Resumo

O Istmo de Recife e Olinda, estreito caminho de terra entre o Rio Beberibe e o mar, que, até o começo do século XX, conectou por terra essas duas cidades, foi ao longo do tempo lugar de memória. A partir do século XX, tornou-se esquecimento. Este artigo busca, a partir da leitura das narrativas de memorialistas, identificar diferentes sentidos atribuídos ao Istmo ao longo do tempo, ou seja, diferentes formas de representação do lugar. Com a interpretação dos textos dos memorialistas, buscar-se-á entender os sentidos dados ao Istmo por cada um deles, ou seja, como o Istmo é enunciado. É válido ressaltar que não se pretende, com essa análise, proceder a uma narrativa histórica com rigor cronológico, mas entender as impressões deixadas pelo lugar em cada uma dessas pessoas, e por meio disso, compreender que significados tinha para a sociedade o Istmo em diferentes contextos históricos. Desvelar esses sentidos atribuídos não deixa de ser também uma forma de abrir caminhos para a revisão do próprio processo de tombamento do Istmo pelo IPHAN, que ao desconsiderar a sua história, contribui também para o seu esquecimento pelas cidades que por séculos conectou.

Palavras-chave: Istmo de Recife e Olinda, memorialistas, representações, enunciados, preservação

Abstract

The Isthmus of Olinda and Recife, between the Beberibe River and the sea, which until the early twentieth century connected these two cities, was over time instead of memory. From the twentieth century became forgetfulness. This article seeks from reading the narratives of memorialists identify different meanings attributed to the Isthmus over time, wich means different forms of representation of the place. With the interpretation of the texts of the memorialists, this article seeks to understand how the Isthmus was enunciated. It is important to say that the aim is not undertake a chronological narrative with historical accuracy, but understand the impressions left by the place in these people. Revealing these assigned meanings it is also a way for review of the process to preserve the Isthmus conducted by IPHAN.

Keywords: Isthmus of Olinda and Recife, memorialists, representations, statements, preservation

Introdução

O Istmo de Recife e Olinda, estreito caminho de terra entre o Rio Beberibe e o mar, que, até o começo do século XX, conectou por terra essas duas cidades, foi ao longo do tempo lugar de memória. A partir do século XX, tornou-se esquecimento.

Hoje, o que antes era istmo (faixa de terra que liga uma península ao continente) está divido por um canal, estando em parte no bairro do Recife e, em parte, na faixa litorânea olindense conhecida como “Praia del chifre”. É ladeado ao leste pelo Oceano Atlântico, ao oeste pelo Rio Beberibe e pelo Canal da Malária, ao sul pela ilha do

Bairro do Recife e ao norte pela Rua Santos Dumont, próximo à Igreja dos Milagres em Olinda.

Contar a história do istmo é uma forma de auxiliar na reconstrução de sua memória e identidade perdidas, mostrando como este lugar foi visto e valorado em diferentes momentos.

São extensas as fontes escritas e iconográficas relacionadas à história das cidades de Recife e Olinda em que o istmo é representado, todavia, a despeito desse fato, essa lingueta de terra foi incorporada ao polígono de tombamento federal de Olinda1 não por suas características históricas e culturais, mas em razão de sua paisagem natural e da garantia da visibilidade da colina histórica antes tombada2. Nas normas federal e municipal3, a proteção das ruínas do Forte do Buraco localizado no istmo também aparece, mas como edificação isolada, descolado do seu contexto de construção que o vincula ao sítio do istmo e a um esquema mais complexo de fortificações.

Assim, o Istmo de Olinda e Recife é um caso emblemático da necessidade de métodos cuidadosos de identificação patrimonial, posto que a falta (deliberada ou não) de pesquisa histórica sobre o lugar, limitou a identificação dos valores nele presentes o que, em alguma medida, contribuiu também para o seu esquecimento.

Frente a esse panorama, que diz respeito tanto à preservação do patrimônio, quanto à capacidade da história de aponta caminhos possíveis para se interpretar o passado e dele extrais os significados atribuídos aos lugares no tempo, este artigo se propõe a lançar sobre o Istmo um olhar. Um olhar que não se voltará para as fontes portadoras de sua história oficial, mas para o discurso de quem por ele passou e contou o que viu e sentiu, em seus diários e relatos, brasileiros e estrangeiros, os chamados memorialistas.

A leitura das narrativas dos memorialistas permitiu identificar diferentes sentidos atribuídos ao Istmo ao longo do tempo; isto é, diferentes formas de representação do lugar. Logo, é a partir dos enunciados extraídos dessas representações que se propõe construir uma narrativa histórica sobre o Istmo.

Segundo Chartier (2002, p.21), representação “(...) é o relacionamento de uma imagem presente e de um objeto ausente, valendo aquele por este (...)”, que surge a partir das “relações intelectuais” entre a sociedade e o mundo. E, embora aspirem à universalidade no momento em que são criadas, as representações “(...) são sempre determinadas pelos interesses de grupo (...)”. Assim, ao se proceder a interpretação dos discursos, o que se faz é uma representação da representação, posto serem as práticas de apropriação dos textos “(...) histórica e socialmente variáveis (..)” (2002, p. 25).

1 O Istmo foi incorporado ao polígono de tombamento federal do Sítio Histórico de Olinda por meio da Notificação Federal n° 1.155 de 04/06/1979.

2 O tombamento federal do Sítio Histórico de Olinda foi efetivado por meio da Notificação nº. 1004/68 de 21/03/1968

3 O Sítio Histórico de Olinda é tombado no nível municipal pela Lei Municipal n° 4849/82. O istmo é

incluído na poligonal como ZEPC 3, zona abarca ruínas de edificações que tenham grande importância histórico-cultural e seu entorno. A ZECP 3 se subdivide em dois setores, Setor de Preservação Rigorosa que abrange as ruínas do Forte do Buraco e o Setor de Preservação Ambiental que corresponde ao restante do istmo.

Os enunciados se originam do discurso. Segundo Foucault (1972), “o discurso é constituído por um conjunto de sequências de signos, enquanto elas são enunciados, isto é, enquanto podemos lhes atribuir modalidades particulares de existência. (...) O termo discurso poderá ser fixado: conjunto dos enunciados que provém de um mesmo sistema de formação” (1972, p. 135). O enunciado, deste modo, é entendido por Foucault (1972) como pertencente “a uma formação discursiva, como uma frase pertence a um texto, e uma proposição a um conjunto dedutivo. Mas enquanto a regularidade de uma frase é definida pelas leis de uma língua, e a de uma proposição pelas leis de uma lógica, a regularidade dos enunciados é definida pela formação própria discursiva” (1972, p. 146).

Foucault (1972) segue a explicitação de seu conceito afirmando que a:

(...) análise enunciativa só pode se referir a coisas ditas, a frases que foram realmente pronunciadas ou escritas, a elementos significantes que foram traçados ou articulados – e, mais precisamente, a essa singularidade que as faz existir, oferece-as à observação, à leitura, a uma reativação eventual, a mil usos ou transformações possíveis, entre outras coisas, mas não como as outras coisas. Só pode se referir a performances verbais realizadas, já que as analisa ao nível de sua existência: descrição das coisas ditas, precisamente porque foram ditas (...) (1972, p.137).

Assim, uma possível forma de operacionalização desse conceito no campo da história, adotada neste artigo, pode ser dada quando de uma formulação (oral ou escrita) são extraídas palavras ou sentenças-chave determinantes de um sentido possível ao que está sendo tratado, e tais sentenças-chave, uma vez inseridas em uma nova narrativa histórica, se transformam em enunciados.

Com a interpretação dos textos dos memorialistas, buscar-se-á entender os sentidos dados ao Istmo por cada um deles, ou seja, como o Istmo é enunciado. É válido ressaltar que não se pretende, com essa análise, proceder a uma narrativa histórica com rigor cronológico, mas entender as impressões deixadas pelo lugar em cada uma dessas pessoas, e por meio disso, compreender que significados tinha para a sociedade o Istmo em diferentes contextos históricos.

Desvelar esses sentidos atribuídos, não deixa de ser também uma forma de abrir caminhos para a revisão do próprio processo de tombamento pelo IPHAN do Istmo, que ao desconsiderar a sua história, contribui também para o seu esquecimento pelas cidades que por séculos conectou.

Istmo no século XVII: como elemento de ligação (nesga de terra, costela ou linguazinha) e como reduto de fortificações (fortim, castelo e torre)

O Istmo em suas primeiras descrições, na primeira metade do século XVII, é enunciado como “banco de areia”, “estreita península”, “nesga de terra”, “costela ou linguazinha”. As narrativas se pautavam primordialmente em enunciá-lo como elemento natural de conexão entre as cidades de Recife e Olinda.

O conquistador holandês João Baers (1630) ao descrever a dependência geográfica e urbanística entre Recife e Olinda a essa época, toma o Istmo como elemento de união das duas cidades:

(...) ao sul de Olinda estende-se um banco de areia, geralmente largo de trinta e seis a quarenta passos, e assaz alto, contra o qual bate o mar; seguindo-se uma hora grande ou mais de caminho pelo banco de areia acha-se uma aldeia (...). Por trás do banco já mencionado que estende-se de Olinda, e da aldeia, pelo lado ocidental, corre, vindo de Olinda um rio que nasce nos montes(...) (Baers, 1630).

As descrições de Joannes de Laet (1636), diretor da Companhia das Índias Ocidentais e redator das memórias da invasão batava à capitania de Pernambuco, e do também holandês, Gaspar Barleus (1647), assemelham-se bastante àquela de Baers (1630):

Ao sul da cidade, entre o rio Beberibe e o mar, estende-se uma estreita península, em cuja ponta está uma povoação chamada Recife, onde fazem o embarque e o desembarque de todas as mercadorias e onde habitava muita gente. Perto do meio dessa nesga de terra, que tem uma légua de extensão, do lado do mar, está o Poço, no qual grandes navios podem ancorar, pois tem ordinariamente 18 a 19 pés d'água (Laet, 1636, p.238).

(...) De Olinda estende-se para o sul, entre o rio Beberibe e o Oceano, um istmo, de cêrca [sic] de uma légua, assaz estreito e arenoso, semelhante a uma costela ou lìnguazinha [sic]. (...) Na sua extremidade existiu uma povoação chamada ‘Recife’ ou ‘Abrigo’ (...) (Barleus, 1647, p.41 ).

Figura 1 O Istmo fortificado visto de Olinda, 1637 Fonte: Nestor Goulart, 2000

Figura 2 O Istmo fortificado , 1759 Fonte: Nestor Goulart, 2000

O Rio Beberibe e o mar também são elementos recorrentes nessas narrativas e este fato demonstra a profunda ligação das cidades com as águas nos primeiros séculos de suas fundações. A formação de Olinda e o seu crescimento guardaram estreita dependência com a existência do porto do Recife.

É válido ainda ressaltar que em seus registros, os memorialistas descreveram o istmo como elemento que parte de Olinda para o Recife, e não o contrário. Essa ordenação do discurso certamente tem a ver com a importância de cada uma dessas cidades ao longo do tempo. Apesar da interpretação dos discursos permitir a identificação de certa hierarquia entre as cidades, os olhares de Baers (1630), Laet (1636) e Barleus (1647), demonstram também um nascimento conjunto ou uma interdependência entre elas. Uma desempenhando o papel administrativo, e a outra como porto natural para embarque/ desembarque de mercadorias. Desta forma, sendo Olinda a sede da capitania, o Recife (povoado) nasceu como seu porto natural, ao qual se tinha acesso por uma falha nos arrecife, a pedra furada.

O sistema de fortificação da sede da capitania e seu povoado também é outro aspecto enunciado pelos memorialistas no século XVII. As palavras “fortim”, “castelo” e “torre” são recorrentes em seus discursos.

O holandês Adriaen van der Dussen (1639) ao descrever as peculiaridades e riquezas da terra conquistada, refere-se ao Istmo ao tratar das fortificações:

(...) À distância de 2 tiros de mosquete do Recife, em direção à cidade de Olinda, pelo istmo, está o Castelo de São Jorge, feito de pedra, tendo do lado da cidade de Olinda um bastião e meio, de pedra dura, de construção elevada e no qual estão 13 peças de ferro (...); domina o istmo e a barra” (1639, p. 111).

Baers (1630), Laet (1636) e Barleus (1647) descrevem também o sistema de fortificações:

(...) a um tiro de canhão desta aldeia para o lado de Olinda está sobre o mesmo banco de areia um castelo ou forte (...). Em frente deste castelo, para o lado sul que é o lado do mar, está também um banco igual, estendendo-se de Olinda para o sul também uma hora de caminho ou mais, porém nem tão alto nem tão largo quanto o outro; no dorso desta banco, bem defronte do castelo ou forte atrás mencionado, acha-se um outro castelo, que é uma torre octogonal; entre dois castelos, onde a água tem a largura de um tiro de canhão, entram os navios e fundeiam em um bom cais com pouco fundo entre os dois bancos, e carregam e descarregam na aldeia situado no extremo de um dos bancos, onde achavam-se muitos armazéns(...) (Baers, 1630).

(...) Do outro lado do Poço, na ponta do recife de pedra, (que se estande ao longo da costa do Brasil, com varias interrupções) estava um fortim ou torre redonda, construido, havia muitos annos, de pedra durissima, dentro do mar, e, fazendo face a esse, na já citada nesga de terra ou peninsula do Recife, havia outro a que os portugueses chamavam S. Jorge (...) (Laet, 1636, p.238).

(...) Defronte deste [refere-se ao Istmo], onde o morre o Recife de Pedra, que deixa passar as ondas aquí [sic] e acolá, existiu uma tôrre [sic] surgindo das vagas com o nome de Castelo do

Mar, para diferenciar-se [sic] do que se via no recife de terra ou areia, denominado Castelo de Terra e pelos portugueses Castelo de S. Jorge (...) (Barleus, 1647, p.41 ).

A essa época, o sistema de defesa da entrada da barra do porto era basicamente constituído pelo Forte de São Jorge Novo ou Castelo de Terra, construído sobre o Istmo ao norte do Recife, e em frente dele, sobre os arrecifes, estava o Forte do Picão ou Castelo do Mar. Com a invasão batava, esse sistema de fortificações de origem luso-brasileira demonstrou-se frágil. Os holandeses não tardaram em aprimorá-lo com a construção de um sistema de redutos e fortificações, montando um verdadeiro cinto de proteção no Recife.

As primeiras narrativas analisadas foram produtos do olhar holandês sobre as duas cidades, portanto, o olhar de estrangeiros tentando desvendar uma nova terra. A presença do Istmo nesses discursos permite constatar sua importância tanto do ponto de vista estratégico, como geográfico para Olinda e Recife nos primeiros momentos de suas fundações.

O Istmo no século XIX: como elemento natural destacado na paisagem (a extensa fita branca) e como caminho

A representação do Istmo pelos memorialistas em finais do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX aproxima-se, em alguns aspectos, daquelas elaboradas no século XVII. O Istmo continua sendo representado como elemento de conexão entre as duas cidades, sendo enunciado como “areal”, “faixa de areia”, “banco” ou “fita branca”. Todavia, além disso, ele passa a ser descrito como caminho, caracterizado por uma natureza peculiar e práticas sociais específicas. Os relatos e descrições trazem também um porto e a entrada da barra do Recife mais protegidos por um sistema de fortificações aprimorado.

O relato de Henry Koster, viajante inglês que chegou ao Recife na primeira década do século XIX, enuncia o Istmo como banco de areia:

(...) uma longa faixa de areia se estira, desde o pé da colina, onde, para o sul, está situada Olinda. A extremidade meridional desse banco se alarga e forma o local desta parte da cidade, particularmente chamada Recife, colocada precisamente sobre o arrecife. O Recife de rochas, de que já falei, estende-se diante desses bancos de areia e recebe o principal choque do mar que no afluxo, rola por cima atingindo o cais e os armazéns da villa com ímpeto enfraquecido. A maior parte do banco de areia, entre Olinda e a vila, está descoberto e sobre ele o mar rebenta com fúria (Koster, 1816).

Nas notas deixadas pelo comerciante francês Louis F.Tollenare, acerca de sua residência no Recife entre os anos de 1816 e 1818, e pela inglesa Maria Graham, em seu diário de viagem ao Brasil, iniciado em 1821 quando de sua partida para a América do Sul, o Istmo aparece como a “extensa fita branca”, a “praia”, elemento natural que se destaca na paisagem, mas também lugar de fortificações para defesa do porto:

(...) O olhar seguia à distância a longa e estreita península de areia que liga Olinda a Recife; ela se destaca sobre a costa como uma extensa fita branca, atrás da qual se erguem os cabeços das montanhas do país; (...) Distinguia-se os dois fortes do Buraco e do Brum sobre a península, e após o do Picão, construído na extremidade não submersa do célebre recife de pedras ou molhe natural, que cobre a costa da capitania de Pernambuco, e a do norte até o Rio Grande; o mar se quebra ali com violência, e dentro do molhe, que aparece como uma linha negra, os navios se acham em sossego junto à cidade (...) (Tollenare, 1816, p. 18 e 19).

(...) Este é o istmo em que Sir John Lancaster se fortificou com uma paliçada durante sua permanência no Recife, que ele saqueou. A praia é defendida por duas fortalezas, bastante fortes quando se considera a posição: de um lado uma ressaca furiosa quebrando em suas bases, de outro um profundo estuário e um terreno plano, de modo que não podem ser dominados (Tollenare, 1816).

Figura 3 O Istmo como caminho, entre 1755 e 1855. Fonte: Leonardo Dantas, 1998

Aos relatos anteriores, em que o sistema de defesa do porto era descrito como sendo constituído pelo Forte do Picão, erguido em 1612 pelos portugueses, e pelo Forte de São Jorge, a essa altura já destruído, somam-se o Forte Brum, iniciado pelos portugueses em 1629 e finalizado pelos holandeses, e o Forte do Buraco, construído também pelos batavos em 1630.

A força do mar também aparece descrita nos relatos de Koster (1816), Tollenare (1816) e Graham (1821). O mar que rebenta no Istmo é enunciado com palavras como “fúria”, “violência” e “furor”. A sólida construção do Forte do Buraco foi aos poucos sendo destruída pela erosão provocada por essa força. É apenas com as obras do Porto do Recife, no começo do século XX, que o mar do Istmo vai tendo sua força reduzida em virtude da construção do molhe de Olinda, implicando mudanças nas correntes marítimas, que mais tarde contribuíram também a ruptura do Istmo.

Nas narrativas desse momento, o Istmo é apresentado também como “caminho”. Maria Graham (1821) e Tollenare (1816) descrevem o percurso de Olinda a Recife pelo Istmo e o que lá encontraram:

(...) Esta tarde, (...) cavalgamos para Olinda através do istmo arenoso que a liga ao Recife (...) O areal é em parte coberto por arbustos; há um que é lindo, com folhas grossas e flores vermelhas em forma de campainha; muitos são como os do mundo oriental; muitos são todos novos para mim (...) (Graham, 1821, p. 139 e 140).

(...) Tentei sair pela península que conduz do Recife a Olinda; é porém de uma areia árida e movediça que a torna pouco praticável; mas a gente do país que anda descalça encontra terreno mais sólido, seguindo por dentro d' água ou próximo a ela; preferem o lado ocidental que não é batido pelas vagas; de outro lado goza-se da vista do imenso Oceano e da navegação das jangadas. Todos os pescadores habitam esta parte setentrional do Recife. Na praia não se encontram conchas de espécie alguma (...) (Tollenare, 1816, p. 33).

Essas representações do Istmo possibilitam a descoberta de suas características naturais. Maria Graham (1821) o descreve como parcialmente coberto por “arbustos”, existindo um tipo que ela descreve como “lindo”, “com folhas grossas e flores vermelhas”. Tollenare (1816) afirma ser a areia do Istmo “árida e movediça”, praticável apenas para a “gente do país”. E ressalta ainda a inexistência de “conchas” na praia. Esse olhar que se volta para as minúcias, olhar dificilmente encontrado nos documentos oficiais ou na cartografia histórica, é que permite a construção de uma imagem mais clara e real sobre o lugar.

O relato de Graham (1821) revela ainda importantes informações sobre a prática de enterramento de escravos negros no Istmo nesse momento:

(...) O sol já ia baixo muito antes de termos alcançado sequer o primeiro dos dois fortes em nosso caminho de volta para a cidade. Os cães já haviam começado uma tarefa abominável. Eu vi que arrastava o braço de um negro de sob algumas polegadas de areia, que o senhor havia feito atirar sobre os seus restos. É nesta praia que a medida dos insultos dispensados aos pobres negros atinge o máximo. Quando um negro morre, seus companheiros colocam-no numa tábua, carregam-no para a praia onde abaixo do nível da preamar eles espalham um pouco de areia sobre ele. Mas a um negro novo até este sinal de humanidade se nega (...) (Graham, 1821, p. 139 e 140).

A representação do Istmo como praia em que “os insultos dispensados aos pobres negros atinge o máximo” revela uma prática cruel ocorrido no lugar, e o relato de Graham (1821) é o único entre os estudados a denunciá-la. É possível que esta prática tenha sido responsável pelo surgimento de lendas e assombrações que envolvem o Istmo, e mais especificamente a Cruz do Patrão4, presentes nos relatos de memorialistas no século XX.

O Istmo no século XX: a transformação da paisagem e o lugar mal assombrado

As representações do Istmo no século XX são variadas. No entanto, encontram-se enunciados dois grandes aspectos: as transformações na paisagem cultural5, provocadas pelas obras do Porto do Recife no começo do século XX e pelas obras da Base Naval em meados do século XX, e a lendas e assombrações que envolvem o lugar.

O Istmo é enunciado como “mascarado” ou como algo que não mais existe por Raquel Caldas Lins (1978), em texto no qual estão descritas algumas memórias de sua juventude, e por Evandro Rabello (1978), em série sobre o folclore e a Cruz do Patrão:

(...) Tendo acabado por vedar a antiga foz do Beberibe, que dantes se lançava diretamente no mar, torcendo-lhe o curso terminal para o sul ao encontro do Capibaribe, o "istmo de Olinda", tal como ainda o víamos em nossa adolescência das janelas do Colégio de Santa Gertrudes, vizinho à Igreja da Misericórdia, destacava-se perfeitamente na paisagem, separando os vastos manguezais escuros do luminoso mar aberto e prolongando-se da praia dos Milagres ao Forte do Buraco e à Cruz do Patrão, na porta setentrional do bairro do Recife. Esse "istmo", pelo qual cavalgou Mrs. Graham a fim de visitar Olinda, está hoje quase todo mascarado pelas obras de construção da Base Naval, que aterraram os largos manguezais deixando ao Beberibe somente uma calha estreita (...) (Lins, 1978, p. 105).

(...) Seu nome: Cruz do Patrão, chamada assim por ter sido levantada pelo patrão-mór do porto do Recife (...) Ficava sobre o istmo de Olinda, à margem esquerda do rio Beberibe. Não mais existindo o istmo, o endereço agora é outro. Fica por trás dos depósitos pertencentes às companhias de petróleo, nas imediações do Terminal Açucareiro do IAA, no bairro do Recife (...) (Rabello, 1978).

4 A “Cruz do Patrão” ou “Cruz do Patrão-mor” segundo Rabello (1978) “(...) ficava sobre o istmo de Olinda, à margem esquerda do rio Beberibe.Para guiar pilotos é que ela foi levantada. Nada indica o ano de sua construção. Parece ser dos fins do século XVI ou começos do seguinte (...)”.

5 A paisagem cultural, para a Geografia, é entendida como resultante das formas geradas na construção do habitat, sendo confeccionadas pela ação da cultura de cada sociedade sobre a paisagem natural. A paisagem cultural é, nas palavras de Sauer (Corrêa e Rosendahl, 1998, p. 9), “modelada a partir de uma paisagem natural por um grupo cultural. A cultura é o agente, á área natural é o meio, a paisagem cultural o resultado”.

Como está demonstrado nesses dois relatos, a ampliação do Porto do Recife no começo do século XX acarretou uma profunda transformação na paisagem do Istmo, principalmente na sua porção sul, a partir do Recife. Com a ruptura do Istmo, em decorrência da construção do molhe de Olinda, e com implantação dos equipamentos portuários e de estocagem, o Recife pareceu virar as costas para Olinda e para o caminho que por séculos as conectou.

Localizada entre a área portuária e os equipamentos fabris, a Cruz do Patrão, apesar de ser um importante bem cultural, envolto por lendas e mistérios, parece esquecida e deslocada entre esses equipamentos de grande porte. O mesmo acontece com as ruínas do Forte do Buraco, praticamente encobertas pela vegetação, e com o Forte do Brum, cuja descaracterização e adensamento do entorno, provocaram a perde de sua implantação original na praia, entre o mar e o Rio Beberibe. A localização e o entorno da Cruz do Patrão, do Forte do Brum e das ruínas do Forte do Buraco refletem com clareza como se deu a ocupação do Istmo no lado do Recife, e como a paisagem cultural foi drasticamente transformada com os sucessivos aterros, com a ampliação do Porto do Recife e com os posteriores avanços no processo de urbanização.

Figura 4 - Cruz do Patrão e os armazéns. Autora: Virgínia Pontual, 2005

Figura 5 - O Forte do Brum e os silos. Autora: Virgínia Pontual, 2005

A narrativa de Hermilo Borba Filho (1949) demonstra esse esquecimento do Istmo já na primeira metade do século XX quando o autor se refere ao local como recentemente descoberto:

Se você, meu caro turista, chegar ao Recife durante o verão, vá conhecer o Istmo de Olinda, descoberto pelo caricaturista

Augusto Rodrigues, aos tantos de janeiro do ano de mil novecentos e quarenta e oito. Você poderá alugar um auto de praça, por quinze cruzeiros e fazer uma viagem de quinze minutos para ver de perto uma das mais bonitas praias do Recife (...) (Borba Filho, 1949).

As representações do século XX permitem levantar a hipótese de que as obras do Porto e da Base Naval, realizadas no Istmo, foram em grande parte responsáveis pela perda da memória e identidade do lugar, construída durante os quatro séculos anteriores de sua ocupação. O Istmo hoje é esquecido, não sendo parte da vida ou do imaginário coletivo dos cidadãos recifenses e olindenses.

Hermilo Borba Filho (1946) e Evandro Rabello (1978) narram lendas e assombrações, coletadas da tradição oral, que envolvem o areal do Istmo, a Cruz do Patrão e o Forte do Buraco. O Istmo e seus elementos construídos são, então, enunciados como “coisa mal-assombrada”, “morada do tinhoso”, lugar de “almas penadas”, entre outros:

(...) E na maré estão os botes mais lindos do mundo, com um preto musculoso como remador. Se você gosta de falar e insiste na conversa, ficará sabendo que em tal época um navio naufragou ali bem à vista e está no fundo do mar com uma porção de riquezas. E saberá ainda dos afogados e das almas penadas da Fortaleza do Buraco, almas que se vestem de vermelho e verde, com armaduras pesadas e espadas brilhantes e que são os holandeses que invadiram Pernambuco. (...) E o bote encosta na escadinha de desembarque (...). Marche em frente, então. Antes de atingir a praia que fica logo abaixo da elevação de areia, você encontrará a casa de Caramuru, o pescador. (...) Caramuru falará da cobra grande que aparece para fisgar os banhistas e da profundidade e dos redemoinhos e de peixes que ninguém nunca ouviu falar (...) (Borba Filho, 1949).

(...) Nas imediações da Cruz, ficava um imenso areal, onde os negros que morriam pagões tinham sepultura. Os ingleses, que chegavam ao Recife e aqui morriam, eram sepultados nas imediações da Cruz do Patrão (...) A Cruz ficou na alma do povo como sinônimo de coisa malassombrada, lugar para quem tem juízo não passar altas horas da noite, pois corre o risco de encontrar gente de outro mundo no caminho (...) Altas horas da noite apareciam coisas infernais. Almas penadas gemem e choram e uma misteriosa luz se apaga e se acende a noite inteira. Barulhos de pesada corrente denunciam visagem. Alma de negro cativo. O cabelo, de quem assiste a esse espetáculo se levanta, procura as pernas e não acha, quer gritar e a língua engrossa (...) O diabo freqüenta assiduamente a Cruz do Patrão. Antigamente os feiticeiros faziam, no dia de São João, uma cerimônia para os iniciados na bruxaria (...) Na Cruz do Patrão é diferente. Ali o tinhoso fez morada. Chegou com armas e bagagens. Aparece e desaparece quando bem quer e entende. Os longos anos de morada, deram ao fute

tantos direitos que nenhuma lei do Inquilinato pode tirar (...) (Rabello, 1978).

Essas lendas constituem uma forma de representação, oriunda do imaginário coletivo, a partir dos feitos e práticas ocorridos no Istmo. A narrativa de Hermilo Borba Filho (1949), que envolve “almas que se vestem de vermelho e verde, com armaduras pesadas e espadas brilhantes”, remete às batalhas ocorridas no Istmo quando da invasão holandês e reconquista da Capitania de Pernambuco pelos luso-brasileiros. A lenda narrada por Rabello (1978), que descreve a Cruz do Patrão como local onde vive “alma de negro cativo”, relaciona-se a atividades desenvolvidas na Cruz, como enterramentos, comércio, martirização e execução de escravos e rituais da cultura negra.

Considerações finais

Construir uma narrativa sobre o Istmo é contar uma parte da história das cidades de Recife e Olinda, nascidas juntas, mas que a partir de um dado momento começam a se separar. O Istmo, nessa construção, aparece como elo conector da sede administrativa, Olinda, e do seu porto, Recife.

Todavia, mais que servir de instrumento para narrar o nascimento dessas duas cidades, no universo das fontes consultadas, o Istmo demonstrou possuir uma história própria, ricamente narrada pelos memorialistas. História esta que vem desaparecendo da memória das pessoas e tornando cada vez mais frágil a identidade do Istmo.

A norma de proteção federal, ao justificar a inclusão do Istmo na poligonal de tombamento do Sítio Histórico de Olinda unicamente em razão da garantia de preservação de seus atributos paisagísticos e da visibilidade da colina histórica de Olinda, não considerou a papel desempenhado por séculos por este lugar na história das duas cidades. Além disso, a fortificação do Buraco não pode ser vista isoladamente como edifício de valor arquitetônico, apontando as singularidades de sua construção. O sentido de sua construção e localização só pode ser compreendido em conjunto com as edificações do Brum e Picão, além das pequenas baterias que foram assentadas no Istmo. Esta lógica construtiva, que qualificava o Istmo como valor de defesa desde o início da colonização, demonstra que não se pode entendê-lo por partes, isolando fortes do Brum ou do Buraco e muito menos fragmentando seu sentido geográfico (PONTUAL et al, 2006).

O Istmo hoje permanece uma área esquecida na memória da população de Olinda e Recife, mutilado pelos projetos do porto do início do século XX e pelos posteriores avanços do processo de crescimentos das duas cidades. Todavia, se não foi bem sucedido enquanto instrumento de resgate da memória, o tombamento garantiu a proteção do Istmo da especulação imobiliária e da ocupação acelerada assistidas nas orlas marítimas do Recife e Olinda nas décadas de 1970 e 1980.

Os olhares dos que lá passaram e narraram sua experiência sobre o Istmo oferece a dimensão desse lugar que sempre esteve presente na memória, sendo caminho sem fronteiras entre as duas cidades (PONTUAL et al, 2005). O método adotado pelo presente estudo, baseado na construção de enunciados a partir das narrativas dos memorialistas, permitiu a identificação desses diversos sentidos ou significados atribuídos ao Istmo ao longo dos séculos, elementos estes indispensáveis para a reconstrução da identidade perdida. Não resta dúvida que outros tantos podem ainda ser identificados; muito são os olhares possíveis.

Os relatos dos memorialistas falaram por si só, sem que se fizesse necessária a consulta a outras fontes documentais. Por esta razão, o presente estudo é concluído com a fala de um memorialista, Hermilo Borba Filho (1949), na qual é realizada uma verdadeira evocação à paisagem do Istmo:

(...) De repente você começará a sentir que existe qualquer coisa estranha no ar.(...) De repente você sabe. É a praia selvagem ainda, sem bagalôs, sem casas metidas a sebo, sem maiôs de frente única, sem louras nem morenas, sem atletas, sem nada. É a praia mesmo. É mar. É céu. É a Fortaleza do Buraco à sua direita, com as paredes de três séculos resistindo aos moleques e aos institutos históricos. É, lá longe, a Sé de Olinda e casas quase apagadas pela distância. Atraz [sic], casas de pescadores, vasias [sic], os homens lutando contra os peixes e as mulheres lutando contra as roupas sujas. E na frente o mar. Forte. Escuro. Perdendo-se de vista. Então você, meu caro turista, pode tirar a roupa e ficar sozinho, sujar-se de areia, fazer castelos como menino, dar cambalhotas (...) (Borba Filho, 1949).

Referências

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