Resumo

Este trabalho desenvolve e expande temática já abordada anteriormente pelo autor , as visões de Blaise Cendrars e Le Corbusier sobre o Brasil no período entre as guerras mundiais, a partir das visitas por eles realizadas ao país. Abordamos neste texto especificamente a percepção por ambos do Brasil como lugar de uma utopia moderna a ser construída, espaço exemplar de uma modernidade extrema e de uma temporalidade que oscila entre um ritmo de constante mutação e o tempo remoto do mito. Textos de ambos sobre o Rio de Janeiro e fabulações do poeta sobre o que viria a ser Brasília são enfocados enquanto exemplares de visões e proposições utópicas modernistas.

Abstract

This work develops a thematic already approached in earlier paper, the visions of Blaise Cendrars and Le Corbusier about Brazil in the period between the world wars. Based upon texts both produced inspired by their own visits to the country, we emphasize the conception of Brazil as an utopia to be build, a place where time itself is convoluted between the acceleration of the modern era and the immemorial pace of a remote frontier of civilization. Writings of the poet and the architect about Rio de Janeiro and the extremely imaginative anticipation of what could be Brasilia by Cendrars are examined as exemplary visions and propositions of modern utopic thinking .

O poeta e o arquiteto e suas visões utópicas de um Brasil moderno

Em sua primeira viagem ao Brasil em 1929 Le Corbusier segue os passos do seu grande amigo escritor Blaise Cendrars em suas visões e impressões sobre o país, sua paisagem e seu povo, que adquirem caráter de uma verdadeira epifania, seguida imediatamente da formulação de um dos seus projetos urbanos mais radicais, os viadutos habitáveis sinuosos, desassombrada expressão utópica modernista.

Nos textos sul americanos, Le Corbusier deixava clara a influência de Cendrars, responsável, juntamente com o pintor Fernand Léger pelo convite que Paulo Prado faria ao arquiteto para visitar o Brasil em 29. O poeta e o arquiteto nunca estiveram no Brasil

ao mesmo tempo, mas a “presença” de Cendrars se manifesta em diversas passagens e de diversas formas ao longo dos relatos corbusianos sobre a viagem. Como afirmaria o arquiteto: “Desde 1925, Paulo Prado me acenava de São Paulo e Blaise Cendrars, de Paris, empurrava-me pelas costas à força de argumentos, mapas geográficos e fotografias”. (LE CORBUSIER, 1987,c, p.85)

O Rio de Janeiro fascina Le Corbusier, não só pela famosa paisagem espetacular, já

reconhecida mundialmente, mas também por seu povo e pelo que ele considerou como o lugar privilegiado de emergência de uma nova era. Para Le Corbusier isso implicava a criação de uma nova forma urbana sem precedentes, pois para o arquiteto, a grande transformação civilizatória que almejava somente seria possível através de um ato construtivo gigantesco.

O registro das viagens corbusianas de 29 pela América do Sul, consolidado nos textos Prólogo Americano, Corolário Brasileiro e Espírito Sul Americano ), não deixa dúvidas sobre a fascinação que o Rio exerce sobre o arquiteto e sobre a importância especial que ele conferiu à cidade no conjunto de suas experiências e observações. Cendrars, em poema celebrando sua visão do Rio já havia qualificado a cidade como o “paraíso terrestre”, completando: “Enfim nossos olhos chegam até o sol! O simples fato de existir é uma verdadeira felicidade. Uma revelação.[...] A Terra Prometida. O Paraíso[...]”.(CENDRARS, apud AMARAL, p.186) Le Corbusier, seguindo o poeta, depois afirmaria: “Como minha pirâmide de troféus da América é bela, portentosa e incitadora! O Rio é o ápice da pirâmide!” ( LE CORBUSIER, 1987,c, p.72).O Rio é uma explosão lúdica e criativa, expressa na abertura do Corolário Brasileiro: “Quando tudo é uma festa.” ( LE CORBUSIER, 1987,a, p.85) Le Corbusier prossegue em prosa poética:

”[...] quando, depois de dois meses e meio de dificuldades e de concentração tudo explode em festa; quando, no verão tropical, o verde nasce na borda das águas azuis, ao redor das rochas rosadas: quando estamos no Rio de Janeiro[...](LE CORBUSIER, 1987,a, p.87)

A fascinação pela visão do Rio é cantada por Cendrars e Le Corbusier no mesmo

diapasão, com cores flamejantes e interjeições, visão de uma natureza edênica, em momento pessoal de exultação.

Mas a epifania carioca logo cede a um impulso construtivo, de “enfrentamento” a paisagem tanto no poeta quanto no arquiteto. Em entrevista a Sérgio Buarque de Holanda, em O Jornal, do Rio de Janeiro, de 23/09/1927 (CENDRARS, apud (EULÁLIO, 2001, p.418), Cendrars discordava da reação do dramaturgo Pirandello, que ao visitar o Rio havia opinado pela preservação da paisagem carioca, contra as construções em altura que já começavam a surgir na cidade. Ele afirmaria: “Creio mesmo que embora se fizessem aqui edifícios duas ou três vezes maiores que em Nova York, a linha da paisagem nada sofreria. A própria natureza dá o exemplo a seguir. [...] exige resposta à altura, conforme com a linha da paisagem[...], a própria natureza dá o exemplo a seguir.”, com arranha-céus “[...] duas a três vezes maiores que em Nova York”.(CENDRARS, apud EULALIO, 2001, p. 419)

Seguindo o poeta, dois anos depois Le Corbusier iria propor seus mega viadutos no mesmo espírito de enfrentamento radical, o que ele reconheceria explicitamente lembrando que Cendrars havia afirmado: “[...]‘O que quer que eles façam com seu pequeno urbanismo, serão sempre esmagados pela paisagem’ “.(LE CORBUSIER, 1987, b, p.70-71)

Le Corbusier anuncia os viadutos como verdadeira revelação de um prodígio, e o texto assume o tom inflamado do sermão, concluindo com a apresentação da grande invenção:

Ele complementa:

”[...] então, no Rio de Janeiro, cidade que parece desafiar radiosamente toda a colaboração humana com a beleza universalmente proclamada, somos possuídos por um desejo violento, louco talvez, de tentar, aqui também, uma aventura humana — o desejo de jogar uma partida a dois, uma partida “afirmação-homem” contra ou com “presença-natureza?” (LE CORBUSIER, 1987, a, 1987, p.88-89)

Mas, quando no Rio tudo está em festa, pois tudo é tão sublime e tão magnífico, quando voou-se longamente de avião como pássaros planadores sobre a cidade, as ideias nos invadem. ( LE CORBUSIER, 1987, a, p.89)

Finalmente , a grande invenção é introduzida:

“Do avião desenhei para o Rio de Janeiro uma imensa auto estrada, ligando à meia altura dos promontórios, abertos sobre o mar, de modo a unir rapidamente a cidade, pela auto estrada aos interiores elevados dos platôs salubres” ( LE CORBUSIER, 1987, a, p.94)

Em seguida Le Corbusier louva a própria criação:

Existe algo de mais elegante que a linha pura de um viaduto no meio de um sítio movimentado, e de mais variado que suas subestruturas enterrando-se até os vales ao encontro do solo? (LE CORBUSIER, 1987, a, p.93-94)

Os viadutos são propulsores de uma nova utopia, da segunda era da máquina:

[...] a admitir que à hora da propulsão, da explosão que eleva prodigiosamente as energias anglo-saxônicas e que precipita o mundo moderno no caos, sucederia a hora cartesiana da medida, da leitura, da escolha, da proposta, da construção, da realização do equilíbrio.. (LE CORBUSIER, 1987, b, p.69)

O gesto brutal de enfrentamento da paisagem pela construção, desejado pelo escritor e pelo arquiteto fazia parte de um projeto mais amplo que colocava o Brasil, e, como em antonomásia, o Rio, como lugares potenciais de uma nova etapa do desenvolvimento humano. Cendrars já havia categorizado o Brasil como “esperança do Homem Branco” e Le Corbusier iria qualificar os brasileiros como potenciais executores de sua tão almejada nova era da máquina, superando o que considerava os grandes males de sua

época, dominada pelo “espírito germânico e anglo saxão”. Encarnando a figura de um Utopo ou de um apóstolo Le Corbusier, finalmente exorta os latinos do sul à nova era, que o viaduto não só simboliza como engendra:

Crepúsculo talvez de Nova York Aurora, certamente, na América do Sul

Latinos, eis aqui a voz do seu destino: Sorridente, claro, belo

Le Corbusier. (LE CORBUSIER, 1987,b p.71)

Os viadutos sinuosos foram criados no Rio pela primeira e ultima vez, nas visitas corbusianas de 29 e 36, somente aplicados em Argel. Constituíam-se de gigantescas estruturas de desenvolvimento horizontal “infinito” de aproximadamente 80 metros de altura que absorviam grande parte da infra estrutura e estrutura urbanas, criando “terrenos no ar” de dupla altura a serem preenchidos com habitações, abrigando comércio e serviços em áreas livres comuns intermediárias e uma via expressa no seu topo. LeCorbusier há muito propunha prédios altos mas de grande desenvolvimento horizontal e que absorviam as funções urbanas principais tais como os “redents”. Entretanto, Rio emerge esta versão a curva inspirada nos meandros dos rios, que permite a adaptação à topografia, mas mais que tudo, enseja uma poética de mimese e paradoxal enfrentamento entre construção e natureza.

Elemento essencial da nova era, a proposta era utópica também no sentido fundamental do “topos”, sustentando uma alteração espacial como forma de gerar transformações de toda uma sociedade. Os viadutos são projetos exemplares de uma utopia modernista tentando vencer o paradoxo da temporalidade convulsa da era moderna, significando simultaneamente a constante inovação e revolucionamento modernos, e uma durabilidade “eterna” de soluções clássicas.

Quando enfatizamos o caráter utópico presente em Le Corbusier, nos referimos a novas formas propositivas, projetos radicais voltados a uma “nova era da máquina”. Como colocou Vidler ( 1978, p.34), a significação da utopia ao longo da modernidade sofreu transformação no sentido de sua objetivação desde a busca do inatingível e do fabuloso de Thomas Moore até o século XIX, quando a industrialização e urbanização acelerada europeia, aliadas a novas condições técnicas de construção passaram a tornar possíveis grandes transformações dos assentamentos. Habermas igualmente considera que o que no início eram essencialmente “[...] Cenários utópicos [que] ainda puderam ser chamados de romances alegórico-políticos porque seus autores jamais deixaram dúvidas sobre o caráter ficcional da narrativa”, a partir do século XIX, deram lugar a novas formulações de utopias sociais que, [...]“fundidas ao pensamento histórico [...] despertam expectativas mais realistas. Elas apresentam a ciência e a técnica e o planejamento como instrumentos promissores e seguros de um verdadeiro controle da natureza e da sociedade” ( HABERMAS,1987 p.105). Colin Rowe e Fred Koetter colocaram, em Saint-Simon, o ponto de inflexão histórico em que a utopia “clássica” cedeu lugar à “utopia ativista”, enquanto “projeto para o futuro” (ROWE,

KOETTER,1998, p.25), seguido no século XX por uma virtual extinção do gênero enquanto discurso, que entretanto se insinua no urbanismo modernista.

Os viadutos cariocas são projetos prospectivos que desejam realização, mas ainda guardam características do pensamento utópico original. São invenções improváveis, mas que se colocam como solução única, inevitável e necessária. O discurso de sustentação é uma narrativa próxima de um relato de viagens ou de uma aventura, associado a uma descoberta, a uma epifania, em tom de ato heroico. Todo o texto se volta a trazer efeito de verdade, tornar o improvável inevitável, o que implica l frequentemente no uso da primeira pessoa e do tempo verbal presente. Narra-se um prodígio, ato transformador em que o autor transfigura-se em autoridade incontestável, verdadeiro Utopo fundador.

A proposta utópica é ao mesmo tempo localizada, mas universal, potencialmente aplicável em qualquer lugar. Ao viadutos são cariocas em sua concepção, mas também emergem em Argel e Montevideo sugerindo um padrão. Trata-se de formular uma espacialidade abstrata e genérica, mas guardando rígida e necessária relação entre espaço e sociedade. Tem como premissa que um modelo o social, não é possível sem o outro, o espacial.

O tempo utópico também é genérico e a-histórico. As propostas corbusianas e os viadutos em particular são “eternos”, a partir do ato espetacular de sua realização não se modificam, inflexíveis e infensos ao tempo.

Para Cendrars, o Brasil tornou-se verdadeira “segunda pátria espiritual”( CENDRARS, 1969, p.397.), elemento central de sua vida e obra. Como afirma João Alves das Neves: “[...] a série de histórias, falsas ou autênticas, que Blaise dedicou ao Brasil não tem conta. Porque desde a revelação de 1924, nunca mais este país deixou de estar presente em suas páginas” (NEVES, apud AMARAL, 1997, p.187.). Conforme Alexandre Eulálio, o Brasil, para Cendrars , torna-se: “[...] a encarnação definitiva do mito da viagem, tema central do primeiro período de sua obra[...]” que evoluiria para uma viagem interior e intensa reflexão existencial. (EULÁLIO,2001,p.32) Tal transformação “[...]tem lugar sob o signo do Brasil, seja do ponto de vista temático, seja do ponto de vista das sugestões transcendentes que Cendrars julga ali descobrir.”(EULÁLIO, 2001,p.33)

Cendrars descreveu o país em muitos aspectos de sua complexidade, em sua modernidade bruta, onde índios e mamelucos dos sertões e florestas conviviam com guindastes e silos, com elites financeiras sofisticadas locadas em um planalto, auto isoladas de seu próprio entorno social. Como disse Sérgio Milliet, Cendrars baseou-se em um Brasil de aventuras inventadas, mas “[...]tão bem as imaginou e com tal senso de realidade que o leitor fica sem saber se ele as inventou ou as viveu.”. Milliet conclui que Cendrars “[...] inventa um Brasil admiravelmente brasileiro, sem um único fato real. (MILLIET,apud AMARAL,1997, p.52)

Para Cendrars o Brasil era fascinante não apenas pelo exótico, mas pela dualidade entre autóctone e o universal entre o tempo do atávico e imemorial das sociedades arcaicas ou selvagens em relação dialética constante com o ritmo acelerado e convulso da era moderna. No Brasil se encontravam as esferas opostas da modernidade, desenvolvimento urbano, tecnológico e um vasto mundo periférico e intocado a ser

desbravado. A paisagem, entretanto não é intocável, tornando-se um dos polos antinômicos da oposição entre o selvagem e o moderno. Cendrars viu no Brasil não apenas os animais e a floresta e os tipos humanos que retratou em seus poemas e romances, mas também a presença moderna das gruas e do silos e dos grandes cargueiros, enfocando o contraste entre essas duas forças. De um modo delirante, compreendeu profundamente o Brasil em sua complexidade, em sua modernidade bruta. O Brasil de Cendrars era lugar de um tempo de velozes transformações, relativístico, instável e turbilhonado. Ele percebeu que o país não era um recanto de exceção periférico, mas um lugar essencial da modernidade, onde os processos céleres de transformação da era da máquina eram, talvez, mais radicais. Em “Le Brésil des hommes sont venus” emerge este pais sempre “do futuro” :

Le Brésil pays d’avenir

Et je trouve ma formule bonne qui résume en trois mots comme un slogan de propagande ou de publicité la longue lettre dithyrambique du notaire royal (Don Manuel 1er) et les descriptions enthousiastes, lyriques interessées des chroniqueurs et des autres descobridores et conquistadores.( CENDRARS, apud HARRIS, p. 79)

L’histoire du Brésil est shakespearienne. Être ou ne pas être. Le passé. L’avenir. On n’a pas fini de décrouvir le Brésil que vit au jour le jour. Est-ce sa force

ou sa faiblesse? (CENDRARS apud AMARAL,1997, p.45)

No próprio título, “Le Brésil des hommes sont venus, aparece esta temporalidade alterada, moderna por excelência, uma história sem presente nem passado, eterno amanhã, em constante descobrimento e redescobrimento. Os homens do Brasil não eram do lugar, para lá vinham, constantemente, de qualquer outro lugar. Eram a alteridade se transformando em identidade. A implosão do tempo no eterno presente aliado a um futuro incerto, fascina Cendrars:

C’est le Brésil d’aujourd’hui, tel qu’il est en dehors ou futuriste. C’est le présent! Le pré- sent, la chose plus difficile à fixer à l’objectif, fugitive au monde.C’est l’instant. Un instant hereux entre deux révolutions. L’instable

en équilibre. Car ce que l’on a sous les

yeux n’est jamais vu. C’est toujours nouveau. Comme dit David Ward Griffith, l’inventeur de la téchnique cinématographique.

What is ever seen is never see. (CENDRARS apud AMARAL,1997, p.45)

O caráter “surreal” e paradoxal aparece destacado, no início, “Être ou ne pas être”, e no fim, “What is ever seen is never seen”. Cendrars parece buscar o sentido de um mundo em mutação e em desequilíbrio dinâmico. O oxímoro “o instável em equilíbrio” (l’instable en équilibre) esclarece a violência de uma modernidade periférica brasileira, onde tudo sempre é novo.

Tratava-se de um Brasil que, como afirma Amaral, fazia mesmo um brasileiro, que normalmente ressentia o tratamento grosseiramente “exótico” dado por estrangeiros à nossa realidade, sorrir “saborosamente.”

No fim de sua vida, Cendrars falou sobre seu querido Brasil utópico, projetando um futuro maravilhoso e delirante para o país. Utopialand, le pays qui n’est à personne, incluído no livro Trop c´est trop, foi quase totalmente dedicado ao Brasil. Nele, reaparece o Rio, como – “insólita capital” – “metrópole melhor iluminada do mundo, melhor do que Paris, a Cidade-Luz, “O tom é caracteristicamente cendrariano, parte de uma realidade fática e se lança em uma fabulação alucinada, representados pela capital real de então e a futura imaginada. “Rio de Janeiro, a única do universo onde o simples fato de existir é uma verdadeira felicidade, Rio de Janeiro, rainha dos trópicos [...]. Mas o Rio de Janeiro não passa de uma capital provisória.”( CENDRARS apud AMARAL, 1997, p.182)

No capítulo “Gigantismo”, Cendrars descreve aspirações dos brasileiros, “... conhecidos por seu amor à terra e pelo gosto desproporcionado pelas realizações grandiosas...” a tornarem o Brasil uma potência mundial. Tal seria a justificativa da criação de Brasilia. Cendrars conclui: “... Têm as possibilidades e os meios. Por isso vão mudar a capital, o que pode parecer absurdo ou catastrófico ou delirante, um ato gratuit”.(CENDRARS apud AMARAL, 1997, p.183)

Cendrars novamente comentava um Brasil “país do futuro”, lugar de uma temporalidade alterada, entre a selvageria e o mundo moderno, paraíso da instabilidade e do onírico, com sonhos grandiosos apesar do atraso endêmico.

“O passado e o futuro estão sempre no presente, unidos, mas no Brasil, mais do que noutra parte, pode ver-se que conduz aonde? pergunta-se, a segui-lo e tocá-lo com os dedos, mas para o quê? É um continente, instável, em plena formação. É o país da lavoura, enfim da loucura e das grandezas, esse sonho dos caminhantes, dos aventureiros, dos descobridores, dos conquistadores lusitanos. Quem é senhor, o homem ou a

natureza? Quem comanda, o homem ou o clima? Quem será dominado, e por quem e por quê? Mentalidade de crioulo ou pesado sonho português, qual é o sentido do mundo, sonho ou ação?”.

Tipicamente, Cendrars, mescla dados objetivos com o fabuloso, pondo em relevo o inusitado da situação real mas adicionando a esta devaneios mais extravagantes que o próprio fato. Explorava os excessos e as contradições brasileiras, fascinava-se pelo heroísmo e pelo desassombro “surrealista”. Cendrars relembra, em 1955:

Há cerca de vinte e cinco anos [que corresponde ao período em que preparava a vinda de Le Corbusier ao Brasil, com base na nova capital] uma comissão brasileira de políticos, engenheiros, geógrafos, geômetras, médicos, cientistas foi nomeada para estudar o problema da nova capital e designar o local onde seria construída do nada a metrópole do amanhã. (CENDRARS apud AMARAL, 1997, p.184)

Aqui, Cendrars relembra o fato de ter, em 1927 alertado Le Corbusier sobre a nova capital já então sugerida, elaborando sua versão peculiar dos fatos, justificando a recusa do arquiteto com fatos de diferentes épocas como a construção de Chandigarh, do final da década de cinqüenta, quase contemporânea de Brasília e ventos dos anos vinte. Do mesmo modo, a conclusão da cidade imaginária é datada no futuro então distante do ano 2000, “[...] com uma primeira fase de 10.000.000 de habitantes.” (CENDRARS apud AMARAL, 1997, p.184)

A capital imaginária é descrita por Cendrars em passagens dignas de romances de ficção científica, quando o exagero torna-se modalidade poética:

Não vou dizer o que serão o esplendor, a extensão, o conforto da futura metrópole, digna de figurar como oitava maravilha do mundo, ou das novidades que mostrará ela e suas cidades- satélites. E, claro, oferecerá hotéis de mil andares, as ruas serão climatizadas, graças a ventiladores que circularão por cima dos telhados e iluminadas, à noite, por manchas tamisadas de neon emitidas por planadores ou por bóias colocadas entre o céu e a terra, no nível dos terraços, onde pousarão, às centenas, mais helicópteros que táxis, ou nos campos de aviação, onde descerão, a cada minuto, cinqüenta aviões telecomandados, chegando a todos os azimutes ( CENDRARS apud AMARAL, 1997, p.184- 185.)

Também citava a Ville Contemporaine, com seu aeroporto inviável situado perigosamente, junto ao centro, problema que “resolveu” pela adoção de helicópteros, tecnologia inexistente à época da proposta corbusiana. Logo, misturava o onírico a detalhes “reais”, como a presença da Light and Power, concessionária de eletricidade atuando no Brasil desde a época de suas viagens:

Tudo será automático e eletrônico, os metrôs, as pontes giratórias, as represas, os trens, as usinas sem fumaça [...]. Já a Light and Power, uma sociedade canadense de eletricidade, comprou todas as quedas d’água. A cidade será dividida em bairros das nações, pois todos os povos da terra ambicionarão visitar a metrópole mágica onde em vez de um teatro ou de uma ópera, se ouvirá o rumor suave, nas caves do Banco de Estado, encerrada em cofres fortes incombustíveis, de Zoé a pilha atômica que distribuirá a riqueza e a saúde uniformemente a todos os habitantes. A alimentação será sintética e quimicamente pura. Naturalmente, as clínicas e os hospitais serão preventivos e não haverá mais hospícios nem asilos para pobres ou ricos. Nada digo das escolas, das faculdades ou dos institutos, pois isso me aborrece, mas haverá torres transparentes nas cidades anexas do rádio, da televisão, do cinema, do radar e, no meio de todas elas, a mais alta, o farol da humanidade AD Astra, talvez a primeira estação interplanetária.(CENDRARS apud AMARAL,1997,p.185)

Cendrars, no detalhamento de sua utopia, prossegue citando Le Corbusier da Ville Contemporaine, da década de vinte, evocando as torres de vidro; a centralidade dos terminais de todos os meios de transporte. Alguns aspectos do projeto de Brasília também estavam estranhamente sugeridos em Utopialand como “cidades-satélites” e a torre monumental de televisão, colocada por Lucio Costa no centro da composição. Cendrars realiza sua típica “colagem de imagens”, sempre irônico, se equilibrando entre o entusiasmo genuíno e a sátira, entre realidades e fantasias, nunca se definindo entre os dois polos. No fim do texto, Cendrars ainda se refere diretamente a Le Corbusier e os arquitetos brasileiros:

”[...] e se não for Le Corbusier, o criador, quem edificará todos esses prodígios, serão seus sobrinhos, netos ou os filhos dos sobrinhos, netos de seus alunos que se divertirão a fabricá-los, a reproduzí-los em matéria plástica colorida, fosforescente, esplendorosa, os mais belos brinquedos do mundo! É de morrer de rir!” (CENDRARS apud AMARAL, 1997,p.204)

Em post-scriptum como que emprestando verossimilhança ao delírio, Cendrars coloca o seguinte telegrama: “Rio de Janeiro (AFP). O decreto prevendo a futura transferência da capital do Brasil para o planalto central do país foi assinado na quarta- feira pelo presidente da República. A nova capital chamar-se-á ‘Brasília’”. (CENDRARS apud AMARAL, 1997, p.204)

No fim de sua vida, o poeta modernista ainda fabulava e celebrava o Brasil ao seu modo, sempre um Brasil que se arrojava para o futuro, lugar de alucinantes cenários tecnológicos, contraposto a um território virgem e selvagem. A imagem do país representava uma modernidade explosiva e queimando etapas em direção a um progresso lancinante, de certo modo expressando um desejo candente de desenvolvimento, que imperou no pais desde os anos vinte. Ao mesmo tempo, Le Corbusier faria sua última viagem ao nosso país justamente para conhecer a nova capital, que certamente inspirou. A notícia de Brasília deve ter incendiado a imaginação progressista do poeta, que já ansiava por ela em 1926. Deverá ter confirmado seus sonhos de aventura do país que amou. Parece estranhamente próprio que tenha sido possível a Cendrars antever uma delirante e ambiciosa explosão de modernidade lá “entre os índios”, no cerrado, saborear suas fantasias brasileiras extravagantes quase se tornarem reais sob seus olhos.

Como que encerrando um ciclo, na década de sessenta Le Corbusier vem ao Brasil por uma terceira e última vez, e conhece Brasilia, obra de seus “filhos” brasileiros Lucio e Oscar, como previra Cendrars.

Para o grande viajante que sou, há no planisfério áreas privilegiadas, entre as montanhas, sobre planaltos e planícies onde grandes rios correm para o mar, o Brasil é um desses lugares acolhedores e generosos que se gosta de chamar de amigo.

Brasília está construída. Eu vi a nova cidade. É grandiosa em sua invenção e otimismo; ela nos fala desde o coração. É obra de dois grandes amigos e, através dos anos, companheiros de luta: Lucio Costa e Oscar Niemeyer. No mundo moderno, Brasília é única. No Rio há o Ministério de Educação e Saúde Pública (1936-1945). Há as obras de Reidy. Há o monumento aos que tombaram na guerra. Há muitos outros testemunhos. Minha voz é a de quem viaja através do mundo e da vida. Permitam-me, amigos do Brasil, dizer-lhes muito obrigado!

Le Corbusier

29 de dezembro de 1962 Rio de Janeiro

( LE CORBUSIER, apud COSTA.1997,p.. 141)

A cidade certamente era diferente de propostas urbanísticas corbusianas como os viadutos e as “villes” iniciais, mas algo em sua forma poderia lembrar o mestre em sua

utopia brasileira, como a longa curva suave das “asas” se ajustando a topografia. A própria solidão radical da cidade enfrentando a natureza agreste representava a grande oposição enfrentada em toda a modernidade entre o artefato e o natural, entre a ação humana e o destino, oposições sentidas por Cendrars e Le Corbusier.

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