Rios urbanos no oeste paulista: permanências nas cidades
Resumo
O rio é, sem dúvida, um elemento determinante da forma urbana, condicionando sua estruturação. Por um lado é um elemento de separação entre espaços da cidade, e por outro é um meio de comunicação com outras cidades e com o território. Historicamente apresenta um importante papel, pois muitas das cidades brasileiras, desde a época colonial, surgiram às margens dos rios, mas com o tempo foi sendo ofuscado por intervenções sem qualquer critério, escondendo e cancelando sua identidade, a memória e os traços deixados pelo tempo passado. A ação humana foi muitas vezes no sentido de dominá-lo, procurando conter o rio em espaços estreitos, sufocando-o e suprimindo-o da superfície urbana, tornando-o ilegível, perdendo sua forma e morfologia original. Em outros casos, os pequenos córregos urbanos foram considerados como fator de distúrbio, um limite a superar, um obstáculo a eliminar, a esconder. Neste sentido o trabalho busca analisar como acontece atualmente a inserção dos rios nos centros das cidades.
Palavras-chave: paisagem urbana, rios urbanos, cidades, fundos de vale
Abstract
The river is undoubtedly a decisive element of the urban form, conditioning its framework. On one hand it is an element of separation between spaces of the city, and on the other it is a means of communication with other cities and with the territory. Historically it plays an important role, because many of the cities in Brazil, since the colonial times, emerged on the shores of the rivers, but with time they were overshadowed by interventions without any criteria, hiding and canceling their identity, memory and the traces left by time past. Human action was often in order to subdue the river, seeking to contain it in narrow spaces, suffocating it and suppressing the urban surface, making it unreadable, changing its original shape and morphology. In other cases, the small urban streams have been considered as a factor of disturbance, a limit to overcome an obstacle to remove, to hide. In this sense this work seeks to analyze the insertion of the rivers in the city centers nowadays.
Keywords: urban landscape, urban rivers, cities, valley bottom
Introdução
A paisagem é o território construído pelo homem, um lugar ou uma região na qual a história dos homens é explicada e onde foram deixados traços, memórias de uma atividade produtiva, sinais de infraestruturas, monumentos arquitetônicos ou espaços. Para Secchi (1985, p.29) “não há nenhuma parte da cidade e do território em que não se encontrem os densos traços do passado, mesmo naqueles mais recentes”. Traços que não só permanecem por muito tempo, mas que afetam e condicionam decisivamente os processos de crescimento e de transformações das cidades, do território e da paisagem. A ação do homem, ao longo do processo de ocupação do território vai alterando a paisagem, mas o rio permanece. Por um lado é um elemento de separação entre espaços da cidade, e por outro é um meio de comunicação com outras cidades e com o território.
O homem modifica a natureza para atender suas necessidades da vida cotidiana. A ação humana foi no sentido de dominá-lo, procurando conter o rio em espaços estreitos, sufocando-o e suprimindo-o da superfície urbana, tornando-o ilegível, perdendo sua forma e morfologia original. Os pequenos córregos urbanos foram considerados como fator de distúrbio, elementos insalubres, culpados por inundações periódicas, um limite a superar, um obstáculo a eliminar, a esconder.
Neste processo de construção e de transformação do mundo, pode revelar e valorizar ainda mais os significados e os atributos da paisagem, tornando-se visíveis. Por este enfoque, muitos de nossos rios ainda estão por ser habitados. “Reconhecer o rio como paisagem, portanto, é habitar o rio”, conforme Costa (2006, p.11). Para a mesma autora, no adensamento do espaço construído os rios trazem outra importante contribuição para a experiência urbana, pois como espaços livres de edificação, ampliam a possibilidade de fruição da paisagem da cidade.
Historicamente os rios apresentam um importante papel. Muitas das cidades brasileiras, desde a época colonial, surgiram às margens dos rios ou ainda de pequenos cursos d´água. No vasto território da província de São Paulo, a parte oeste era considerada no mapa de 1885, como “terrenos desconhecidos habitados por indígenas.” Este desconhecimento do território levou à criação da Comissão Geológica do Brasil, seguida pela Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo - CGG (1886). Uma das principais contribuições da CGG foi a demarcação dos rios que cortavam o território paulista de leste para oeste. Naquele momento o poder público considerava o rio como via de penetração e de escoamento do café. Para Corrêa (2000, p.43) durante o “devassamento do sertão o rio foi considerado pelos organismos públicos apenas como via de escoamento da produção, refletindo o pensamento da elite cafeicultora.” Os principais rios paulistas não se integraram ao sistema de viação, que se resumiu às ferrovias, o que pode ser explicado pela dificuldade financeira de adequá-los à navegação.
As estradas de ferro do Oeste paulista surgiram nas cristas das bacias fluviais – os espigões divisores dos rios Paranapanema e Peixe (Sorocabana), dos rios Peixe e Aguapeí (Alta Paulista) dos rios Aguapeí e Tietê (Noroeste) e dos rios São José dos Dourados e Grande (Araraquarense) e impulsionaram a criação de uma rede de cidades na primeira metade do século XX, cujo objetivo maior era obter um rápido retorno do investimento feito.
Conforme Constantino (2010), algumas cidades surgiram a partir de uma única fazenda e outras foram implantadas em terras de duas ou mais fazendas ou ainda por companhias colonizadoras. O levantamento realizado possibilitou vislumbrar a configuração destas fazendas, que eram delimitadas quase sempre por rios ou córregos. A subdivisão em glebas e o posterior parcelamento deram origem ao tecido urbano atual. Os patrimônios formados por terras doadas pelos proprietários das grandes fazendas da região eram, em sua maioria, conformados pelos córregos. O presente artigo busca desvendar como acontece atualmente a inserção dos rios nos centros das cidades, áreas dos antigos patrimônios.
Redescobrindo os rios nas cidades do oeste paulista
Para analisar as paisagens de fundos de vales enquanto território fabricado e habitado buscou-se reconhecer a complexidade de relações entre os rios e as cidades, seus conflitos e contradições, ao longo da história das cidades, sendo moldados segundo os valores culturais. Seguindo a metodologia adotada na pesquisa “Permanências da
estrutura agrária na formação do tecido urbano das cidades do Oeste Paulista”1 que possibilitou vislumbrar a configuração das fazendas que deram origem ao tecido urbano atual, foram escolhidas 16 cidades situadas ao longo das linhas férreas: Agudos, Lençóis Paulista, Tupã e Panorama (Alta Paulista), Araraquara, São José do Rio Preto, Jales e Santa Fé do Sul (Araraquarense), Botucatu, Lins, Penápolis e Araçatuba (Noroeste) e Ourinhos, Avaré, Presidente Prudente e Presidente Epitácio (Sorocabana). Em algumas cidades analisadas, as linhas férreas acompanhavam os rios. “As estações e as linhas férreas eram as portas da cidade e hoje, degradadas, são consideradas “fundos”, espaços escondidos e não percebidos: um vazio entre lugares” (CONSTANTINO, 2013). Ao longo dos levantamentos nos chamou a atenção a questão do abandono das áreas próximas aos córregos e rios nas áreas centrais urbanas, lugar onde foram criados os patrimônios que deram origem às cidades.
A proximidade dos rios possibilitava o acesso à água e a delimitação do território, além da proporcionar o lazer e circulação de pessoas e de bens. A gleba a ser transformada em solo urbano, geralmente tinha como um de seus limites um curso d´água, e os demais confrontavam com uma ou mais propriedades rurais. E ao longo das décadas as paisagens fluviais foram se transformando também em paisagens urbanas (Tabela 1).
Tabela
- Rios nas cidades da Alta Paulista: no patrimônio e situação atual. Fonte: TORRES, 2013
+————-+————-+————-+—+————-+—+—+ | > | > | > Situação | | | | | | Cidades | Patrimônios | > atual | | | | | | | > e rios | | | | | | +=============+=============+=============+===+=============+===+===+ | > | | | | > de São | | | | | | | | > Paulo dos | | | | | | | | > Agudos, | | | | | | | | > entre os | | | | | | | | > córregos | | | | | | | | > Agudos e | | | | | | | | > Bom | | | | | | | | > Sucesso, | | | | | | | | > 1853. | | | | | | | | > Fonte: | | | | | | | | > SITU | | | +————-+————-+————-+—+————-+—+—+ | | | | | | | | +————-+————-+————-+—+————-+—+—+ | > Lençóis | | > Villa de | | | | | | > Paulista | | > Lençoes | | | | | | > - | | > limitada | | | | | | | | > pelo Rio | | | | | | | | > Lençoes, | | | | | | | | > 1894. | | | | | | | | > | | | | | | | | > Fonte: | | | | | | | | > | | | | | | | | Prefeitura | | | | | | | | > Municipal | | | | | +————-+————-+————-+—+————-+—+—+ | > Tupã | | > Patrim. | | | | | | | | > de Tupan, | | | | | | | | > 1929, | | | | | | | | > traçado | | | | | | | | > eng. | | | | | | | | > Nicolau | | | | | | | | > de Molla, | | | | | | | | > limite | | | | | | | | > c/Rib. | | | | | | | | > Afonso | | | | | | | | > | | | | | | | | XIII.Fonte: | | | | | | | | > Museu | | | | | | | | > I | | | | | | | | ndiaVanuíre | | | | | +————-+————-+————-+—+————-+—+—+
1 A pesquisa foi realizada com a colaboração bolsistas de Iniciação Científica-FAPESP, graduandos do Curso de Arquitetura e Urbanismo da FAAC-UNESP no período 2006-2010 e estava inserida no subtema 3 - “Saberes técnicos e teóricos na configuração e re-configuração das cidades formadas com a abertura de zonas pioneiras no Oeste do estado de São Paulo”, em conjunto com um grupo de professores da FAAC-UNESP - do Projeto Temático FAPESP “Saberes eruditos e técnicos na configuração e re-configuração do espaço urbano – Estado de São Paulo, séculos XIX e XX” (Processo n.05/55338-0), em conjunto com a UNESP, UNICAMP e PUCCAMP, sob a coordenação da historiadora Maria Stella Bresciani.
+—————-+—+—————————-+—+—+ | > Panorama | | > Plano Urbanístico | | | | | | > original do urbanista | | | | | | > Prestes Maia, 1945 e a | | | | | | > orla do Rio Paraná. | | | | | | > Fonte: Simão Podolsky. | | | +—————-+—+—————————-+—+—+
A pesquisa em andamento “A construção da paisagem de fundos de vale em cidades do oeste paulista” 2 busca observar e identificar em algumas cidades analisadas no trabalho anterior, quais as características e as especificidades dos rios que cortam os centros urbanos e quais os elementos que adquirem significados. O levantamento fotográfico realizado em 2013 possibilitou compreender o estado do lugar, a história e as relações existentes entre as cidades e os rios. É através desta leitura exploratória que podemos definir as possibilidades projetuais, levando em conta a geometria variável das intersecções e justaposições, analisando também os espaços livres residuais na área do entorno dos cursos d´água e as diretrizes contidas nos planos diretores e legislações ambientais municipais.
Compreender a paisagem urbana a partir das águas dos rios é um desafio e uma oportunidade privilegiada. Para Besse (2006, p.152), aquele que pretende estudar as paisagens terá como primeira tarefa a de ler e interpretar as formas e as dinâmicas paisagísticas para aprender com elas algo sobre o projeto da sociedade que tem produzido estas paisagens e a sua história.
O surgimento de Tupã aconteceu graças à Empreza Melhoramentos Alta Paulista e a Sociedade Souza Leão & Rocha, cujos sócios eram: Luiz de Souza Leão, Eurípedes Soares da Rocha e João do Val. As divisas do terreno foram realizadas pelo agrimensor Odilon Loureiro que fez divisas do terreno de 100 alqueires, localizado dentro de uma gleba de 4 mil, que ia desde o córrego São Martinho até o córrego Sete de Setembro, incluindo o córrego Affonso XIII, cujas nascentes estavam situadas na gleba que acabava de ser adquirida. Os limites do Patrimônio eram “de um lado com o Manoel Lahoz & Irmãos, do outro com o espigão divisor Peixe – Feio, de outro com a viúva Manoel Alves Sobrinho e de outro com o Córrego Affonso XIII, fechando assim o perímetro” (SERAFIM, 2006, p.54).
O Ribeirão Afonso XIII é afluente da margem esquerda do rio Iacri, que, por sua vez, é afluente do Rio Aguapeí. A sua própria microbacia possui uma área de 105 km². Em Tupã, a coleta e tratamento do esgoto atende 99,82% da população. Atualmente, o Braço Esquerdo do Ribeirão Afonso XIII apresenta trechos canalizados com uma seção retangular e revestidos de gabiões. O Braço Direito do Ribeirão possui uma extensão de 2,8 km aproximadamente, nascendo a sudeste da área urbana, próxima à ferrovia seguindo na direção nordeste até a confluência com o braço esquerdo para formar o Ribeirão. No levantamento fotográfico das margens do braço direito do Ribeirão Afonso XIII constatou-se a presença de pouca mata ciliar e edificações invadindo a área de proteção (1). Um trecho do ribeirão corre por um canal (2), e atravessa uma área apresentando processos erosivos, assoreamento e degradação das margens (3, 4, 5, 6 e 7), observando-se diversas construções às margens do ribeirão
(8, 9, 10 e 11), conforme Figura 1.
2 A pesquisa em andamento contou com a colaboração de 4 bolsistas de Iniciação Científica-FAPESP, graduandas do Curso de Arquitetura e Urbanismo da FAAC-UNESP no período 2012-2013.
Figura 1. Levantamento fotográfico das margens do braço direito do ribeirão Afonso XIII em Tupã. Fonte: TORRES, 2013
Também na cidade de Agudos o levantamento fotográfico foi realizado ao longo do Córrego Bom Sucesso em janeiro de 2013. Em 1853 foi criado o Patrimônio de São Paulo dos Agudos, conformado entre os córregos Agudos e Bom Sucesso. O córrego Bom Sucesso apresenta erosões e ausência de mata ciliar no limite da área urbana e a seguir é contido por gabiões até cruzar a Rua 7 de Setembro quando está canalizado sob a pista; a partir despe ponto, corre livre seguindo o seu curso com densa mata ciliar, passando sob uma ponte em construção, com presença de erosão. O esgoto ainda não é tratado e é lançado in natura nos córregos que cortam a cidade. O Plano Diretor Participativo, desenvolvido pelo grupo SITU da FAAC-UNESP, foi aprovado em 2006, mas ainda não foi implantado. No plano estrutural, o parque linear proposto ao longo dos fundos de vale é apresentado como elemento de reconexão urbana, redefinindo-se um conjunto de vazios urbanos como “Zonas de Especial Interesse, como forma de conter a expansão indiscriminada da malha urbana em direção às áreas com restrição ambiental”, em especial os fundos de vale (RETTO JR et al, 2011), conforme Figura 2.
Figura 2. O parque como elemento de reconexão urbana proposto para a cidade de Agudos. Fonte: RETTO JR et al, 2011.
Ao longo da linha Noroeste foram pesquisadas as cidades de Lins, Botucatu, Penápolis e Andradina. O povoado de Lins, chamado inicialmente Santo Antonio do Campestre, começou próximo ao cruzamento da trilha dos habitantes originais, os índios Coroados, com a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, cujos trilhos acompanhavam o córrego Campestre. No início de 2009 iniciou-se a implantação do parque linear ao longo do córrego, incluindo o Horto Florestal Municipal. No entanto, em 2012, a Câmara aprovou dois projetos que autorizavam a Prefeitura a incluir no orçamento a canalização de um trecho do córrego Campestre. O esgoto doméstico gerado em Lins é 100 % tratado, no entanto era lançado in natura no córrego até 1997. Em Jales, na linha Araraquarense, os dois principais córregos são o Córrego do Marimbondinho e o Córrego Tamboril. O Marimbondinho nasce na cidade de Jales e possui uma parte canalizada a céu aberto e outro trecho canalizado e subterrâneo. O córrego Tamboril apresenta grande problema de assoreamento e erosão em quase toda sua extensão e atualmente existe um plano de ações para a solução desses problemas, com o financiamento da FEHIDRO - Fundo Estadual de Recursos Hídricos. O CBH- SJD - Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São José dos Dourados, formado por 36 cidades do oeste paulista, sendo duas delas Jales e Santa Fé do Sul, é responsável pelo gerenciamento da área, proposta e análise de projetos e recursos, e por diversos assuntos relacionados com os recursos hídricos da região. Com a ajuda da FEHIDRO é possível que ocorra o financiamento de programas e ações nessa área, com o objetivo de estabelecer melhorias e proteção aos corpos d’água e suas bacias hidrográficas (REIS, 2013).
Não é mais aceitável pensar em retificar um rio, revestir seu leito vivo com calhas de concreto, e substituir suas margens vegetadas por vias asfaltadas, como uma alternativa de projeto para sua inserção na paisagem urbana. Estas propostas, que tinham como uma das bases conceituais a busca do controle das enchentes urbanas,
são muito criticadas não só pela fragilidade sócio-ambiental no resultado final do projeto, como também pela pouca eficiência no controle destas mesmas enchentes.
Com o adensamento, surgem novos problemas, como a crescente demanda por habitação e água potável, a oferta de espaços de uso público e de áreas verdes para a população e a drenagem urbana. A questão de um plano de drenagem urbana, associado ao plano de uso e ocupação do solo e ao sistema viário, é fundamental para as nossas cidades. O fato de que muitos rios desapareceram em galerias subterrâneas ou canalizações, não é mais aceito como uma resposta aos problemas de gestão da água relacionada com o crescimento urbano. O Córrego Mangará, revitalizado no ano de 2012, é o único córrego em trecho urbano na cidade de Santa Fé do Sul. Durante a revitalização, parte de seu curso foi canalizada a céu aberto e outra parte foi canalizada e coberta, em grande parte por áreas permeáveis, uma ação que não possibilita sua relação com a paisagem em uma cidade que é uma Estância Turística, que tem como principal atração um balneário.
Durante muito tempo, as estratégias da engenharia hidráulica estiveram orientadas no sentido de retificar o leito dos rios, para que suas vazões fossem dirigidas para a jusante pelo caminho mais curto, visando também ganhar áreas maiores para a agricultura e urbanização. A tecnologia adotada era a de transformar os rios em leitos com perfil regular, muitas vezes com as margens revestidas, sem maiores considerações ambientais, o que não é mais aceitável tendo em vista a comprovada fragilidade socioambiental e a pouca eficiência no controle das enchentes.
Os rios e os parques urbanos
O levantamento possibilitou reconhecer espaços lineares e vazios urbanos ao longo das margens dos rios. São espaços de interface e de relação mais direta entre o rio e o tecido urbano, consistindo em um território mais frágil sujeito a todo tipo de invasão e agressões pelo crescimento urbano. Por outro lado, a influência do rio, no seu escoar lento ou impetuoso modifica e incide na forma, na natureza e na dimensão deste espaço. No entanto, a cidade pode recuperar sua relação direta com a presença da água através do desenho de seus acessos, a requalificação de suas margens; são os lugares onde pode-se encontrar localização dos espaços de fruição pública, para o lazer e para o tempo livre através do desenho do percurso possibilitando “a conexão através da continuidade do elemento fluido, os diferentes pedaços que compõem a cidade”, segundo Ferrari (2004, p.219).
A relação com a água pode ser valorizada pela criação de parques urbanos. Em alguns casos os parques são pré-existentes à intervenção, em outros casos o parque é o resultado da ação projetual, tornando-se um lugar e uma paisagem derivada da valorização do traçado da água, da sua conservação e redescoberta onde encontra-se a memória de um traçado agora desaparecido ou ainda introduzido com uma forma contemporânea. O parque é então o lugar no qual a intervenção projetual coloca em cena a relação entre a água e o tecido urbano, através da natureza, a cultura e a história do lugar.
Em São José do Rio Preto (Linha Araraquarense) o patrimônio original foi criado em 1847 entre os córregos Borá e Canela, tributários do Rio Preto. Com o crescimento da área urbana, no final da década de 50 foi iniciada a canalização do córrego Borá e em 2011, a do córrego Canela. O Parque Setorial foi projetado para a cidade foi desenvolvido pelos arquitetos Jamil José Kfouri e Mirthes I. S. Baffi e previa a ocupação dos vales do Rio Preto e do Rio Piedade, com uma área de 510 hectares de prolongamento das faixas de preservação dos mananciais. Proposto no Estudo das Áreas Verdes e Espaços Abertos do Município de São José do Rio Preto em 1977,
poucos trechos foram realmente executados até hoje. O trecho construído se localiza às margens da Represa Municipal, o que levou o Parque a ser popularmente conhecido como “Parque da Represa”(Figura 3).
Figura 3: Levantamento fotográfico em São José do Rio Preto, no realizado ao longo do Rio Preto: lago da represa (1), Parque Setorial (2) com equipamentos públicos e anfiteatro ao ar livre (3), e espaços livres, ao longo do córrego Canela canalizado (4 e 5). Fonte: REIS, 2013
Em Botucatu, na linha Noroeste, foram elaborados dois projetos de parques lineares ao longo do Ribeirão Lavapés que, no entanto não foram implantados. O fundo de vale do ribeirão apresenta amplas áreas livres com potencial para inserção de parques e praças, apesar de haver espaços invadidos por construções. As pontes que cruzam o ribeirão podem ser valorizadas, possibilitando a visualização do curso d´água e sua inserção na paisagem urbana. Na cidade de Araçatuba, o córrego Machadinho encontra-se parcialmente canalizado ao longo da avenida Joaquim Pompeu de Toledo. Na confluência com o Ribeirão Baguaçu foi criado o Parque Ecológico do Baguaçu, aproveitando a mata existente. No entanto o ribeirão ainda sofre com o despejo de esgoto sem tratamento.
Em 1945 a Companhia Paulista de Estradas de Ferro dá prosseguimento às suas obras, com a intenção de estende os trilhos até a divisa do Estado. E ao ter conhecimento destes planos, “o Sr. Quintino de Almeida Maudonnet, empresário de uma tradicional família campineira, decide formar uma sociedade, a Imobiliária Panorama Ltda., com outros empresários também campineiros para comprar a Fazenda São Marcos Evangelista com 2,700 alqueires junto ao ribeirão das Marrecas, margeando o Rio Paraná” (SERAFIM, 2006, p.70) planejando formar ali um núcleo de povoamento.
Ao propor o projeto urbanístico da cidade, Prestes Maia levou em consideração principalmente a posição do porto e o traçado da ferrovia, este sendo determinado de acordo com a lógica dos desenhos das outras linhas da região. Foi dada grande atenção à faixa marginal do Rio na elaboração do plano e planejado uma espécie de
parque. A primeira região a ser ocupada no município foi a margem esquerda do córrego das Marrecas, a zona que se aproxima à margem do Rio Paraná e ao porto. Depois disso a malha urbana expandiu-se ao longo do curso do Rio e em direção ao interior. A cidade de Panorama tem relação intrínseca com o meio ambiente e a coleta e tratamento do esgoto atende 86,19% da população. O Rio Paraná é parte importante da vida da cidade tanto na questão econômica, quanto na cultural e no lazer, possibilitando geração de empregos, extração de matérias-primas e diversão (Figura 4).
Figura 4: Panorama e o Rio Paraná: Balneário Municipal (1, 2, 3), ruínas do antigo porto, onde ancoravam os navios que exportavam as safras de café (4), margens do Rio Paraná, c/ ausência mata ciliar (5,6) e os trilhos dos trens chegando às margens do rio (7,8,9). Fonte: TORRES, 2013
Considerações finais
Cada um dos elementos levados em conta nas várias formas identificadas nos levantamentos realizados constitui uma possibilidade, uma sugestão que qualquer ação projetual deve considerar e reinterpretar de modo mais oportuno e mais consonante às condições do lugar, da história e da memória da paisagem e com os quais o projeto deve dialogar, buscando recuperar a identidade perdida ou criando uma nova identidade.
A preservação, sempre que possível, das margens e sinuosidades naturais dos cursos
d´água, dos ambientes alagadiços, da cobertura florestal da bacia e da vegetação nas orlas de rios e lagos constituem as medidas mais racionais para evitar o agravamento das enchentes urbanas e a degradação dos corpos d´água. Estas áreas podem ser aproveitadas como reservas e parques ecológicos, combinando a preservação com lazer, esportes e educação ambiental, além de restabelecer o sentido de lugar, reconectando os fundos de vale com o tecido urbano, não mais como “um vazio entre lugares” (HOUGH, 1998, p.58).
Os conflitos entre os processos fluviais e os processos de urbanização tem sido de um modo geral enfrentados através de drásticas alterações na estrutura ambiental dos rios, onde em situações extremas, chega-se ao desaparecimento completo dos cursos d´água da paisagem urbana.
É importante reconhecer e valorizar o traçado da água existente verificando quais os sinais que permaneceram na paisagem. Em muitos casos, de fato, não é possível agir através da mera ação de salvaguarda do existente; é necessário “encontrar as regras organizacionais da paisagem, segundo a razão histórica de sua conformação, mas também indagando sobre as novas condições históricas, formais e sociais para que a presença da água volte a ter novamente atributos funcionais e razão de ser” (FERRARI, 2004, p.221). Dentro desta lógica os espaços residuais ao longo das margens dos rios são áreas propícias para agregar identidade e funções, e de possíveis transformações.
A inserção dos rios urbanos é fundamental no processo de requalificação da cidade, de seus espaços centrais e marginais, dos vazios urbanos e dos espaços residuais. Todas as cidades pesquisadas tiveram seus planos diretores aprovados até 2000, apresentando diretrizes relacionadas à valorização dos rios urbanos. Entre as cidades inseridas no Programa Município Verde Azul do Estado de São Paulo, Botucatu destaca-se em primeiro lugar no ranking elaborado a partir de diretrizes ambientais.
Além dos resultados físicos, formais e estéticos, a valorização dos rios urbanos no projeto da paisagem contemporânea mostra que esta mudança não só é possível, mas desejável e necessária, possibilitando a redescoberta de um importante recurso natural e cultural, articulado ao tecido urbano, qualificando a paisagem do lugar.
Agradecimentos
Às alunas, bolsistas de Iniciação Científica FAPESP, Julia M. Torres, Raísa Reis, Maria Olivia Simões e Marília L. Queiroz (Processos FAPESP 2012/13559-3, 2012/14691-2, 2012/14636-1, 2012/18938-2) pelo desenvolvimento das pesquisas sobre os rios nas cidades do Oeste Paulista, e à FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) pelas bolsas concedidas às alunas e principalmente por apoiar a pesquisa coordenada pela autora (Processo FAPESP 12/50098-4).
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