Resumo

As cidades se apresentam sob diferentes perspectivas para as pessoas, na maneira como usufruem dos seus espaços, na qualidade ou importância dada a diferentes experiências vivenciadas. Dada a velocidade com que tudo ocorre, obriga as pessoas a viverem em certas condições de suspensão, onde ver é circunstancial e provisório e, logo se apaga da memória. O ato de ver deve estar adequado à velocidade, às percepções simultâneas, às transformações e dinâmicas ajustadas a tempos cada vez mais comprimidos. Nesse conjunto complexo de relações, cuja grande maioria é efêmera, há num cenário com tantas contingências e simultaneidades que poucas coisas conseguem se tornar visíveis. Para conseguir visibilidade é preciso construir uma identidade, sob fortes conflitos nos palcos do poder, permitindo acessos a bens materiais e simbólicos. Dentro do conjunto de conflitos, muitos aspectos parecem afetar a todos de modo indiferenciado, mas principalmente o sentido de alteridade. Nessas perspectivas, muitas imagens realizadas por fotógrafos deflagram cenas reveladoras daquilo que para uma grande maioria encontra-se oculto: as imagens expõem facetas humanas complexas, onde a beleza pode advir inesperada, como poética singular de uma história de vida e servem como instrumentos de conhecimento científico e sociológico, como fragmento metafórico dessa realidade.

Palavras-chave: identidade, memória, alteridade, fotografia, invisibilidade pública

Abstract

The cities are presented from different perspectives to people, the way enjoy their spaces, quality or importance given to different experiences. In the speed which everything happens, it forces people to live in certain conditions of suspension, where seeing is circumstantial and temporary and soon fades from memory. The act of seeing must be appropriate to the speed, the simultaneous perceptions, and the transformations and dynamic adjusted to increasingly compressed time. In this complex set of relationships, most of which is ephemeral, there is a scenario with so many contingencies and concurrences that few things can become visible. To achieve visibility is necessary to build an identity under strong conflicts in the power stages, allowing access to material and symbolic goods. Within the set of conflicts, many aspects seem to affect everyone in an undifferentiated way, but mostly the sense of otherness. In these perspectives, many images made by photographers trigger scenes revealing what for most is hidden: the images expose complex human facets, where beauty can arise unexpectedly, as singular poetic story of life and serve as instruments of scientific knowledge and sociological, as this metaphorical reality fragment.

Keywords: identity, memory, otherness, photography, public invisibility

Quando as cumeeiras de nosso céu se juntarem minha casa terá um telhado. Paul Éluard

As cidades compreendem territórios fragmentados e palcos para relações diversas, sendo elas na sua grande maioria, efêmeras. Nos vários lugares apropriados, adensados em qualidades desiguais de tempo, as relações humanas dinamizam esses espaços, dando-lhes um sentido. Muitas partes desses territórios podem ser definidas por características singulares nos seus modos de apropriação, na forma com que grupos de pessoas tecem suas relações e resguardam essas suas características como partes fundamentais da identidade e da memória.

Como imagens integrantes da memória, são capazes de relacionar diferentes vivências bem como as características dos espaços onde elas ocorreram. Serão incorporadas ao imaginário e fundamentarão a subjetividade, a existência pessoal. Cada pessoa constitui um universo de experiências e de distintos sentidos atribuídos, naquilo que o lugar, a casa, a rua, a cidade possibilitou desenvolver. Nas variadas condições da existência, principalmente nas cidades, ver os outros e considerá-los dentro das relações sociais é mais do que inseri-los no corpo social. Muitas pessoas não possuem condições adequadas de ascender economicamente e tornam-se relegadas a situações subumanas, postas às margens da sociedade.

As relações estabelecidas com os outros são fundamentais, uma vez que a cidade é constituída por esses laços, e precisam estar visíveis. Quando os fotógrafos saem na cidade para capturar um instante, eles buscam fragmentos de tempo e espaço e, principalmente, de flagrar uma verdade muitas vezes invisível ou dissimulada que dispõe de força para metaforizar um universo muito mais amplo e complexo. Esse fragmento fotográfico pode dizer de forma rápida e sensível dos fatos que espreitam as relações, achado num golpe de luz e sombra e cujo âmbito expressivo é capaz de tocar nossa arquitetura interior. De modo que num mundo onde quase todos diagnosticam uma ‘escassez de sentidos’, abre-se um lugar para as questões da arte, naquilo que é sua essência: uma prática definida na produção de sentidos e na intensidade expressiva da forma e da moral (SARLO, 2006).

Ao mesmo tempo em que captura um aspecto vivido e um modo de pensar autoral, a imagem suporta abrir um universo muito profundo de coisas a serem refletidas. No âmbito social, as percepções resultam de demoradas operações de treinamento e de uma disciplina que não se interrompe (HALBWACHS, 2006), onde o olhar deve estar preparado para muitos estímulos, muitas possibilidades de desvendar significados. Diferentes dinâmicas estratégicas, jogos psicológicos, necessidades e desejos são intensificados na vida urbana (SEVCENKO, 1995). Nessas situações, as imagens são fundantes para inúmeras coisas, principalmente como instrumentos de análise do mundo e como suportes da memória (HALBWACHS, 2006).

Também podem ser enumerados muitos conflitos, e as perguntas servem para assinalar os problemas. Não sobre exatamente o quê fazer, mas esboçar novas perspectivas para perceber: como as imagens produzidas sobre diversas relações humanas desiguais na cidade podem contribuir para reflexões mais sensíveis, bem como possíveis mudanças? O que essas imagens denunciam e quais novos sentidos são possíveis de deflagrar? As representações são aptas a serem nesses casos, construções poéticas (portanto, associadas às complexidades do fazer artístico) e portam significados associados às mazelas sociais, instrumentos de denúncia social, e tornam-se capazes de indicar que essas condições não são um quadro absoluto e nem

muito menos inevitável. Provocam assim um duplo efeito sensível revelado por uma superfície pictórica que enaltece as qualidades do olhar, mas que principalmente aprofunda no sentimento consciencioso, como uma catarse. As situações dramáticas de violência trazem à tona sentimentos de terror e piedade, levando seu observador a uma condição purgatória, quando se identifica com a trágica vida alheia.

A cidade, sob o ponto de vista dos diversos tipos de exclusão parece não ter fim e é registrada por inúmeros fotógrafos, expondo facetas humanas complexas, difíceis, onde a beleza pode advir inesperada, como poéticas de singulares histórias de vida. As imagens deflagram essas circunstâncias e tornam possível restituir uma narrativa própria, aquilo que talvez seja imediato e autoevidente, mas capaz de intensificar o ser sensível. Vários fotógrafos contemporâneos, como Tuca Vieira, Vik Muniz, Thiago Fogolin, Marcus Freitas, Edison Russo, Viviane Dávila, Lucas Barros, Virgínia Rodrigues, Ricardo Labastier podem abrir frestas reveladoras naquilo que para uma grande maioria aparenta invisível.

Também muitos autores de teoria da imagem e fotografia, como Roland Barthes (1984), (1990), John Berger (1999), Philippe Dubois (1993), Jacques Aumont (1993), (2004), Boris Kossoy (1999), possibilitam discussões a serem apropriadas também no campo urbano e social, juntamente com Maurice Halbwachs (2006), Georg Simmel (2009), Nicolau Sevcenko (1995), Beatriz Sarlo (2006) e outros, criando interlocuções produtivas advindas dos registros deflagrados, bem como nos significados mediados pelos fotógrafos. Na busca da compreensão dos comportamentos e vivências, aparecem relações humanas complexas no cenário urbano com atmosfera carregada, contrastes observados na espreita singular de um mundo específico e suas sombras.

De tal modo que o conhecimento pode ter origem nessa imagem, num tipo de visão que se entende e igualmente causa desprendimento estético. O prazer de descobrir abstrai-se como conhecimento consciencioso. Nesse esforço para apreender, “a um só tempo, o momento que foge e compreendê-lo como momento fugidio e qualquer [...], o que se constitui é o ver: uma confiança nova dada à visão como instrumento de conhecimento, e por que não de ciência” (AUMONT, 2004, p.51). Essas imagens problematizam o que vemos, como vemos, permitindo analisar e criar crítica entre sujeitos. É assim instrumento de conhecimento, operando em novas posturas sociológicas, como fragmentos metafóricos dessa realidade.

Luzes, velocidade, fragmentos do real

Quase tudo se move, segue veloz um caminho. Luzes piscam e o estímulo é brilhante, de alto contraste contra os edifícios do fundo. Outras luzes são intermitentes, sinalizadoras. Veículos param, viram, seguem adiante em diferentes velocidades. Alarmes, buzinas, sirenes, motores acelerando, obras e construções, o movimento é ruído contínuo. Mais luzes nas vitrines, nas prateleiras, nos objetos, fachadas, outdoors, postes. Uma mancha passa ao lado, indistinguível, esteve ali apenas preenchendo o tempo do relance. As transfigurações ocorrem perto, outras ao longe, enquanto silhuetas entram e saem nas ruas, nos edifícios. Objetos, figuras, pessoas, veículos, todos com algum ânimo de movimento e ruído, se deslocam e imprimem nos seus transeuntes, uns nos outros, vestígios diversos.

Nas cidades ocorre uma multiplicidade de coisas dispersas, simultâneas e por isso, também confusas. Nos diversos fenômenos que nos permeiam e em particular aqueles provenientes da cultura, a arquitetura e seu âmbito urbano causam muitos estímulos num “complexo de acontecimentos sensórios que provocam uma resposta” (ECO, 2007, p.190). Todos os objetos arquitetônicos, os códigos e os símbolos inscritos, as

linguagens e demais enunciações, no âmbito urbano promovem estímulos e estes afetam os comportamentos das pessoas, impregnando-lhes uma percepção. A cidade desperta nas pessoas diversos índices, “signos que dirigem a atenção para o objeto por meio de um impulso cego, mas sempre com base em códigos e convenções comunicacionais” (ECO, 2007, p.191), e são conflituosos nesse contexto.

As cidades, de modo geral, se apresentam sob diferentes perspectivas para as pessoas, na maneira como usufruem dos seus espaços, na qualidade ou importância dada a muitas experiências vivenciadas (HALBWACHS, 2006). Mesmo os moradores podem se surpreender com determinados lugares, e são capazes de estabelecer novos vínculos afetivos em outras adjacências. Esses liames poderão se relacionar às características criadas na ambiência da praça, do parque, de um recanto, ou como recentes necessidades surgidas em novos locais, criando assim outros percursos e mais laços afetivos.

Sentir-se parte de uma cidade ocorre de maneiras muito distintas. Ainda que certos lugares possam conotar usos e funções muito específicas, claramente definidas por arquitetos e urbanistas, nada garante, de fato, que eles irão funcionar daquela maneira (ECO, 1999). As pessoas se apropriam dos espaços dos modos mais diversos possíveis e ali vão tecendo relações, criando rotinas que lhes são agradáveis ou proveitosas.

Pertencer à cidade significa construir a vida tendo por referência as bases físicas, sociais, políticas e econômicas daquele lugar. Criam-se estados de ânimo e diferentes relações, como integrantes das memórias de qualquer fase da vida, partilhando momentos e vivências com vizinhos, conhecidos, etc. Nesse âmbito, rotinas comuns poderão ser indeléveis da memória e irão constituir partes importantes dos traços da personalidade e, em grupo, formadoras de identidade.

Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós (HALBWACHS, 2006, p.30).

Os fatos da memória e igualmente do esquecimento são vitais como aspectos da sobrevivência, graças a caracteres seletivos advindos das experiências. A história pessoal se constrói muitas vezes em âmbitos de fortes conflitos, dúvidas, dificuldades, e esse acúmulo de vivências intensificarão o “eu”. Essa trama da convivência parece ser invisível na vida, mas se torna fortemente presente quando parte dela é desfeita, seja na morte de alguém próximo, seja mudando para outra localidade. Nas demarcações das fronteiras entre eu e o outro as desigualdades imperam, as diferenças tornam-se patentes e “...nós podemos superar a angústia diante da obscuridade do momento vivido, para em seguida ir ter com os outros espaços do possível” (BAVCAR, 1994, p.463), como esperança também em palcos de oportunidades.

À medida que novas relações são requeridas, onde o contato é ampliado, maior se torna o movimento do indivíduo, atenuando as referências de sua origem. O mais singular de tudo é que, na companhia da multidão é que se faz notar e intensificar o sentimento de solidão, pois estão ali como figuras de preenchimento (SIMMEL, 2009) e, nesse constante movimento há pouca relação sensível (ver fotografia de Thiago Fogolin, Fig.1).

As dinâmicas das relações urbanas também ocorrem de maneira muito rápida, onde os indivíduos cumprem determinados papéis sociais e passam a ser, aos olhos dos outros,

coadjuvantes de sua história. Como um conjunto de figurantes tornam-se tão invisíveis quanto o cenário urbano de fundo, como um teatro de fenômenos efêmeros. Nesse cenário de tanta simultaneidade, poucas delas conseguem se tornar visíveis, quando ocorre principalmente a doação daquele que olha. Visível e invisível são dois aspectos contingentes, na medida em que o ver indiferenciado é o lugar-comum.

Fig.1. Sem título, Thiago Fogolin, 2013. Disponível em <http://misturaurbana.com/> Acesso em: 06 mar. 2014.

O olhar do sujeito urbano é frequentemente aquele acometido por excessos. É obrigado à situação letárgica de ver tudo a uma velocidade sempre superior aos níveis com que desejaria. Ainda que tudo seja interpelado como possível, ao mesmo tempo, também o ato de não ver surge como defesa para o excesso. O resultado é a “perda mágica de si em um olhar, o dom de um mundo em sua imediaticidade, a capacidade bulímica de ver tudo” (AUMONT, 2004, p.64).

O sentido dado ao ver tornou-se tão crucial no contexto urbano que diferentes mídias se fazem acompanhar incessantemente, como sombras permanentes dos transeuntes. Criam artifícios, alteram estatutos de verdade, impregnam e dão novas vazões às vidas, principalmente quando fazem parecer essencial o supérfluo. Daí que muitas ilusões e muitas falsas necessidades também podem percorrer as imagens e esses conceitos forjados já chegam prontos, minuciosamente organizados com os efeitos psicológicos estudados e suas repercussões planejadas (SEVCENKO, 1995).

Os fantasmas e os cegos

Diferentes perspectivas podem ser esboçadas, distintos caracteres daqueles que vivenciam problemas, misérias, desigualdades várias, e mesmo afundados em seus redutos ainda são capazes de resguardar algo de profundo e singelo. Essa possibilidade de enquadramento espacial é algo típico da fotografia, que faz prevalecer um fragmento qualquer selecionado, cujo traço pictórico emerge na superfície os signos antes invisíveis.

O olhar se reverte em observar, enveredar-se por indícios e, apenas retira do lugar, aquilo intuído necessário. O que é visível para uns muito frequentemente não é para outros, e de longe, não é apenas efeito visual, mas reconhecer a presença do outro com tudo aquilo que se aplicaria à ele próprio: a alteridade. O homem, como ser social, interdepende dos outros e a alteridade é essa visão genérica de semelhança. O outro é parte fundamental desse mundo vivenciado: ao mesmo tempo igual e diferente de nós (ser humano social com intenções diversas, problemas, desejos e necessidades, etc.) (SILVA, 2014).

A alteridade relaciona-se também com os papéis sociais desempenhados, naquilo que o outro pode proporcionar e reconhecer, sua condição fundamental nos exercícios de funções. A identidade muitas vezes é transitória, relacionada a certa imagem criada, principalmente numa dimensão de representação fundamental perante os outros:

o objeto lhes dá (ou daria) algo de que precisam, não no nível da posse, mas no da identidade. Assim os objetos nos significam: eles têm o poder de outorgar-nos alguns sentidos, e nós estamos dispostos a aceitá-los. (SARLO, 2006, p.28).

Assim, a identidade é construída, definida pelos bens conseguidos nos palcos do poder, na disputa e acesso aos objetos materiais e simbólicos. “Identidade é um processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, os quais prevalecem sobre outras fontes de significados” (CASTELLS, 1998, p.40). A identidade relaciona-se a processos de autoconstrução, individuação, com aquilo que se representa aos outros, pelos objetos como símbolos de status e de posição no trabalho, na sociedade.

De qualquer modo, os caminhos para uma transformação, ou a busca pelo reconhecimento se dão em arenas, trincheiras, na luta entre classes contraditórias e plurais. As relações econômicas e, sobretudo de poder, fazem com que as pessoas subjuguem umas às outras. Na afirmação da identidade enuncia-se por outro lado a diferença. Aqueles incapazes de ascender não poderão ocupar certos espaços nem participar de acontecimentos: essas desigualdades repercutirão em todas as esferas (SILVA, 2014).

Assim, a atitude de não ver o outro, como se não existisse ou tratado como fantasma, parece ser normal e típica na cidade, mas não deveria ser e, torna patente diversos desprezos com que são qualificadas muitas relações. Desse modo, vive-se

numa crescente homogeneização cultural, onde a pluralidade de ofertas não compensa a pobreza de ideais coletivos, e cujo traço básico é, ao mesmo tempo, o extremo individualismo (SARLO, 2006, p. 9)

Na resposta dada à essa igualização social, a personalidade será alterada, como conjuntos de contínuas transformações por conteúdos individuais e supra-individuais, acomodados em intensidades variadas. Esses fatores contingenciais afetam a todos e também fundamentam a animosidade sensível da vida, estabelecendo sentimentos às coisas. “A reação àqueles fenômenos desloca-se assim para o órgão psíquico menos sensível e imensamente distante das profundezas da personalidade” (SIMMEL, 2009, p.05).

Os compromissos irão tornar-se cada vez mais duros e precisos, colocando a vida do outro num esquema de necessidade prática a ser explorada. Também coordenada no esquema temporal fixo e supra objetivo a ser convergida na mais alta impessoalidade, culminando no caráter blasé: seja porque os nervos já foram excessivamente expostos a reações extremas e o caráter psicológico se esvaiu, ou porque já não há mais tempo para recuperar novas energias, esse caráter da indiferença contamina a todos (SIMMEL, 2009). Há

o embotamento perante as diferenças das coisas, não no sentido de que elas não sejam percebidas, [...] mas de um modo tal que o significado e o valor das diferenças das coisas e, assim, das próprias coisas são apreendidos como nulos

(SIMMEL, 2009, p.09).

Esse estado de ânimo é a mais semelhante condição observada nas relações mercantis, capaz de dispor todas as coisas em escalas de valores. Para conservar instintos de sobrevivência, faz-se o rebaixamento dos caracteres emotivos, e esse íntimo faz tudo prosseguir com naturalidade (SIMMEL, 2009).

A ferida exposta

Os diferentes interesses em conflito faz com que os contatos sejam realizados com estranhezas, repulsas, indiferenças. Nas mais improváveis circunstâncias são formados os seres sociais, implicando traços da personalidade que estão em constante alerta, pela presença alheia que lhe adere à vista, como conjuntos de adversidades.

Esse olhar seletivo relaciona o ver, não para além das meras aparências, mas também em novas velocidades. Aquele que capta o outro no mínimo relance. Assim, muitas fotografias adquirem também essa inquietude da ação, na propriedade fugidia diversa, pelos graus de diferentes incompletudes que se fazem criar. As imagens evidenciam esses estatutos, registros com a dialética do ver, enquanto condição afetada pelas impressões pessoais e aquilo que só pode fazer sentido para além delas mesmas, por aquilo que escapa.

Nessas disposições de um tempo adensado, ajustado para ações coordenadas e impressões latentes, dissimuladas. É também um tempo simultâneo, onde o desenrolar de uma ação está associada a dezenas de outras que deveriam ser feitas, nas dinâmicas das escolhas e das múltiplas obrigações para coordená-las. Assim como o presente é esse tempo de fração mínima, que ocorre sem que se veja, num tipo de sentimento instantâneo e, na grande maioria das vezes revertido da pura banalidade (ver Fig.2).

As imagens não se prestam apenas como recortes instantâneos desse real ou como testemunhas de um evento singular num tempo particular (BARTHES, 1984). Há um rompimento com a realidade numa característica cinemática, embora tudo continue fixo, preso à superfície. No entanto, parece haver um ruir desse tempo estático nas configurações que se apresentam em instâncias de movimentos (BERGER, 1999).

Fig.2. Presente Ausente VI, Marcus Freitas, Catálogo do 4º Salão Nacional de Arte de Goiás, 2004, 52x160cm.

O presente se faz sempre ausente, nunca sentido, nunca reconhecido nessa controvérsia do tempo. Também como metalinguagem da fotografia, fixa o momento apresentado e a transcorrer fluido. Além disso, a ausência também pode significar muitas coisas: alguém que estava à vista, agora apenas na lembrança. Quer-se, a partir dessa falta de algo ou alguém, tornar manifesto contrário o tumulto dos lugares, pela contraposição dos raros momentos de individuação.

Muitas imagens capturam ocasiões vazias, silenciosas, incompletas e retratam o sentimento de solidão ou isolamento, em meio aos movimentos diversos na cidade (ver também Fig.1). As imagens podem ser afetadas de inúmeras maneiras, marcadas por sentimentos ou estados perfeitamente capazes de impregnar-lhes a superfície. Ainda que o sentido de confiança dado ao ver seja muitas vezes absurdo, pois se trata do índice de veracidade e verossimilhança (BARTHES, 1990), no entanto, muitas coisas ainda podem apresentar-se obscurecidas. A realidade é infinitamente complexa e de longe não pode ser capturada, apenas sugerida.

As fotografias contam histórias reais e instigam o olhar, criando princípios internos de narratividade (ver imagens de Edison Russo, Fig.3), como em diversos retratos de moradores de rua, onde podem ser personagens dos seus próprios dramas, quando fantasiam outros papéis, encarnam pessoas que não eles mesmos. Atuando noutros personagens criam uma arte cênica e fazem das suas vidas uma poesia pura, são “poetas de almas limpas”.

Fig.3. Poetas de Almas Limpas. Fotografias de moradores de rua. Edison Russo, 2005. Fotografia digital. Disponível em <http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/edison_russo/galeria.html> Acesso em: 06 mar. 2014.

No olhar que passa pela textura das coisas, como uma mão que tateia as superfícies, os dispositivos técnicos de captura e reprodução de imagens, deram novos sentidos ao ver. “Se a visada é uma reprodução escrupulosa do mundo natural como teatro de fenômenos efêmeros, precisa-se aí de uma acuidade do olhar, mas também de um desejo de investigação e de descoberta” (AUMONT, 2004, p.51). Os aparelhos nos evidenciam coisas pouco percebidas, num mundo dado por evidências, pelo simples e ordinário. Porque nessas cenas há sempre uma certeza de reconhecê-las, e em algum lugar podem nos atravessar.

As imagens podem romper o silêncio e certas cicatrizes acabam sendo alargadas, ao serem escavadas. As vidas expostas nas imagens tornam laceradas, pelo tempo congelado que permite o escrutínio das coisas. Aquilo que tanto é acomodado pelo olhar, que não faz parte da sua intensidade habitual, agora permanece escancarado. Nas cenas do cotidiano um resquício para conhecê-las, como aquele traço de humanidade outrora retirado lá do fundo, de onde não havia mais esperança.

Muitas das incertezas estão nas faces obscuras, daquilo que compreende a metade oposta desse mundo trazido à tona. Assim, imagens sempre tiveram, na revelação do visível, a contrapartida doutras obscuridades. O visível da imagem é apenas uma parte muito superficial daquilo que ela encobre.

Fig.4. Fotografia de Rua, Tuca Vieira, 2008. Fotografia digital. Disponível em <http://www.tucavieira.com.br/> Acesso em: 06 mar. 2014.

As cenas surgem como estímulos, como potências incompletas, cujas bordas extravasam distâncias longínquas, que podem ser intuídas e pensadas. Formam-se um conjunto de condições que ainda não estão em completo acordo e não possuem corpo. Antes de se tornar visível, antes que se instaure a luz não há definição, mas apenas latência, obscuridade. Vir à luz é tornar-se visível, identificável, reconhecer os contornos:

não podemos conceber uma arqueologia da luz sem considerar a escuridão, e sem eludicar o fato de que a imagem não é apenas alguma coisa da ordem do visual mas pressupõe, igualmente, a imagem da obscuridade ou das trevas (BAVCAR, 1994, p.462).

A escuridão nesse caso relaciona-se tanto àquilo que é ontológico na imagem – a sombra, que pelo contraste faz aparecer a luz –, como os aspectos desconhecidos que ela encobre. Mais especificamente das histórias de vida que são apenas intuídas, cuja imaginação prepara campo para a imersão. Apresentam superfície e espaços a percorrer em profundidade, e que o olho vasculhe para descobrir.

Considerações finais

A experiência do olhar pode colocar em dúvida o grau de objetividade com que acreditamos conhecer as coisas. O que vemos muitas vezes é profundamente afetado por nossa experiência, pelo imaginário, ou mesmo uma crença. Também muitas projeções perceptivas são voláteis, se alteram no tempo e, de modo geral não vemos as coisas exatamente como elas são.

Em meio a tantos estímulos, não se sabe mais exatamente o quê olhar e com que intensidade. A cidade faz confundir, embaralhar inclusive as outras pessoas, percebidas então como parte do cenário dessas simultaneidades. Nessas circunstâncias, ver pode ser considerado um ato genérico e indistinto, percorrer o olho sem precisar levar quase nada em consideração. Os corpos tornam-se vultos, as partes que se podem detectar não se distinguem claramente. Essa fusão produz coisas incompletas, estranhas e podem reproduzir muitas das percepções voláteis que

possuímos.

Em circunstâncias difíceis, e em todos os possíveis aspectos que poderiam causar espanto, constrangimento, pena e etc., são gradualmente ajustados a um senso de sobrevivência psíquica nos mais diferentes fenômenos, o que é em outras palavras, a perda da comoção, a perda do pathos. A perda da sensibilidade que é motivada pela incessante busca de posses, onde o outro é também aquele que concorre o acesso a esse mesmo bem e visto às vezes como adversário, a indiferença passa a ser uma arma para esse olhar.

A perda desse olhar pode ser sinônimo também para a perda de um caráter, cerne espiritual de bondade, gentileza, delicadeza. De sentimentos de compaixão que permitem sair do egocentrismo e entender a vida não somente por aquilo que se possui, mas compartilhar momentos de um espírito mais saudável. Assim, de modo direto e simples, as imagens falam de duras verdades, afetando profundamente o íntimo e permitindo refletir se, de fato, é essa vida social que queremos construir.

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