Resumo

Derivada do processo de expansão urbana a área continental do Município de Vitória (ES), a partir de 1950, denominada de Camburi, representa um locus privilegiado devido às suas características físicas propícias tanto para a urbanização quanto para as instalações industriais e logísticas. Porém, evidencia diversos impactos negativos da relação sociedade/natureza, devido à negação de seus elementos naturais: manguezal, restinga e corpos d’água. Sua paisagem atual reflete processos de transformação influenciados por uma sociedade que tende a praticar uma dicotomia entre o ato de construir a cidade e a presença de espaços livres: nesse contexto, a natureza desempenhou papel secundário na determinação da morfologia urbana. Essa visão estanque e retrógrada sobre o binômio construção/desenho da cidade conduziu a uma abordagem fragmentada dos problemas ambientais urbanos, particularmente os relacionados à degradação da qualidade de vida e dos espaços naturais. O objetivo deste estudo é evidenciar o processo de transformação ocorrida na região de Camburi, considerando as variáveis do suporte biofísico (aspectos geomorfológicos, relevo, hidrografia e cobertura vegetal), estrutura viária e grandes estruturas morfológicas urbanas (áreas industriais, verticais e horizontais; loteamentos isolados; grandes parques etc.). Objetiva-se, assim, apresentar um panorama do processo de ocupação da citada região a partir da segunda metade do século XX, além de debater sobre os parâmetros que regem os processos de construção da cidade contemporânea, por meio de uma leitura crítica e multidisciplinar da influência dos elementos naturais na configuração territorial.

Palavras-chave: paisagem, ecologia da paisagem, morfologia urbana, urbanização

Abstract

Derived from the process of urban sprawl the continental area of Vitória (ES) municipality, from 1950, called Camburi, represents a privileged locus due to its physical characteristics conducive both to urbanization and industrial and logistical facilities. However, it highlights various negative impacts of the society/nature relationship, due to the denial of their natural elements: mangrove, restinga and water bodies. Its current landscape reflects transformation processes influenced by a society that tends to practice a dichotomy between the act of building the city and the presence of free spaces: in this context, the nature has played a secondary role in determining urban morphology. This tight and retrograde bias about the binomial construction/city design led to a fragmented approach of urban environmental problems, particularly those related to the deterioration of life quality and natural spaces. The objective of this study is to highlight the transformation process that has occurred in the region of Camburi, considering the variables of the biophysical support (geomorphological aspects, relief, hydrography and vegetation cover), road structure and large urban morphological structures (industrial areas, vertical and horizontal; insulated allotments; large parks etc.). Thus, the goal is to present an overview of that region occupation process from the second half of the 20th century, as well as discuss the parameters that govern the processes of construction of the

contemporary city, through a critical and multidisciplinary reading of the natural elements influence in territorial configuration.

Keywords: landscape, landscape ecology, urban morphology, urbanization

Introdução

Para que se compreenda a evolução da paisagem urbana é necessário um olhar que perceba a diversidade de ritmos, e as diferenças entre estes, que ocorrem no processo de urbanização e expansão das cidades, transitando-se, assim, entre diferentes escalas de análises. No caso das regiões litorâneas, desde a instauração do padrão colonial de ocupação da zona costeira até a atualidade, os ambientes litorâneos são dotados de importância estratégica e singular em diversos aspectos econômicos, ecológicos e socioculturais. E as inter-relações entre economia/política/cultura/natureza configuram, para Saquet (2013), o campo teórico das abordagens conceituais multiescalares, com caráter processual e relacional único, uma vez que mudanças e transformações significam, simultaneamente, continuidades e descontinuidades.

Compreendemos que a evolução da arquitetura e do urbanismo está centrada na busca pela integração do homem com a natureza. Entretanto, ao longo dos séculos, houve uma transformação radical dos valores atribuídos tanto à cidade quanto à natureza. Em Baptista et all (2013), a transformação do Natural ao Cultural, em específico durante o Renascimento se dava pela incorporação dos elementos naturais no desenho das cidades, e a água exercia um papel de destaque na organização da urbe. Já no período Maneirista, o conceito de cidade ideal foi substituído pelo formalismo adequado à necessidade das cidades fortificadas, adotando-se planos regulares e geométricos a modo de isolar o ambiente construído do mundo natural. Já no projeto racionalista da Cidade Industrial, que entende o sistema urbano como uma máquina, a natureza passou a ser domada e, consequentemente, racionalizada.

O objetivo geral deste artigo é construir um quadro de referência para a compreensão das transformações da paisagem ocorridas nas cidades brasileiras, sobretudo no que se refere à intensificação da urbanização e industrialização a partir do século XX. O objetivo específico é evidenciar como essas transformações se processaram na região de Camburi, área continental do Município de Vitória (ES), considerando as variáveis do suporte biofísico (relevo, hidrografia e cobertura vegetal), estrutura viária e grandes estruturas morfológicas (áreas industriais, verticais e horizontais; loteamentos isolados; grandes parques etc.). Logo, será apresentado um panorama da ocupação da citada região de Camburi a partir da segunda metade do século XX, buscando debater sobre os parâmetros que regiram, e continuam regendo, os processos de construção da cidade desde aquele período.

Propõe-se uma análise sobre a influência dos elementos naturais na configuração territorial, bem como sobre as diversidades e contradições que se expressam na cidade, numa abordagem fundamentada nos aspectos conceituais sobre a paisagem, o território, o ambiente, a morfologia urbana e os atributos sociais e culturais que incidem sobre as formas de apropriação do sítio. Para tanto, esta análise deverá apoiar-se na abordagem de múltiplas escalas e de diversas correntes científicas relacionadas às áreas da arquitetura e do urbanismo, da ecologia da paisagem, da geografia e da antropologia.

Paisagem, Território e Ambiente: aproximações conceituais

As reflexões realizadas por Limonad (2008 e 2011), Sposito (2011) e Volochko

(2008) sobre o desenvolvimento da sociedade brasileira na escala tempo/espaço, apontam que, no curso da configuração das cidades contemporâneas, a urbanização é tratada como um crescimento quantitativo do tecido urbano, não necessariamente qualitativo do ambiente urbano. Segundo esse critério, tornar urbano e/ou urbanizar significa introduzir no espaço algo que antes não existia, o que, consequentemente, transforma a paisagem: os espaços naturais, neste contexto, muitas vezes são apropriados para fins diversos (residenciais, industriais etc.); e onde populações e atividades produtivas são desterritorializadas e reterritorializadas de forma contínua e cíclica. O que impera nesse paradigma é a conquista de novos territórios, é a sobreposição e justaposição dos tecidos e dos limites da cidade, desencadeando, assim, uma série de conflitos socioambientais.

As abordagens sobre a configuração das cidades raramente constroem uma totalidade analítica que abarque a somatória dos processos envolvidos: vivemos a materialidade das inter-relações entre economia/política/cultura/natureza, de forma indissociável em suas objetivações e subjetivações. Acreditamos que se faz necessária a superação de concepções simplistas e reducionistas que entendem “os territórios sem sujeitos sociais ou esses sujeitos sem territórios e apreender a complexidade e a unidade do mundo de vida, de maneira (i)material, isto é, as interações no e com o lugar, objetiva e subjetivamente”(SAQUET, 2013. p24, grifos do autor). É neste momento que a Natureza ganha destaque, sobretudo no caso específico das relações do homem com o espaço exterior das edificações (espaços livres), nos quais os termos Ambiente, Paisagem e Território se entrelaçam, se confundem e se complementam.

Efetivamente, não há consenso sobre esses termos e, portanto, segundo Tardin (2008), não pode existir uma definição exata e única do que eles representam e muito menos dos diversos e diferentes fenômenos que abarcam. Mesmo porque, esse consenso seria impossível para as inumeráveis referências conceituais derivadas das diversas correntes científicas, e como já comentadas, serão aqui consideradas as correntes que derivam da geografia (física e cultural), do urbanismo, do paisagismo e da ecologia, as quais, de modos distintos, buscam definir e analisar a estrutura física e as relações socioculturais estabelecidas entre o sítio e as pessoas que ali habitam. Buscamos, também, analisar a composição e o funcionamento dos ecossistemas existentes, onde “território, paisagem e espaço livre, em sua pluralidade, denotam conotações variadas, e cada uma delas destaca características mais adequadas para as análises que se deseja realizar, o que permite dizer que são, principalmente, conceitos instrumentais” (TARDIN, 2008. p. 43).

Obviamente, mesmo que quiséssemos não poderíamos objetivar aqui esgotar essas perspectivas filosóficas, nem tampouco substituir conceitos forjados com o tempo por visões que lhes sucederam. Mas pretendemos interpretar as correlações existentes entre alguns destes conceitos à luz de explicações realizadas por diversos autores, como por exemplo, Dias et all (2009), Leite (1990, 1991 e 2004), Mateo e Silva (2007), Saquet (2013) e Vicens (2012). Dentre demais autores, percebemos que a maioria desses conceitos se refere a processos e não apenas a espaços. Ab’Sáber (2003), nesse sentido, defende que há um consenso de que a Paisagem é sempre uma herança de processos fisiográficos e biológicos, além de simbolizar o patrimônio coletivo dos povos que historicamente herdaram-na como espaço de atuação de suas comunidades. Se partirmos do princípio de que o território é o suporte ou um conjunto de recursos naturais, podemos inferir que as “abordagens relacionais e processuais, reconhecendo outros níveis de relações e poder, os conflitos, a apropriação e

dominação do espaço, enfim, o movimento histórico e multiescalar” (SAQUET, 2013. p17) deverão convergir para um efetivo entrelaçamento entre as definições de Paisagem e Território.

No debate conceitual proposto por Dias et all (2009), relacionando criticamente os significados de Território, Paisagem, Ambiente, Sistema e Espaço, percebemos que tais conceitos não são estanques, e que os processos de adequação e transformação aos quais estão sujeitos nos remetem a leituras relacionadas às perspectivas filosóficas que lhes deram origem. Nelas, ora as definições se complementam, ora se justapõem ou até mesmo se contrapõem sob alguns aspectos.

Para uma abordagem sistêmica de classificação da Paisagem, tanto Mateo e Silva (2007) quanto Vicens (2012), diferenciam quatro vertentes de entendimento: a) a vertente que entende a paisagem como aspecto externo de uma área e/ou território, considerando-a como uma imagem com qualidades inerentes e associadas às interpretações estéticas, o que resulta em diversas percepções; b) a vertente que interpreta a paisagem como formação natural, fundamentada nas inter-relações dos componentes naturais, e entendendo-a como conjuntos dos elementos base dos estudos da geografia física, cuja escala de evolução/transformação é geológica; c) a corrente da paisagem cultural, concebendo-a como resultante da atuação de grupos culturais sobre o espaço natural ao longo do tempo, e que encara a transformação do território como uma relação ativa/passiva entre o homem/natureza; d) e a vertente que concebe a paisagem como formação antroponatural, como um sistema espacial formado por elementos naturais e antropotecnógenas condicionadas socialmente, correlacionando o grau de naturalidade e modificação antrópica na percepção de análise. Corroborando e retificando estas concepções, Leite (1991) afirma:

O homem sempre criou ao seu redor um ambiente que é uma projeção de suas ideias abstratas. Cada momento histórico tem uma paisagem, reflexo da relação circunstancial entre o homem e a natureza e que pode ser vista como a ordenação do ambiente, de acordo com uma imagem ideal. As mudanças nas atitudes do homem com relação à paisagem sempre foram marcadas por uma poderosa atração pela natureza. Essa atração está presente, tanto na paisagem submissa dos jardins do mundo clássico, quanto no caráter social da paisagem contemporânea (LEITE,

  1. p.45).

Neste aspecto, a atribuição desse caráter social destinado ao termo Ambiente, em comparação com a Paisagem e o Território, é o de espaço vivido que influencia o comportamento humano em função dos valores nele inscritos, e atua como elemento normativo sobre os comportamentos e representações. Dias et all (2009), nos trazem que a noção de ambiente não se encerra apenas na dimensão natural, mas pressupõe uma visão integral decorrente da tomada de consciência da vida em sociedade, da relação entre as populações humanas e de suas interações com a natureza. Portanto, o ambiente envolve o ser humano; e o Meio é o lugar onde ocorrem as relações e das quais podem ou não advir significados. Logo, o Ambiente é um estado de consciência que aflora a partir do significado dessas relações: são lugares onde os seres vivem - em salas, ônibus, florestas, praças etc., ou seja, em qualquer meio em que se encontrem. Neste contexto, entendemos que o ambiente é dinâmico porque incorpora sistemas de valores e porque se transforma permanentemente, tornando-se o espaço

experimentado, vivido e relacional.

Ao problematizar sobre a relação do homem com o ambiente, David Drew nos trás uma perspectiva diferenciada sobre os significados deste, pois afirma que a tradição cultural desempenha papel determinante no comportamento das pessoas em relação ao espaço onde vivem: a maneira como o Homem ocidental encara o seu meio deriva em parte do ideal cristão-judaico. Segundo a qual, ao invés de outras criaturas, o homem foi feito à imagem de Deus, tendo, portanto, o direito de dominar o mundo, e que em outras culturas/religiões orientais, como o budismo, taoísmo chinês e xintoísmo nipônico, por exemplo, a concepção de mundo produziu reações diferentes em relação à natureza. Exemplificando que

A ideia do homem como um ecônomo ou guardião do mundo da natureza também existe, de certa forma, no pensamento pré-cristão, e essa falta de total separação do homem e da natureza ainda persiste, em grau limitado, no islamismo e no judaísmo. O cristianismo, sobretudo em seus pronunciamentos oficiais, talvez em parte como reação aos cultos pagãos da fertilidade da terra [...], dá sempre ênfase à separação entre os seres humanos e o resto da criação. Esse distanciamento mental no pensamento do Ocidente perdura até hoje. Embora a ética cristã já não mantenha essa atitude fundamental, a ideia da natureza como um inimigo a ser combatido e subjugado permanece como parte de nossas concepções econômicas e científicas. O progresso equivale por vezes ao controle da natureza e do mundo natural, que se julga consistir de fatores de produção ou meios pelos quais o homem pode se beneficiar materialmente (DREW, 2010. p. 2).

Cabe reforçar, aqui, o papel que homem desempenha como um dos elementos que interagem no meio biofísico, cultural e simbólico, relacionados ao seu espaço de cognição, apreensão e vivência, produzindo com maior ou menor intensidade marcas indeléveis dessa interação e dos seus impactos decorrentes. Nesta perspectiva, os trabalhos de Afonso (2006) e Tardin (2008), lançam um olhar sobre as formas de urbanização, transformação e estrutura sistêmica em regiões litorâneas, problematizando os padrões urbanos e os processos naturais e introduzindo questionamentos sobre a interação do homem com o ambiente. A abordagem envolve os preceitos da Ecologia da Paisagem, considerada como uma ciência que abrange os campos de estudos biológicos, geográficos e humanos, adotando-se atitudes e pensamentos holísticos e buscando-se uma integração entre o natural e os artefatos elaborados pelos homens. Esses objetivos, consequentemente, estabelecem uma base científica para o planejamento, conservação e desenvolvimento tanto da paisagem quanto do território ou ambiente.

Logo, a metodologia de análise do objeto empírico deste trabalho abordará a transformação da paisagem dentro dessa perspectiva, dando ênfase aos processos naturais (relevo, hidrologia, cobertura vegetal etc.), e às prerrogativas antropológicas (em relação às necessidades humanas de uso da terra na construção do seu habitat).

Panorama histórico e a transformação da paisagem em Camburi

Conforme explicitado anteriormente, desde o período da colonização a localização

das cidades ao longo da costa marítima foi priorizada devido à necessidade de conexão econômica e política com Portugal. Desde aquela época até atualmente foi no entorno dos portos, estrutura fundamental para os circuitos de produção e logística, que foi fomentada a intensificação das atividades urbanas, formando-se as primeiras redes de cidades brasileiras (Salvador, Recife, Rio de Janeiro, Santos e Vitória). Portanto, a qualificação das cidades litorâneas (em geral) e portuárias (em especial), se deve a uma série de atributos singulares, desde a riqueza da biodiversidade e relevância do patrimônio natural às estratégias de fluxos comerciais. É em torno dessas singularidades e potencialidades econômicas e naturais que se justifica a aceleração do processo de expansão territorial, em que a “magnitude do impacto causado ou a velocidade de sua disseminação permite destacar três vetores prioritários: a urbanização, a industrialização e a exploração turística” (MORAES, 2007. p.32). E a região de Camburi não fugiu às regras desse conjunto de fatores. Logo, a investigação sobre a transformação de sua paisagem passa pelo entendimento dos processos de ocupação e, sobretudo, dos impactos provocados pela incompatibilização entre a urbanização e a ecodinâmica costeira.

A evolução geomorfológica da costa capixaba, em especial da Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV), é estritamente complexa de ser descrita e avaliada, uma vez que vários trechos perderam os vestígios de sua constituição, tanto pela ação do homem quanto pela submersão do relevo. No estudo sobre a erosão e progradação do litoral capixaba (ALBINO et all, 2006), foram identificadas três unidades geomorfológicas distintas no estado do Espírito Santo: os afloramentos e promontórios cristalinos pré-cambrianos; as planícies flúvio-marinhas; e os tabuleiros terciários de formação Barreiras. Esta última estende-se por todo o litoral capixaba, e corresponde à forma das falésias (vivas e mortas), além dos terraços de abrasão marinha, distribuídos e expostos durante a maré baixa. Para Albino et all (2006) e para Stange Jr. (1985), essa ultima unidade representa uma estrutura monoclinal íngreme, ocasionada pelo soerguimento da superfície terciária em relação ao nível do mar, ocorrida durante o terciário médio. Tal processo se relaciona ao movimento da placa tectônica da América do Sul para o oeste, e à consequente formação dos Andes, uma vez que a cronologia dos de formação de arenitos de ambos são muito semelhantes. O soerguimento e consequente regressão marinha são indícios de que a RMGV, em algum momento na escala de tempo geológico, era provavelmente uma enseada, pontuada de ilhas que se estendia entre os atuais municípios de Guarapari e Serra, atingindo a base da cadeia de montanhas em direção ao oeste. Essa suposição é fundamentada, principalmente, pela existência de cordões marinhos em diversos locais dessa região metropolitana.

A região aqui estudada, denominada de Camburi, compreende a porção continental do município de Vitória, composta por planícies semiúmidas, trechos de cordões de areia quartzosa derivado da erosão marinha e de áreas de mangues, observado na figura 1. Durante muito tempo os estudos relativos à faixa litorânea brasileira eram pontuais e incompletos, e as investigações sobre os impactos do processo de urbanização identificavam somente a retirada da restinga como um fator negativo. O termo restinga foi historicamente dotado de uma significação unicamente florística, embora se refira também “aos cordões de areia vinculados à história da sedimentação marinha costeira” (AB’SÁBER, 2003. p.45). Por isso, sua importância era minimizada e não correlacionada às alterações ecossistêmicas ocorridas decorrentes do desencontro e conflitos entre os processos urbanos e a dinâmica natural.

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Figura 1. Levantamento aerofotogramétrico parcial de Camburi, 1955. Indicação do traçado inicial do atual bairro de Jardim Camburi [1], a implantação da pista do Aeroporto Eurico Salles [2], e a Avenida Fernando Ferrari [3]. Nota-se ainda a presença dos pequenos fundos de vale e inúmeros corpos d’água que posteriormente eliminados pela urbanização da região, das áreas semiúmidas, dos cordões marinhos e a extensão do manguezal. Fonte: Instituto Jones dos Santos Neves (com inserções dos autores).

Os atuais conflitos socioambientais presentes na região de Camburi, como dito anteriormente são derivados da atração exercida pela zona costeira para ocupação com assentamentos humanos, e acentuados a partir da década de 1950 - período identificado como de transição da economia cafeeira para industrial, atrelado aos interesses mercadológicos para parcelamento e ocupação do solo capixaba. Até o final da década de 1970, conforme Mendonça (1995), a região de Camburi se converteu no foco preferencial para instalação de moradores da classe média, fazendo com que a região apresentasse o maior adensamento urbano da RMGV. O gatilho da expansão territorial de Vitória remete à transição do período colonial brasileiro ao da instauração da República no final do século XIX. Naquela época, os governantes buscavam romper os laços coloniais e firmar uma nova imagem para o país, e parte desta transformação consistia na reconfiguração das cidades a reboque das intervenções haussmanianas. Em Vitória essa transformação foi tardia, como explica Baptista et all (2013), uma vez que ainda no início do século XX a estrutura urbana do núcleo fundacional ainda era considerado suficiente à população. Contudo, em meio ao contexto de desenvolvimento nacional, a partir da década de 1910 deu-se início a reconfiguração e expansão do sistema portuário. Com isso, o recortado litoral da Baía de Vitória era gradativamente transformado, eliminando-se as franjas dos manguezais e dando lugar a formas mais regulares por meio de sucessivos aterros.

A expansão mais expressiva em direção a leste/nordeste da ilha se deu: pelo projeto de Saturnino de Brito denominado “Novo Arrabalde” (atual Praia do Canto e adjacências), de traçado regular como forma de superação do traçado colonial, e acrescentava um expressivo sítio por meio de aterros e enroncamentos para a ocupação urbana; e de outros projetos de expansão do Plano de Urbanização de Vitória (1931). Esse conjunto indicou o eixo preferencial para a ampliação do território, contudo explicitou as vantagens e desvantagens na utilização dos terrenos da própria Ilha ao invés da planície continental. Mendonça (1995) identificou, nos discursos de Henrique de Novaes e do próprio Saturnino de Brito, que era preferível conquistar terras junto à Ilha, do que submeter à população a fadiga diária de grandes deslocamentos, uma vez que o centro das atividades comerciais e de serviços encontravam-se no núcleo fundacional. Abe (1999) aponta que, no período entre 1930 a 1943, foi implementada uma política de caráter nacional que permitiu avançar com as obras do porto no final da praia da Camburi. Tal estratégia se fundamentava na

inadequação física dos portos da Baía de Vitória para atender ao comércio internacional de minério, porque os novos meios de transporte marítimo, de maior calado, tinham dificuldade de transitar na Baía de Vitória devido ao seu assoreamento. Justificando-se, assim, a concentração das atividades de beneficiamento e transporte de minério no complexo industrial/portuário da Ponta de Tubarão (cf. Figuras 2 e 3).

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Figura 2. Vista aérea das obras de expansão do Terminal Marítimo de Tubarão (ES), entre 1971 e 1972, durante a execução do segundo aterro de ampliação da ponta de Camburi (VALE, 2012. p.152).

Figura 3. Atual configuração do complexo industrial/portuário de Tubarão, destacando-se a transformação da paisagem com a urbanização de Jardim Camburi e com os diversos aterros para ampliação do porto (Foto de André Bonacin, 2012).

Entre as décadas de 1950 e 1980, a expansão urbana no citado eixo ganha volume, (cf. Figuras 04 e 05), e a implantação e construção dos conjuntos habitacionais em Goiabeiras, Jardim da Penha, Bairro República e Jardim Camburi contribuíram para a formação de um ambiente urbano. Contudo, a instalação do complexo industrial e portuário foi o fator determinante para o crescimento urbano nesta direção, bem como constituiu razão para conflitos na determinação dos limites municipais entre Vitória e Serra. Naquela época, o Estado Militar considerava que a implantação do complexo industrial, com destaque para a atividade de siderurgia, iria transformar o planalto de Carapina no maior centro siderúrgico da América Latina. Em consequência disso, o porto de Tubarão, deveria ser adequado, sendo necessários diversos investimentos em infraestrutura que correspondessem ao desenvolvimento econômico pretendido. As obras viárias intensificaram-se, não necessariamente para dar acesso às atividades urbanas, mas, sim, para facilitar o acesso às plantas industriais ampliadas pela construção da Companhia Siderúrgica de Tubarão na Praia Mole, ou seja, em terreno adjacente ao da Companhia Vale do Rio Doce (atual Vale).

Em prol do desenvolvimento econômico a paisagem onde se localizam as citadas plantas industriais foi completamente transformada: os corpos d’água da região foram aterrados e canalizados e a linha litorânea reconfigurada, através de sucessivos aterros na Ponta de Tubarão para ampliação da área de estocagem de minério. Albino et all (2006. p.234), destacam que a forma da construção do Porto na Ponta de Tubarão “alterou a morfologia do fundo da baía do Espírito Santo e o padrão da direção das ortogonais das ondas, o que vem causando erosão desde a década de 1980”, tanto na orla de Vitória como no município de Vila Velha. Neste mesmo período, o Campus da Universidade Federal do Espírito Santo foi instalado sobre aterros realizados no manguezal (fig. 6), na antiga estrada do Aeroporto (atual Av. Fernando Ferrari). A fixação do campus universitário em local afastado da área central seguiu o paradigma de isolamento das universidades instituído nacionalmente. Mendonça (1995) considera que esses conjunto de atividades intensificou o vetor de expansão para a

planície continental, e consolidou a urbanização do que anteriormente era área rural, transformando a região em área prioritária de investimentos.

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Figura 4. Levantamento aerofotogramétrico da Região de Camburi, 1970. Destaque para a malha urbana em contraste com os espaços naturais. Em comparação com a fig. 01 nota-se o impacto sobre os corpos d’água em função da forma de implantação da planta industrial e a configuração dos bairros. Fonte: www.veracidade.com.br (com inserções dos autores).

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Figura 5. Levantamento aerofotogramétrico da Região de Camburi, 1978. Destaque para a malha urbana em contraste com os espaços naturais. Nesta imagem nota-se claramente, em comparação com a anterior: a proporção do aterro realizado na ponta de Tubarão para construção do porto; o inicio da instalação da segunda planta industrial; e ampliação da área ocupada pelos bairros. Fonte: www.veracidade.com.br (com inserções dos autores).

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Figura 6. Vista aérea parcial da Região de Camburi por volta da década de 1960/70, com destaque para a implantação da UFES sobre aterros, a abertura das vias em meio à restinga, e conjuntos habitacionais em Jardim da Penha (Autor: Paulo Bonino. Acessado em: 25 de maio de 2013; disponível em http://www.veracidade.com.br/panoramic/aerea/bon ino/025_centrodeartes_jardimdapenha.jpg

Figura 7. Vista aérea parcial da Região de Camburi, e (acima) do bairro Jardim da Penha que segue uma homogeneização do gabarito dos conjuntos habitacionais, diferentemente da Mata da Praia (à esquerda) em função da expectativa de valorização após 1980. Como pano de fundo o Porto de Tubarão, a Praia de Camburi e a Baía do Espírito Santo (Acervo pessoal Patricia Eiko, 2013).

A região de Camburi, portanto, era vista como último reduto disponível para instalação de conjuntos habitacionais (cf. fig. 07), pois oferecia facilidade de infraestruturas urbanas - tornando-se altamente rentável para os cofres públicos. Bairros inteiros apareceram num período de 10 anos, forçando o Poder Público a tomar iniciativas no ordenamento e uso do solo, na pavimentação e instalação de serviços urbanos, numa nítida imagem de progresso. Ao problematizar o ambiente urbano-industrial Drew (2010), afirma que estas atividades representam a mais profunda modificação humana sobre a superfície da terra, porque todos os elementos e aspectos do ambiente passaram a ser “alterados pela urbanização e industrialização, inclusive o relevo, o uso da terra, a vegetação, a fauna, a hidrologia e o clima”, [... e em regra geral, a...] “intensidade da mudança está ligada à densidade da área edificada e a extensão da industrialização” (DREW, 2010. p.177). A explosão das cidades resultou na dispersão urbana pelo território justificada pela utilização de transportes motorizados, tendendo à degradação da natureza. Associada ao crescimento intenso e descontínuo das metrópoles surge novos problemas, alternados em ciclos viciosos que tendem à perda da qualidade de vida urbana.

Entre as décadas 1980 e 2010, (cf. Figuras 8 e 9) a região de Camburi sofreu um processo de intensificação da urbanização sob controle do Município, que instituiu normas para alterar o padrão de ocupação vigente até então, visando à instalação de conjuntos habitacionais e a expectativa de valorização imobiliária. Uma das transformações mais nítidas na paisagem de Camburi decorreu da ampliação da faixa de areia para redesenho da linha litorânea e da construção de três quebra-mares para contenção da erosão derivada da citada ampliação da área portuária. Nesta mesma época ocorreram três outras transformações importantes: 1) a ampliação do loteamento de Jardim Camburi estendeu-se até a divisa entre Vitória e Serra, aterrando a planície semiúmida em direção ao norte; b) a ocupação de trecho do manguezal em Goiabeiras; c) e a ocupação das margens no Canal da Passagem em Jardim da Penha. Nota-se que, para os planos urbanísticos e administrativos municipais, a região de Camburi foi potencialmente destinada para ocupação urbana, contudo, os projetos e a morfologia decorrente dos loteamentos desconsideraram os atributos naturais como qualificadores do ambiente urbano.

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Figura 8. Levantamento aerofotogramétrico da Região de Camburi, 1998. Destaque para a malha urbana em contraste com os espaços naturais. Fonte: www.veracidade.com.br (com inserções dos autores).

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Figura 9. Levantamento aerofotogramétrico da Região de Camburi, 2007. Destaque para a malha urbana em contraste com os espaços naturais. Fonte: www.veracidade.com.br (com inserções dos autores).

Reflexões

Não pretendemos estabelecer aqui uma radical diferenciação entre cidade e natureza, e muito menos repetir o erro de considerar a cidade como uma segunda natureza, ou ainda uma negação do que Milton Santos denominava de “natureza natural”. Afinal, a maioria da população já determinou o meio urbano como habitat preferencial a ponto de, exageros à parte, podermos considerar que a cidade já faz parte da natureza humana. Mas cabe enfatizar, aqui, nossa crítica aos modos como o crescimento urbano, travestido de desenvolvimento, vem se processando indiferentemente das bases territoriais onde se instalam. Cabe relevar nossa preocupação quanto aos paradigmas que historicamente vêm vigorando na produção do território, via de regra

priorizando o “alisamento” dos seus atributos naturais em favor da ocupação urbana. Cabe questionar até quando o Homem acreditará que a sobrevida da cidade e o devir urbano possam seguir por meio da anulação de tais atributos que lhes dão insumos e efetivamente os qualificam. Até quando esse tipo de inferência funcionará como “um tiro no próprio pé”, uma vez que os atributos naturais não são meramente o oposto à qualidade urbana.

Referências bibliográficas

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