Resumo

Este trabalho estuda o processo de urbanização de Planaltina, arraial goiano estabelecido na primeira metade do século XIX. Dotada de uma malha em forma de retícula irregular, Planaltina desmente diversos cânones da história da urbanização vernácula brasileira, tais como a escolha do sítio, proporções de lotes e densidade de ocupação: foi edificada num vale, com lotes largos e rasos, amplos afastamentos laterais e pouco controle sobre o alinhamento das edificações à testada do lote. Comparam-se essas características com os padrões típicos de arraiais setecentistas, ressaltando transformações no modo de apropriação do sítio urbano no período que se segue ao ciclo do ouro. A partir do início do século XX, verifica-se um processo de adensamento urbano e subdivisão de lotes, intensificado devido à pressão demográfica e imobiliária causada pela transformação de Planaltina em cidade satélite de Brasília.

Palavras-Chave

Goiás, Urbanização Vernácula, Século XIX, Planaltina

Abstract

This paper examines the patterns of urbanization in Planaltina, a town founded during the period of economic slump in Goiás state comprised between the decline of gold mining in the late eighteenth century and the construction of the new state capital, Goiânia, in the 1930s. Laid out on a rough grid sometime after 1811, this town belies several key concepts of the “canonical” Portuguese-Brazilian city, such as site selection, lot proportion, and density: it was built by a valley, with wide and shallow lots having ample side yards, and its houses are often misaligned. These features are compared with eighteenth-century towns in central Brazil, highlighting general changes in urban patterns after the collapse of the gold-mining economy in the region. Starting in the early twentieth century, infill begins to occur, with lots being subdivided either lengthwise or breadth wise, as well as changes in the historic centre brought about more recently by the demographic and economic effects of planned extensions to the city.

Keywords

Goiás, Vernacular urbanism, Nineteenth century, Planaltina

Introdução

Este trabalho analisa os padrões urbanísticos no processo de crescimento de Planaltina (Fig. 1), assentamento goiano fundado em 1811 e incorporado no Distrito Federal (Fig. 2), a 35 km1 de Brasília. Sua configuração urbana inicial e crescimento

1Distâncias indicadas por via terrestre.

subsequente desafiam lugares-comuns da urbanização brasileira pré-moderna (Fig. 3). A cidade também ilumina um período precariamente conhecido da história urbana do Planalto Central: aquele compreendido entre o fim do ciclo do ouro e a introdução das vilas ferroviárias no início do século XX.

A primeira parte do texto resume a história do povoamento luso-brasileiro do Planalto Central e da fundação de Planaltina. Em seguida, a descrição morfológica do assentamento está apresentada segundo seus três elementos estruturadores: espaço público, parcelamento do solo e tipologia edilícia. A partir dessa descrição, ensaia-se uma reconstrução do processo histórico de crescimento urbano de Planaltina.

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Figura 1. Avenida Goiás, Planaltina, c. 1965. Autoria desconhecida, acervo da Secretaria de Estado de Cultura do Distrito Federal

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Figura 2. Planaltina no contexto das estradas em Goiás, 1736–1938. Adaptado de Ana Laterza

Povoamento do Planalto Central Território e Fronteira

O sertão goiano era conhecido dos portugueses desde a expedição de Domingos Grou em 1580, sendo regularmente percorrido por bandeiras e entradas ao longo do século XVII (Vianna 1961–1975, vol. II.2, p. 75) Na mesma época, há evidências de sitiantes paulistas no atual sudeste do Estado (Holanda 1981–1989, vol. I.1, p. 293) A descoberta de ouro na região provocou o desenvolvimento de uma rede urbana na região, constituída essencialmente entre 1727 e 1743 e concentrada sobretudo numa faixa leste-oeste entre as atuais cidades de Goiás e Paracatu. O sistema de estradas da capitania, fundada em 1744, partia de um tronco principal, a Estrada do Nascente, ligando a sede em Vila Boa (atual cidade de Goiás) a Meia Ponte (atual Pirenópolis). Daí, o caminho seguia inicialmente o rumo sudeste, por Santa Luzia (atual Luziânia), ao passo que a Estrada da Bahia, originalmente uma picada de contrabando, acabou por ser regularizada conectando a primeira a Couros (atual Formosa). A partir dessas estradas — pouco mais do que caminhos de mulas —, o Norte da capitania era acessível somente por picadas inconstantes descendo as inóspitas chapadas do Planalto Central.

O declínio do ciclo do ouro, que em Goiás se iniciou na década de 1770 (Bertran 2011, 252), levou ao desaparecimento de alguns arraiais e à estagnação da maioria

dos demais. Nessa capitania, a depressão econômica que se seguiu foi especialmente longa e severa (Furtado 1977, 107), o que levou à designação do século XIX em Goiás como o “século do silêncio” (Garcia 2010, 11) No início daquele século, de fato, a diocese de Goiás era a menos populosa da colônia (Simonsen 1937, v. II, p. 328)

Urbanização

Excetuando-se Meia Ponte (ver Fig. 1) — importante encruzilhada comercial — no seu auge, nenhum assentamento da província antes do século XX excedeu dez mil habitantes. Vila Boa estagnou em 8.000 moradores, ao passo que Santa Luzia, terceiro maior núcleo urbano de Goiás, não tinha mais que três mil habitantes. A maioria das vilas e arraiais tinha apenas algumas centenas de pessoas. Além disso, essa população mal podia ser denominada propriamente “urbana”, como sinalizou o viajante francês Auguste de Saint-Hilaire em 1819:

[…] afora alguns trabalhadores braçais e comerciantes, todos os habitantes de Santa Luzia trabalham a terra, e só vêm à cidade aos domingos e dias festivos; assim, durante a semana, não se vê ninguém nas casas nem nas ruas (Saint-Hilaire 1848, 2:14)

A maioria das vilas goianas seguia o padrão canônico do arraial de mineração, assentado ao longo de cristas de morros e nas proximidades dos cursos d’água de onde se extraía o ouro aluvial (Fig. 3). A publicação do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, em 1936, contendo o famoso capítulo “O semeador e o ladrilhador”, cristalizou uma interpretação desses arraiais como “desleixados” (Holanda 1971), em contraposição ao caráter “ordenado” das cidades espanholas. Em que pese o questionamento dessa visão a partir do final da década de 1960 — o livro Evolução Urbana do Brasil, de Nestor Goulart Reis Filho, foi um marco nessa inflexão —, a reinterpretação da urbanização brasileira como processo multifacetado foi demorado e, pode-se arriscar, incompleto. Assim, algumas características dos assentamentos urbanos do período colonial continuaram a ser consideradas como quase universais: implantação em topos ou cristas de morros, lotes estreitos e profundos, casas geminadas evoluindo para sobrados com o enriquecimento de uma parte da população.

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Figura 3. Planta da Vila Boa de Goiás, c. 1790. Acervo do Museu Botânico Bocage, Lisboa

Apanhado Histórico de Planaltina Antecedentes e Contexto Geográfico

O sítio conhecido como Mestre d’Armas, que deu origem à atual Planaltina, foi mencionado pela primeira vez num documento escrito em 1773 pelo secretário do governador da Capitania de Goiás, de passagem pelo local (Bertran 2011, 289) Sabe- se, também, que as primeiras sesmarias na área foram concedidas a partir de 1741, antes mesmo da fundação do arraial mais próximo, Couros (Bertran 2011, 307)

O Planalto Central permaneceu, como já foi visto, num estado de estagnação demográfica e econômica até os anos 1880. Essa foi uma época de intenso crescimento econômico no Centro-Oeste, cujas população e renda per capita dobraram até o início do século XX (Buescu 1978, 233). A pecuária exportadora foi o principal motor desse crescimento, que precedeu em várias décadas a chegada da ferrovia em Goiás, em 1912. Mesmo assim, a expansão da rede ferroviária parou em 1922 em Pires do Rio, 200 quilômetros ao sul de Santa Luzia, sendo retomada somente com a construção de Goiânia.

Foi nesse contexto de desenvolvimento pecuarista que o sítio de Mestre d’Armas (Fig. 4) teve seu auge. O local, cortado pelo ribeirão de mesmo nome, fica próximo à antiga Estrada Real dos Goyazes, que ligava a capital à Bahia, a 950 metros de

altitude. Ao norte da estrada, uma borda de chapada quase intransponível abriga a nascente do Rio Maranhão, principal afluente do Tocantins. Ao sul do sítio estende-se o amplo vale do Rio São Bartolomeu, que corre rumo ao então despovoado sudeste de Goiás. A vegetação nativa do cerrado já havia sido de longa data contaminada pela invasão do capim-gordura, planta africana própria para a pecuária.

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Figura 4. Situação geográfica do sítio de Mestre d’Armas, por Ana Laterza

A Estrada da Bahia ainda era no final do século XIX a principal rota da área, ligando os dois núcleos urbanos mais próximos, Corumbá de Goiás — 150 quilômetros para o oeste — e Couros — quarenta quilômetros a leste. A antiga Contagem de São João das Três Barras, próxima ao vale do Maranhão, era o estabelecimento governamental mais próximo de Mestre d’Armas.2 O mais antigo documento que se conhece mencionando Planaltina, o relatório de 1773 da viagem do Governador D. José de Almeida escrito por seu secretário Tomás de Souza (Bertran 2011, 289), indica que o sítio já era habitado e conhecido pelo nome do ribeirão vizinho. Bertran (Bertran

2011, 369) sugere que o nome Mestre d’Armas decorra de um ferreiro ou professor de esgrima estabelecido às margens desse ribeirão por volta de 1751. Antes mesmo dessa data, em 1741, já há sesmarias concedidas no local. A maioria das cartas de sesmaria na área data de 1746 a 1772, ano em que Couros foi elevado à condição de vila.

Fundação e Crescimento

Em 1810, os proprietários de três sesmarias financiaram a construção de uma capela expiatória dentro de uma doação de meia légua quadrada de terra3, na encosta entre a margem oriental do Ribeirão Mestre d’Armas e a margem norte do Córrego do Atoleiro. A consagração da capela a São Sebastião ocorreu em 20 de janeiro de 1811.

O local escolhido para a doação (Fig. 5) parece pouco propício para o desenvolvimento de um núcleo urbano. A vizinha vila de Couros já cumpria, desde finais do século XVIII, as funções administrativas e comerciais urbanas para a região, e oferecia um pouso para os viajantes. Além disso, segundo o historiador do Arquivo Público do Distrito Federal Elias Manoel da Silva (Silva 2012, 1), o pouso de gado

2A contagem foi desativada em 1823, e sua localização exata é desconhecida atualmente.

3Aproximadamente 18 quilômetros quadrados.

mais frequente na região era junto à Lagoa Bonita, cerca de sete quilômetros a norte e mais próximo da estrada. Além disso, a Missão Cruls apontou em seu relatório que o sítio era pouco sadio: tanto o Ribeirão Mestre d’Armas quanto o seu afluente, o Córrego do Atoleiro, são rasos — um metro de profundidade, em média — e têm uma vazão pequena. Por isso, suas margens são pantanosas, especialmente na larga várzea do Mestre d’Armas, e as suas águas são impróprias para consumo (Cruls 1947, 128–

129) Indícios arqueológicos (Barbo 2010, 178) e práticas atuais de ocupação das fazendas, no entanto, indicam que a escolha de locais próximos a matas de galeria era habitual para casas de fazenda, e que os seus construtores evitavam tanto as cristas muito expostas quanto a adjacência imediata às estradas.

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Figura 5. Situação topográfica do centro histórico de Planaltina. Fonte: IPHAN,

2013

Ainda assim, o transporte parece ter tipo um papel relevante na localização do sítio. A distância de Mestre d’Armas à estrada não devia exceder uma hora de caminhada.

Além disso, situa-se no centro de um triângulo cujos vértices são o pouso de gado da Lagoa Bonita, a nascente conhecida como Águas Emendadas, e o ponto onde o Ribeirão Mestre d’Armas deságua no Rio São Bartolomeu. Águas Emendadas é um extenso topo de chapada cuja nascente verte tanto para o sul no Córrego Cortado, afluente do Mestre d’Armas, quanto para o norte no Córrego Vereda Grande, afluente do Maranhão. Mesmo não sendo a Lagoa Dourada das lendas do século XVI, Águas Emendadas é, portanto, a passagem mais fácil para o norte, conduzindo à distante (570 quilômetros) vila de Natividade, antiga sede da Comarca do Norte de Goiás — atual Estado do Tocantins. O vale do Rio São Bartolomeu e o do Descoberto, no qual ele deságua, formavam extensa área de pasto para o gado. Além disso, fornecem uma passagem conveniente para o sul de Goiás, e daí para Paracatu, a caminho do Rio de Janeiro.

Essa passagem foi concretizada em 1838, com a abertura de um caminho ligando Couros a Santa Luzia passando por Mestre d’Armas (Castro 1986, 20) (ver Fig. 1). Nesse mesmo ano, Mestre d’Armas já era chamado de arraial e não mais de sítio, numa decisão da assembleia provincial anexando o local à jurisdição da Vila dos Couros e desmembrando-o de Santa Luzia. A nomenclatura indica que a essa altura o terreno doado à Igreja em Mestre d’Armas já possuía um parcelamento residencial. Mais ainda, a decisão legislativa, que implicou dois outros sítios vizinhos, sugere que a influência de Santa Luzia, terceiro maior núcleo urbano da província e antigo arraial aurífero, estava decaindo ao longo do seu extremo norte. Em contrapartida, Couros se estabelecia como o polo comercial mais ativo no leste da Província, devido aos curtumes que lhe deram nome, e que eram alimentados pela pecuária dominante na região: note-se que dois dos três signatários da petição aprovada pela legislatura eram residentes de Couros e proprietários de fazendas em Mestre d’Armas (Castro 1986, 21).

Auge e Declínio

Nos anos seguintes, o arraial teve sua vinculação a Santa Luzia e Couros trocada repetidas vezes, até que em 19 de agosto de 1859, foi constituído Distrito Municipal da Vila dos Couros. No entanto, foi só em 1870 que recebeu o status correspondente de freguesia. Por essa ocasião, a capela foi ampliada para comportar sacristia e consistório, e um registro local de nascimentos e óbitos foi estabelecido. A paróquia ainda não era, todavia, considerada suficientemente importante para ser regularmente curada, de acordo com o Anuário do Estado de Goiás para 1886.

Por fim, em 19 de março de 1891, a assembleia estadual erigiu Mestre d’Armas em vila. Tal decisão pode ter sido um reconhecimento da importância crescente do local, que começava a competir com a vizinha Formosa — novo nome da antiga Couros. De fato, o Anuário de 1910 (Azevedo 1910, 171–172) não menciona Formosa, mas sim Mestre d’Armas, ao contrário do que fazia o Anuário de 1886. O autor do Anuário de 1910 descreveu Mestre d’Armas em detalhe, atribuindo-lhe um milhar de habitantes na área urbana e outros tantos na zona rural. Trata-se de números bastante incomuns para a época, na qual 80% da população vivia no campo; caracterizaria, outrossim, um núcleo comercial bastante ativo, contando possivelmente também com alguma atividade manufatureira. O verbete cita ainda a existência de cem casas construídas em cinco ruas e duas praças, uma das quais abriga a Igreja. Havia ainda doze oficinas e quatro lojas.

Mestre d’Armas continuou crescendo e ganhando em importância durante a primeira

metade do século XX, mas não tomou parte na industrialização que começou no Estado nos anos 1940. Conhecida como Planaltina desde 1917, a vila ganhou notoriedade nacional quando, a 7 de setembro de 1922, o Engenheiro ferroviário Balduíno de Almeida fez erguer a Pedra Fundamental da Nova Capital do Brasil, num morro a dez quilômetros da área urbana. Planaltina foi a primeira localidade de Goiás, fora a capital, a ter uma estação de energia — em 1925 — e uma linha telefônica. Em 1935, foi construído a leste da vila o segundo campo de aviação do Estado, depois do Aeroporto de Goiânia, como parte de uma rota planejada entre Buenos Aires e Belém. Hosannah Pinheiro Guimarães foi o único planaltinense a alcançar o cargo de vice- governador do Estado, nos anos 1930. Em 1938, ao completar um século de existência, o caminho que ligava Planaltina a Luziânia foi substituído por uma estrada de rodagem chegando até Ipameri, principal parada da ferrovia no sul do Estado. Nessa época, a antiga Estrada da Bahia já havia sido desviada para passar pelo centro de Planaltina.

A construção de Goiânia a partir de 1932, no entanto, reorientou os eixos econômicos de Goiás, em detrimento da importância comercial que Planaltina vinha alcançando. Sua população urbana estagnou em 2.000 habitantes, ao passo que vilas antes menores que isso atingiam a dezena de milhar, sobretudo no caminho que ligava a nova capital ao Sul do Estado. Nenhum edifício público novo foi inaugurado em Planaltina após 1942. A fundação de Brasília alterou inteiramente o destino da vila. A sede municipal, incorporada ao perímetro do Distrito Federal, tornou-se uma cidade- satélite povoada em grande parte por migrantes de outras regiões. Com mais de cem mil habitantes, o conjunto urbano da Planaltina atual impões pressões imobiliárias severas sobre o centro histórico, ameaçando seu patrimônio arquitetônico.

Morfologia e Desenvolvimento Urbano

O desenvolvimento urbano de Planaltina, desde suas origens no início do século XIX até o projeto de expansão como cidade-satélite de Brasília em 1966, pode ser divido em quatro fases.

Primeira Fase: Estabelecimento do Arraial

Em 1811, foi consagrada a pequena capela de São Sebastião, na margem esquerda do Ribeirão Mestre d’Armas (Fig. 6). Segundo Bertran, sepultamentos tiveram lugar no sítio da capela a partir de 1812 (Bertran 2011). Posteriormente, atrás da capela e mais longe do ribeirão, estabeleceu-se uma malha irregular com uma rua leste-oeste e três norte-sul, definindo quatro quarteirões com lotes grandes e irregulares4 Esse primeiro passo deu origem ao assentamento urbano inicial, identificado como um arraial já em 1838. A essa altura, foi aberta uma estrada ligando Couros a Santa Luzia, passando por um local hoje desconhecido do sítio de Mestre d’Armas. O leito raso do ribeirão

prestava-se a uma multiplicidade de passagens além da única ponte existente hoje no centro histórico da cidade. A nave principal da capela é a única edificação que pode ser datada com segurança a esse primeiro período. Quando da elevação do sítio a freguesia, em 1880, a capela foi ampliada com a construção de sacristia, consistório e capela-mor. No ano seguinte, estabeleceu-se um mourão ao seu lado, indicado que até

4A identificação da atual Rua Treze de Maio com o eixo leste-oeste fundador do assentamento urbano foi feita por Ana Laterza durante a elaboração do Inventário do Setor Tradicional de Planaltina (PHAN 2013), da qual participamos.

então o largo da capela continuava sendo o principal espaço público do povoado.

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Figura 6. Capela de São Sebastião, Planaltina

Segunda Fase: Malha Ortogonal

Em data incerta, esse assentamento foi ampliado com o estabelecimento de uma malha viária ortogonal a norte e leste do núcleo original (Fig. 7) Sabe-se que entre 1895 e 1899 foram construídas as principais edificações em volta da Praça do Jenipapo — hoje Praça Salviano Monteiro, atual ponto central do casco histórico. A abertura dessa praça, portanto, e da atual Avenida Goiás, que corta o centro histórico de leste a oeste, pode ser atribuída à última década do século XIX: a morfologia dos seus lotes difere significativamente daquela do parcelamento original. Em 1910, Mestre d’Armas é descrita no Anuário de Goiás como compreendendo duas praças e cinco ruas — as quatro do parcelamento original, mais a Avenida Goiás. A abertura da avenida e da segunda praça parece ter sido seguida de perto pelo estabelecimento de uma malha ortogonal bem maior, com lotes ainda de dimensões irregulares mas atrelados a eixos perpendiculares. Em 1893, dois anos depois de Mestre d’Armas ser elevada à categoria de vila, registrou-se a implantação de um novo cemitério, ao sul da área urbanizada e delimitado, atualmente, em sua testada leste pela mesma malha ortogonal.

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Figura 7. Desenvolvimento da malha viária de Planaltina

Terceira Fase: Avenidas Perimetrais

Por volta de 1921, essa malha foi completada com a abertura de três avenidas perimetrais: duas na direção norte-sul, enquadrando a malha existente, e uma na direção sudoeste-nordeste, acompanhando uma suave crista do terreno (ver Fig. 7). Na Avenida Marechal Deodoro, no extremo leste da vila, foram construídos os dois maiores edifícios públicos de Planaltina — nome adotado em 1917. O primeiro foi a Casa de Câmara e Cadeia, construída entre 1926 e 1932 na interseção da avenida com a Rua Treze de Maio, único eixo leste-oeste do povoado original. O segundo teria sido a nova Igreja Matriz, monumental obra neogótica iniciada na década de 1930, abandonada ainda incompleta nos anos 1940, e reconstruída no mesmo local em 1980. Na Avenida Salvador Coelho, formando o limite oeste da vila e interligando as duas praças, instalaram-se os Correios, cartório, e o principal armazém (década de 1920), assim como as únicas clínica (1926) e farmácia (1938) da localidade.

Quarta Fase: Vila Vicentina

Até 1966, o crescimento urbano de Planaltina permaneceu quase que inteiramente delimitado por essas três avenidas, com a inauguração da Prefeitura (1942)

incentivando, provavelmente, a ocupação do trecho norte da vila. A abertura da estrada de rodagem para Ipameri, em 1938, seguida da instalação de padres vicentinos nas proximidades do assentamento, provocaram um vetor de urbanização para sudeste, com a criação de uma nova malha ortogonal alinhada com a estrada (ver Fig. 7). Todo esse conjunto urbano existente ou em formação foi segregado em 1966 pela implantação de um trecho urbano modernista, chamado Setor de Integração, que visava a isolar as famílias tradicionais residentes no centro histórico das massas de migrantes que se estabeleceriam nas novas expansões projetadas para Planaltina.

A distribuição de moradias construídas até essa época mostra a consolidação, em Planaltina, de uma separação de níveis de renda. As casas maiores e mais ricas se concentravam no trecho oeste da vila, especialmente em torno das duas praças (ver Fig. 1). O início da estrada para Ipameri, então conhecido como Rua da Palha, e a Avenida Marechal Deodoro abrigavam as casas mais pobres, muitas delas cobertas com choça. Em 1969, o Governo do Distrito Federal introduziu, para uso em novos loteamentos, um modelo de habitação popular de baixo custo, o qual foi também extensivamente aplicado nas expansões norte e sul do centro histórico.

Considerações Finais

Em que pese a escassez de documentos históricos e, sobretudo, de projetos, a análise morfológica permite reconstruir o crescimento urbano de Planaltina. Essa reconstituição contribui para preencher a lacuna no conhecimento histórico acerca da urbanização no interior do Brasil durante o século XIX. Ela indica também que, mesmo com poucos registros escritos e orais, é possível reunir informações dispersas e, confrontando-as com os mapas recentes, reconstruir as principais características do processo de urbanização.

As características da ocupação urbana assim reconstruídas lançam luz sobre o período de transição situado entre o declínio dos arraiais de mineração e a difusão de planos urbanos de arquitetos e engenheiros profissionais no interior do Brasil. Nota-se o questionamento de alguns cânones da urbanização brasileira, tais como a ocupação em topos de morros, os lotes estreitos e profundos, e a construção de igrejas em pontos centrais. Em vez disso, Planaltina apresenta um sítio próximo a uma várzea, lotes largos e rasos, e um crescimento urbano que se afastou do largo da capela.

Ainda assim, restam limitações não desprezíveis nesse conhecimento. A atribuição de datas às diversas fases de crescimento urbano não pode ser feita apenas com base na morfologia, e costuma depender de conhecimentos transmitidos oralmente. Além disso, padrões urbanos e arquitetônicos são mais duradouros em sítios afastados dos grandes centros, e se sobrepõem durante muito tempo — assim, verifica-se a introdução de plantas ecléticas e do tijolo cozido em 1926, mas plantas coloniais e a construção em adobe persistiram até pelo menos 1965. Por fim, espera-se que essa combinação de análise morfológica e registros históricos não-gráficos possa ser extrapolada para outros assentamentos vernáculos, onde a falta de documentação sistemática tem dificultado o preenchimento de lacunas no conhecimento da urbanização brasileira do século XIX.

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