurativas e concretas, por meio de sinais icônicos e expressivos. O homérico contrapõe-se como uma descrição formal e abstrata, constituída enquanto juridicidade instrumental.

Em linhas gerais, depreende-se da analítica proposta por Santos, elementos para pensar a dimensão política da noção de representação. As implicações entre geocêntrica, egocêntrica, bíblico, homérico, direito nacional, internacional e local inserem na presente problematização modos de formular e constituir direitos relevantes para a problematização da legitimidade das múltiplas formas e ferramentas de regularização do espaço. Sua análise debruça-se sobre três estudos vinculados à sociologia do direito, realizados em Portugal, Cabo Verde e Brasil. Por ora, nos deteremos:

Na investigação no Brasil, que foi realizada em 1970, no Rio de Janeiro e, em 1980 no Recife e trata das lutas sociais, jurídicas e políticas dos moradores das favelas contra o Estado e os proprietários privados do solo urbano no sentido de garantirem o direito à habitação nos terremos que eles ocupavam ilegalmente. (SANTOS: 1988, p.148)

Este caso interessa pontualmente, pois coloca em questão os modos como se instituem as propriedades privadas na cidade, a partir dos mecanismos cartográficos de representação/ distorção da realidade, enquanto processos coimplicados e acessados pela perspectiva da sociologia do direito. Ao analisar as duas cidades, Santos detectou a ideia de interlegalidade, sugerindo que no espectro dessas lutas é insuficiente pensar em oposições entre as diversas categorias levantas na cartografia simbólica do direito. Compreende que a interação escalar entre direito local e direito nacional, projeção egocêntrica e geocêntrica, provoca uma tensão dialética entre representação e orientação, posição e movimento. Rompe-se a fronteira do particularismo e o fenômeno da disputa pela propriedade efetiva-se pela porosidade ética e jurídica, adentrando instâncias jurídicas alinhadas à hegemonia da propriedade privada mediada pelo Estado.

Relações entre ‘economia escriturística’ e privatização

No momento em que se consolida o princípio da propriedade privada burguesa, a dimensão espacial assume centralidade nas estratégias de regulação viabilizadas pelos instrumentos de abstração e equivalência universal. Esse processo de hegemonia da regulação jurídica pelo enquadramento do Estado Nacional, tributário do direito geocêntrico, apresenta intercorrências com a produção cartográfica hegemônica, que instrumentaliza os modos de representar o espaço e definir os termos do seu acesso, domínio, propriedade e uso. O autor cita o contrato como o centro da projeção hegemônica das representações sociais instituídas via direito burguês. Às associações entre direito x espaço x cartografia e legitimidade política associo as proposições sobre economia escriturística:

A empresa escriturística transforma ou conserva dentro de si aquilo que recebe do seu meio circunstancial e cria dentro de si os instrumentos de uma apropriação do espaço exterior. Ela estoca aquilo que vai selecionando e se dá os meios de uma expansão. Combinando o poder de acumular o passado e o de confrontar a seus modelos a alteridade do universo, é capitalista e conquistadora. (...) A escritura se torna um princípio de hierarquização social que privilegia ontem o burguês, hoje o tecnocrata. Ela funciona como a lei de uma educação organizada pela classe dominante que pode fazer da linguagem (retórica ou matemática) o seu instrumento de produção. (DE CERTEAU: 1994, p. 226-230)

Nessa passagem, alteridade corresponde a um conjunto mais abrangente que a dimensão espacial, envolve práticas correlatas ao “corpo vivido” (idem) atracadas ao lugar, à oralidade, à terra, as tarefas não - verbais. A escriturística ao confrontar-se com a alteridade constrange o outro e, no caso da presente análise, os outros modos de se relacionar com o espaço, sua figuração, expressão, visibilidade, materialidade, submetendo-o aos seus pressupostos econômicos, científicos e jurídicos. Na acepção de Acselrad (2010) poderíamos falar de “economia territorial de signos”, que diante a concepção de controle e apropriação mencionada, efetiva o processo de interceptar e enquadrar a alteridade territorial por pressão fundiária, desenvolvimentista, muitas vezes de envergadura internacional.

A análise de Certeau sobre a disjunção entre oralidade e escritura no seio do fazer histórico relaciona-se ao exame da disjunção entre itinerário e mapa, narrativa e mapa operada na transição da lógica medieval-teológica para a modernidade-iluminista. A cartografia moderna e científica insere-se como um dos instrumentos protagonistas dessa economia escriturística, voltada à apropriação do espaço exterior. “A produção de mapas, no caso, propõe uma forma de controle simbólico e, no sentido lefebvriano, de apropriação do espaço, que se articula a disputas territoriais por dominação de espaços

concretos”. (ACSELRAD: 2010, p.19)1

Virada territorial: sobre o confronto de legitimidades

Os rebatimentos entre De Certeau e Santos requerem uma mediação específica, uma vez que, as formulações sobre economia escriturística, constituem um ensaio-crítico direcionado à escrita da história, e por fim, remete-se à construção da ciência numa perspectiva mais abrangente. E Santos, ao propor uma cartografia simbólica do direito, recorre à metáfora da cartografia para em seguida explorá-la de forma literal. Nesta mediação, aproxima-se tais considerações, pensando na escritura enquanto a figura jurídica que institui a propriedade no atual regime fundiário e o direito enquanto a instância de legitimidade que a admite.

Ambos, direito e economia, nessa perspectiva, inscrevem um modo de regulação espacial, instrumentalizado pela cartografia e seus respectivos mecanismos de distorção/ representação da realidade, decorrendo na privatização do espaço. A cartografia que em muitos casos instrumentaliza processos entre diversas instâncias atreladas a determinado espaço, ela mesma na sua figuração canônica, ao lançar mão de convenções de uma linguagem sectária, privatiza o próprio espaço de interlocução. Apresenta-se com muitas restrições e exigências para dialogar com os particularismos inerentes à alteridade territorial.

O Estado moderno, a economia de mercado e a ciência atrelam-se e operam a partir da privatização, processos de dominação, expropriação, acumulação e concentração dos territórios, estabelecendo a ideia de território jurídico. Noutros termos, território legal, oficial, formal, arremetendo aqueles modos de representar os espaços e seus respectivos modos de juridicidade - a alteridade territorial - para os idos da ilegalidade e da informalidade. Tais alcunhas jurídicas deflagram um truncado confronto pela legitimidade dos territórios, que por sua vez, passam pela legitimidade dos sujeitos e suas práticas correlatas. Neste confronto de legitimidades, a cartografia proposta por

1 Henri Acselrad trata como “assalto territorial” (2010, 17) o processo de mercantilização das terras nas regiões da fronteira agrícola do Brasil durante o período militar. Neste momento, objetivou-se fazer funcionar o mercado de terra, incorporando-lhe a lógica do capitalismo financeiro. Observa-se nesta conjuntura, correlações analíticas com os pressupostos da economia escriturística indicada por De Certeau.

Santos, pretende trivializar o direito e incitar um novo senso comum, enquanto conhecimento simultaneamente vulgar e crítico. Identifica-se a partir da interlegalidade, um tipo de porosidade ética e jurídica como estratégia para desnaturalizar o exercício do poder decorrente da ciência jurídica dominante.

O enfrentamento crítico da conjuntura delimitada pelas relações entre economia escriturística x direito x legitimidade x cartografia aponta horizontes cartográficos engajados em mobilizações decorrentes de inúmeras condicionantes, entre elas e a mais central, encontra-se o processo denominado de “virada territorial”2. Trata-se de uma expressão cunhada por Karl Offen (2003) para definir o processo de reconfiguração do controle sobre os territórios, a partir de mobilizações cujas demandas territoriais têm acionado diferentes figuras e recursos jurídicos para efetivar a demarcação e titulação de

terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas e afro-descentes mais pontualmente na região tropical da América Latina, a partir da década de 90. A Constituição brasileira de 1988 influi na afirmação desta virada, à medida que altera sobremaneira a relação de forças entre o Estado, a economia e os sujeitos tradicionais, ao definir o mecanismo de auto-declaração como estruturante das dinâmicas de reconhecimento e titulação da terra e/ou território.

Nestas estão envolvidas questões como a dessacralização da ciência cartográfica e sua respectiva epistemologia científica; a valorização do senso comum territorial ou noutros termos da alteridade territorial; por fim, a desestabilização do diagrama de forças definidor de posições, projeções, simbologias dos sujeitos enredados nessas tramas. A aproximação do senso comum em contraponto à sua recusa em desligitimidade, desencadeou a ressemantização da cartografia em incontáveis expressões e, mais particularmente, na emergência da cartografia social, enquanto um campo em construção há aproximadamente 15 anos.

Cartografia social

A problematização construída pelas intersecções entre Santos (1988), De Certeau (1994) e Acselrad (2010), aponta para a relevância epistemológica e política das iniciativas compreendidas no campo constituído pela cartografia social. Na sua elaboração é premente a porosidade ético-jurídica alegada por Santos, no tocante às tensões entre projeção egocêntrica e geocêntrica; a inscrição cartográfica de um novo senso comum; e o reposicionamento frente às disjunções examinadas por De Certeau entre escrita e oralidade:

São múltiplas as tramas territoriais fundiárias, étnicas e políticas sobre as quais as iniciativas deste tipo de mapeamento tem se realizado no mundo. Listam-se reconstituição da geografia histórica dos deslocamentos forçados de população; definição de potenciais sócio-ecológicos do solo em políticas de acesso à terra, água e recursos em biomassa; a caracterização das regras de uso da terra e de manejo dos recursos por grupos familiares na interface agricultura-floresta; o registro das mudanças no uso do solo e sua implicações para cobertura florestal das margens dos rios e as enchentes decorrentes; reconhecimento de domínios ancestrais assegurados por novos instrumentos legais

2 Cf. OFFEN, Karl H. The territorial turn: making black territories in Pacific Colombia in Journal of LAtin American Geography 2(1), 2003: 43-73.

relativos aos direitos dos povos indígenas; instrumento de contra-mapeamento utilizado para se evidenciar a diversidade da paisagem rural e dos direitos costumeiros destinados a proteger territórios indígenas do avanço das monoculturas; manejo de conflitos por uso da terra e para o planejamento da oferta de serviços de água e infra-estrutura em assentamentos informais urbanos; mapeamentos dos locais em que houve massacres contra a população durante guerras civis. (ACSELRAD: 2010, p.12, 13)

Observa-se neste levantamento a complexidade de interesses e implicações constituintes das tramas da cartografia social, que também podem ser traduzidas por inúmeras reescritas da prática cartográfica, a saber:

  • mapeamento comunitário, etnomapeamento, contra-mapeamento, cartografia popular: referenciando-se pelos sujeitos envolvidos;

  • hackeamento de mapas ou mapeamentos livres: remetidos às “práticas de explorar aplicações de mapeamento livre ou combinações da funcionalidade de um site com a de outro”, evidenciando mais a dimensão técnica;

  • mapas performativos, mapas afetivos e experimentais, em cuja

    produção enredam-se a dimensão estética decorrente de práticas artísticas ou correlatas.3

Tais reescritas contestam práticas, rompem silêncios seculares e incorporam outros sujeitos que os encerrados pelo exercício da cartografia clássica. As forças políticas, técnicas, jurídicas e econômicas, em contundente embate pela apropriação e controle de territórios, passam por inflexões:

Cinco fatores-chave ajudam a entender a rápida adoção de mapeamento participativo e cartografia social na América- Latina: as forças transferenciais inerentes ao multiculturalismo neoliberal, associadas a reformas constitucionais; a ratificação em 1989, da Convenção de Povos Indígenas e Tribais da OIT

(169) por 14 países latino-americanos até 2009; o surgimento de movimentos sociais e das complexas redes com frequência globais, que os sustentam; o crescimento sustentado do ambientalismo global e a rápida difusão das tecnologias geomáticas. (OFFEN: 2010)4

Tais inflexões circunscrevem a ‘virada territorial’ e implicam desdobramentos quanto a noção de participação e crítica. Ambas constituem emergências políticas que incidem fortemente nas redefinições da representação, aqui compreendida pela associação entre representação cartográfica e representação política. De acordo com Krygier e Crampton (2008), a cartografia crítica disparou um “golpe duplo – um conjunto amplo de práticas imaginativas de mapeamento e uma crítica ressaltando a política do mapeamento – que

3 Essa listagem apenas expõe panoramicamente as bifurcações da prática cartográfica sem adentrar as especificidades e contextos de cada uma das expressões. Metodologicamente, traçamos um quadro panorâmico, orientado pela noção de dossiê para expor a envergadura sociológica deste fenômeno, para em seguida adentrarmos em estudos de casos articulados.

4 Estas considerações encontram-se na orelha do livro ACSELRAD, Henri; VIANNA, Aurélio (Orgs.) Cartografia Social

dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), 2010.

indisciplinou a cartografia.” (p.85) Os autores partem da ideia de insurreição de conhecimentos indicada por Foucault, retomam a teoria crítica desenvolvida pela escola de Frankfurt e a filosofia crítica de Kant para afirmar a crítica como um exame dos pressupostos de um campo do conhecimento.

Uma política do conhecimento afeita às práticas imaginativas, alteridades territoriais e à hipótese de que os mapas produzem a realidade tanto quanto a representam. As representações cartográficas enfocadas pela perspectiva da crítica e da participação alteram significativamente as legitimidades políticas, uma vez que a alteridade territorial passa a ser incorporada como constitutiva do regime de visibilidades cartográfico. Insurreição dos mapas, ataque à economia escriturística, povoamento do saber cartográfico por um novo senso comum, transformações substantivas que apontam para novas mobilizações políticas em curso. Tais mobilizações desestabilizam o jogo das representações políticas, conjugando movimentos de insurgência, descolonização, resistência, emancipação, que por sua vez são fortemente tencionados pelas estratégias de dominação, controle e regulação, num incessante e intrincando jogo de representações.

Rebatimentos entre representação cartográfica e representação política

As cartografias sociais são perpassadas por todos estes processos e os próprios pressupostos de participação passam a compor ambiguidades entre emancipação e regulação. O pressuposto da participação passa a compor o léxico das agências de desenvolvimento multilaterais, que vem adotando as chamadas metodologias de pesquisa participativa, integradas por métodos de pesquisa participativa e pelas tecnologias SIG´s e sensoriamentos remotos, forjando um horizonte propício às suas intervenções e interesses. A ambiguidade permeia diversos posicionamentos políticos dos sujeitos envolvidos e é fundamental uma análise detida, caso a caso, para entender em que direção efetivamente determinada cartografia social aponta: se partem da busca por emancipação ou se são apenas justificativas contemporizadoras de iniciativas

absolutamente colonialistas5.

A pauta da participação insere a discussão sobre democratização na questão cartográfica. A ampliação da representatividade da alteridade territorial (qualitativa e quantitativamente) nas cartografias sociais desdobra-se no aprofundamento do processo de democratização do acesso à terra e aos territórios, que por outro lado coincide com o processo de estabilização fundiária e incremento da pressão financeira e imobiliária das propriedades instituídas via cartografia participativa. Ou seja, as linhas de distinção entre dominação e emancipação, hegemonia e resistência, regulação e insurgência são extremamente tênues e o que se observa são ambiguidades no decurso destas experiências.

A centralidade da dimensão política nas cartografias sociais decorre das intercorrências com questão da democracia e o modo como tais processos efetivam-se pela politização das ‘nomeações da vida cotidiana e das práticas rotineiras de uso da terra’ (ALMEIDA apud CRUZ: 2013, 155). Como se o novo senso comum explorasse estratégias específicas inclusive para se nomearem enquanto sujeitos da ação política, afirmando-se

5 Hale (2002) articula práticas políticas de mapeamento à mobilizações políticas promovidas por um tipo de multiculturalismo neoliberal, de natureza flexível para compor com a diferença, mas manter o vínculo entre diferença e desigualdade. Para entender efeitos paradoxais e colaterais da inserção da participação na cartografia ver FOX, J., SURIANATA, K., HERSHOK, P., PRAMONO, A. O poder de mapear: efeitos paradoxais das tecnologias de informação espacial In ACSELRAD, H. (org.) Catografias sociais e território. Rio de Janeiro: IPPUR/ UFRJ, 2009.

prioritariamente sob a chancela de identidades como indígenas, quilombolas, ribeirinhos, quebradeiras de coco, camponês, afro-descendentes, entre outros. A politização enquanto disputa por visibilidade e posição, atrela-se às nomeações da vida cotidiana e às práticas dos espaços que são incorporadas nas cartografias sociais.

A representação política via representação cartográfica pode ser compreendida mediante as formulações de Fraser quanto à representação como o ‘estabelecimento de fronteiras do político’, a constituição das ‘fronteiras da comunidade política’ implicando sistemas classificatórios que incluem e excluem, definindo quem pertence ou não e quem, portanto, tem ou não direitos. Na esfera do direito, o pertencimento ao regime de legitimidades políticas aponta para a noção de cidadania territorial, alçada à condição de plataforma primordial das disputas contemporâneas, diante a suposição do território como condensador de direitos (FRASER apud CRUZ: 2013, p. 136).

O elo entre lutas sociais e lutas territoriais demonstra a reconfiguração das possibilidades de representação política via representação cartográfica. As ‘fronteiras do político’ determinantes nos processos de representação perpassam tanto a dimensão metafórica quanto a literalidade da fronteira enquanto elemento constitutivo do regime de visibilidades da cartografia. Os rebatimentos sobre a representação política na esfera do direito desencadeados pelas experiências de cartografia social conjugam a politização das nomeações da vida cotidiana e a disputa pela cidadania territorial.

A incorporação da alteridade territorial demanda transformações dos próprios mecanismos de representação cartográfica. Observa-se, por exemplo, a alteração da escala e das simbologias das cartografias, uma vez que os conteúdos e suas respectivas legendas são referenciados pelo “corpo vivido” (DE CERTEAU, 1994), impactado pela oralidade, cotidiano, memória, enfim, por múltiplas expressões da experiência concreta dos sujeitos cartografados e cartografantes. Enquanto as cartografias convencionais, na sua maioria mediadas pelo Estado ou seus duplos são formuladas via de regra, pela razão instrumental, filiada à abstração geométrica e a cegueira diante o senso comum. Nota-se uma diferença fundante nestes dois modos de representação quanto à escala, simbologia e projeção.

Vainer (2013)6 coloca a transição da escala estritamente geográfica classificada pela abrangência (local, regional, nacional, internacional, etc) e definida pelas cartografias clássicas para a escala das relações sociais, econômicas e políticas, influenciadas pelas institucionalidades envolvidas nos processos. Retomando as categorias indicadas por Santos, observa-se na cartografia social uma interação dialética entre egocentrismo e geocentrismo, localização e orientação. Ou seja, rompe-se com a hegemonia geocêntrica, calcada no estatuto da localização geográfica e abre-se para o diálogo com os particularismos que podem redefinir algumas fronteiras da comunidade política e orientar movimentos impensáveis para a condição estática das cartografias hegemônicas. Tais movimentos compreendem por vezes processos de transformação das propriedades instituídas, a partir do reconhecimento de direitos territoriais e ou redistribuição de terras.

6 Estas pontuações de Vainer são expostas num texto, em que diversos outros autores são encadeados a fim de caracterizar um diálogo cf. ACSELRAD, Henri e VIÉGAS, Rodrigo N. Cartografias sociais e territórios – um diálogo latino-americano. In ACSELRAD, Henri; VIANNA, Aurélio (Orgs.) Cartografia Social dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), 2010.

Um aspecto fundamental para entender esta conjuntura é a disseminação – alastramento de um processo frenético de exploração das tecnologias digitais que veem permitindo um volumoso trabalho de produção cartográfica tanto por especialistas quanto por usuários dos sistemas computacionais e informatizados da atualidade. Tratam-se das Tecnologias de Informação Espacial (TIE)s – em que se inserem ferramentas tais como os SIG (Sistema de informação geográfica), os procedimentos de Geoprocessamento, os GPS (Global Positioning System), o Goolge Earth e Google Maps.

As TIEs constituem num sistema complexo de práticas materiais e conceituais que inclui: a extração de matérias primas; sua manufatura em ferramentas como unidades de GPS, notebooks e satélites; a estocagem de informação em massa, base de dados mediadas pela internet; propaganda e marketing dessas ferramentas, serviços a elas associados e os “mundos” aos quais elas dão acesso; a constituição de instituições legais e regulatórias específicas; novos padrões de saber perito nas disputas legais em torno do uso da terra; e uma redefinição das políticas de desenvolvimento. Enquanto tecnologia, as TIEs transformam o discurso sobre a terra e os recursos, o sentido do conhecimento geográfico, as práticas de trabalho desenvolvidas por profissionais da cartografia e do direito, e, em última análise, o próprio sentido do espaço. (FOX et all: 2008, p. 74)

A radicalidade desta transformação técnica coloca-se central na emergência da cartografia social. É a partir do alastramento desse complexo sistema de tecnologias que se descortinou a possibilidade de inserção do saber cartográfico em outros circuitos de produção. Do ponto de vista da representação gráfica das cartografias, significa atrelar a sua figuração ao ponto de vista aéreo (olhar divino) já consolidado, aquele mesmo questionado por De Certeau, por interferir nas injunções entre relatos e espaços. Entretanto, ainda que o ponto de vista permaneça, os observadores alteram-se substancialmente e vitalizam elos entre relatos e espaços, por vezes são incorporados desenhos manuais, expressões locais, manualidades e oralidades descartadas pela ciência régia.

Convocam a cosmografia enquanto regime de propriedade de determinado grupo, vínculos afetivos específicos, história de ocupação guardada na memória coletiva, uso social que se dá ao território e formas de defesa dele (LITTE: 2001, p.4), a integrarem a centralidade das projeções cartográficas, reconfigurando as possibilidades de ação política dos sujeitos aí implicados. A ação política vinculada à virada territorial e à abrangência dos desdobramentos da cartografia social provoca significativas alterações numa conjuntura declaradamente assimétrica quanto às possibilidades de representação política.

O histórico de conflito e luta, via de regra, inscrito na cosmografia desses grupos minoritários, passa por uma inflexão substantiva quanto ao próprio sentido assumido pelo espaço. Neste campo de batalhas enredam-se novos sujeitos e modos de articulação política, que atracados às reconfigurações das escalas de ação com o alastramento dos sistemas digitais de comunicação impugnam a invisibilidade, armados com a cartografia enquanto instrumento jurídico. Estes processos de ativação política não se restringem à mediação cartográfica, passam a compor um conjunto abrangente de modos de inscrever tais cosmografias no escopo de visibilidades legitimadas pelos saberes peritos, ou seja,

ampliam o repertório de instrumentos jurídicos admitidos nestas frentes de batalha. É recorrente encontrar menções a dossiês, fascículos, publicações diversas, kits de tutoriais para mapeamentos participativos. Enfim, a multiplicação de instrumentos adotados faz jus ao desafio de incorporar a alteridade territorial e aos contundentes confrontos decorrentes dos tencionamentos com a economia escriturística.

Referências bibliográficas

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FOX et all. O poder de mapear: efeitos paradoxais das tecnologias de informação espacial. In ACSELRAD, Henri (org.) Cartografias Sociais e Território. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), 2008.

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