A Baixada Fluminense vista através da primeira Comissão de Saneamento da república (1894-1900)
Resumo
Este texto analisa a atuação da primeira comissão de saneamento para a Baixada Fluminense instituída pelos governos republicanos. É a partir das atividades dessa comissão que se consolidou a ideia de saneamento como instrumento civilizatório, agente de modernização, suporte imprescindível ao desenvolvimento da agricultura na região e constituiu uma forma de ler a Baixada que perduraria praticamente todo o século XX.
Palavras-chave: Baixada Fluminense, Administração Pública, Comissões de Saneamento, República Velha
Abstract
This paper researches the performance of the first sanitation committee instituted for Baixada Fluminense by the republican governments. It is from the activities of this commission that if consolidated the idea of sanitation as civilization instrument, modernization agent and essential support to agricultural development for the region, constituted a way to read the region throughout twentieth century.
Keywords: Baixada Fluminense, Public administration, Sanitation Committee, First Brazilian Republic
Apresentação
As comissões de saneamento não foram invenções da República, mas foram as do período republicano que auxiliaram efetivamente a construção da imagem da Baixada Fluminense enquanto um “lugar de falta” e de ausência da atuação do Estado, ajudando a conformar socialmente o que o hoje é vista como região.
A Baixada Fluminense é conceito polissêmico que serve para designar uma porção de terra que atualmente ocupa parte da região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente a banda ocidental da baía de Guanabara. São muitos os conceitos que servem para designar este pedaço de chão: Baixada Fluminense, Região Metropolitana, Grande Rio e Periferia. Estas noções arregimentam sentidos e significados que espacializam o território de forma diferente e entendê-las permitem
[]{#_bookmark0 .anchor}identificar o imaginário construído acerca da região ao longo do tempo; essa mesma área, por exemplo, no século XIX também era denominada de Recôncavo da Guanabara e Grande Iguaçu com significados diversos dos atuais.
Para entender o sentido social das diversas mudanças das nomenclaturas do lugar é necessário percorrer o processo de ocupação e das dinâmicas produzidas pelos diversos agentes na região, inclusive o Estado em suas múltiplas esferas. Desta forma, este trabalho busca através de uma leitura histórica, analisar a atuação da primeira comissão instituída na república para estudar e intervir na Baixada, ressaltando a matriz discursiva utilizada na construção de uma imagem da região.
De Recôncavo da Guanabara a Baixada (Fluminense)
Baixada Fluminense é um termo que veio da geografia e como tal serve para designar um terreno que comporta, a rigor, toda a planície que se estende de Itaguaí até Campos. O engenheiro Hildebrando Goes em seu relatório de 1939 dividiu essa extensa área em quatro setores: Baixada de Campos, a de Araruama, a da Guanabara e a de Sepetiba. Em 1939, segundo essa documentação, a Baixada Fluminense não significava somente uma parte da região metropolitana da cidade do Rio, mas toda a planície do estado do Rio de Janeiro. Ainda que fuja do escopo deste trabalho, é importante ressaltar que somente depois da década de 1970 a região passaria a ser identificada espacialmente como Baixada Fluminense, sinônimo de lugar de pobreza, de violência e ausência de estrutura urbana.
Entre 1870 e 1970 a grande área margeada pela Estrada de Ferro Central do Brasil passaria a ser vista como uma região homogênea denominada de Baixada e não mais de Grande Iguassu ou Recôncavo da Guanabara. É importante entender as diversas nomenclaturas utilizadas, pois em cada momento o termo/conceito arregimentou um conjunto de sentidos. Nesse processo as Comissões de Saneamento exerceram importante papel ao auxiliarem a construir um determinado imaginário da região.
Sinteticamente, pode-se dizer que até 1833, ano de criação do município de Iguassu, a região era composta das freguesias que faziam parte do Termo da cidade do Rio de Janeiro. Não havia sentido de hierarquização, a não ser aquele que distinguia a cidade de seu Termo1. O sentido da cidade era dado pela sua capacidade de atuação
[]{#_bookmark1 .anchor}dentro do contexto da exploração colonial, ou seja, sua função era a partir de sua ocupação, organizar o território de forma a facilitar a extração das riquezas produzidas na região. No caso do Rio, isso incluía o imenso interior, principalmente depois da descoberta do ouro nas Gerais.
(...) a ideia de uma cidade porto, a qual, comandado o escoamento da produção regional, que exporta para mercados remotos, serve como intermediário único e direto entre a sua hinterlândia e o mundo exterior. Contudo, a região do Rio de Janeiro, já de longa data, é muito mais do que uma simples região de especulação.
A drenagem das riquezas regionais, sem dúvida, foi um dos elementos em função dos quais se forjou a região a influencia do Rio de Janeiro, como ocorreu com, praticamente, todas as metrópoles regionais brasileiras .… (Bernardes, 1995:71)
Grande Iguassu também era denominada de arrabalde2, terminologia ampla na medida em que não tinha clara delimitação territorial, podendo ser as áreas mais próximas ao centro da cidade como Inhaúma e Botafogo ou as terras situadas no sopé da Serra do Mar. Naquele momento a indistinção era produzida pela estrutura econômica do entorno, já que a região era dominada pela paisagem das fazendas e engenhos de cana e mandioca. A baia de Guanabara era o fato geográfico-social que dava sentido à leitura do território.
A noção de Recôncavo da Guanabara simbolizava essa forma de ver a região e termos como fundo e boca da baia eram utilizados para dar sentido às relações estabelecidas entre a cidade, o seu entorno e o interior. A baia e os rios eram utilizados como referências espaciais para organizarem os lugares. Neste sentido, a região do entorno começaria a se diferenciar internamente, na medida em que a mais próxima da baia seria bastante utilizada como caminho para o interior, deixando as mais distantes, as chamadas de “terras firmes”, como a freguesia de Santo Antonio da Jacutinga (atual Nova Iguaçu), por exemplo, em segundo plano.
A diferença entre as “terras firmes” e as “alagadas” não se fazia pela questão hídrica, já que nas duas as enchentes eram constantes, o que as diferenciava era a periodicidade em que ficavam inundadas (se permanente ou temporariamente) e a imagem que cada sub-região possuía para o grupo político local. Até metade do século XIX, as áreas próximas à baia eram dinâmicas porque concentraram a logística do
escoamento de mercadorias, vindas do exterior e do imenso interior, enquanto a região da terra firme era vista como secundária dentro do Recôncavo da Guanabara.
A passagem da linha férrea pelas “terras firmes” trouxe para a sub-região um novo dinamismo, principalmente porque atraiu as atenções do Estado Imperial, que antes se voltava para os rios e a baia. Em termos de espacialização, a Baixada Fluminense depois de 1858 começaria na estação da Aclamação (atual Central), ou seja, na cidade do Rio, em função da dinâmica que o trem exercia nas áreas por onde passava. A partir da década de 1870, o estado imperial investiria em projetos e estudos de dragagem dos rios da região, além dele próprio, através de suas repartições, atuar no dessecamento das áreas alagadas. A partir daí as muitas águas seriam vistas como obstáculos à ocupação e ao desenvolvimento econômico da região. Uma nova imagem começaria a ser construída e a ideia de Recôncavo da Guanabara e de Grande Iguaçu, cujo eixo era a baia, seria substituída pelas a de Baixada e a de Periferia com a linha do trem.
Sinteticamente, toda a atual Baixada era denominada de Grande Iguassu porque ocupava todo o território do município de Iguassu, cuja sede era a Vila de Iguassu que vivia de seu porto. Com a criação de Estrela em 1846, em função das muitas dinâmicas de escoamento do café, Iguassu perderia um pedaço de seu território, voltando a tê-lo com a anexação de parte das terras de Estrela, já na república. Mesmo as “terras firmes” compondo a maioria de seu território, ainda assim, o seu porto era o segundo em importância na província.
Tabela 1. 2º porto de Iguassu – é decerto o segundo mais importante da província como porto comercial, a sua exportação para a corte foi no ultimo triênio a seguinte:
+——–+——————-+————+————-+—————————-+ | > Anos | > Café | > feijão | > Farinha | > Tapioca e outros gêneros | +========+===================+============+=============+============================+ | > 1854 | > 1:886,306 arrob | > 58 sacas | > 141 sacos | > 7,025 sacos | +——–+——————-+————+————-+—————————-+ | > 1855 | > 1:821,742 “ | > 194 “ | > 197 | > 9,735 “ | +——–+——————-+————+————-+—————————-+ | > 1856 | > 2:192,168 “ | > 221 “ | > 55 | > 11,417 “ | +——–+——————-+————+————-+—————————-+
A importação em valor excede a 1,600:000$000
Quase todos os gêneros exportados são produzidos pelos municípios de Iguassu, Vassouras, Valença, Paraiba do Sul e alguns outros circunvizinhos da nossa província e da de Minas Gerais, que descem ao porto pelas estradas do Comércio, Verneck, Policia e Presidente Pedreira .…. (Rio de Janeiro, 1857:69, grifo meu)
Durante o período em que a logística do escoamento do café do Vale do Paraíba se organizou em torno dos escravos, muares, barcas e vapores, as chamadas terras alagadas era o centro de preocupação do Estado Imperial, por serem as mais dinâmicas economicamente; já a região de Maxambomba (freguesia de Jacutinga) era secundária. O trem viria transformar a região.
Para Baixada, a Estrada de Ferro D Pedro II, transmutada de Central do Brasil na república, não significou inicialmente ocupação, já que a linha férrea fora construída para ser a principal via de escoamento da produção cafeeira do Vale do Paraíba, mas ao cortar a região dois movimentos ocorreram: a decadência das áreas alagadas por conta da substituição do sistema de escoamento do café; e a transformação de Maxambomba em centro dinâmico, entrando no mapa de atuação do Estado Imperial e depois republicano 3 em função da ferrovia.
Ao longo da década de 1880, comissões foram constituídas e tiveram o importante papel de consolidar o termo Baixada para designar a região e de naturalizar a imagem de insalubridade, a partir da relação de causa e efeito entre alagamentos e propagação das doenças4. Na prática, nenhuma intervenção5 fora realizada no período, mas a Baixada (ainda sem o Fluminense, já que territorialmente compreendia também os subúrbios do Município Neutro) começaria a emergir discursivamente através das comissões como lugar insalubre.
A Comissão de 1894: Saneamento e uma leitura de Baixada (Fluminense)
Entre 1889 e 1930 quatro comissões foram instituídas pelo Estado (três pelos governos estaduais e uma federal) para intervirem na Baixada. As Comissões partiam da leitura que as áreas pantanosas eram focos de doenças, necessitando, portanto, de drenagem. Esse consenso foi construído na interface de duas idéias consolidadas. A primeira relacionava-se com a hegemonia da teoria médica que indicava a existência das águas paradas como fator preponderante na propagação das doenças que assolavam a região; a segunda era a de que saneá-la também seria uma forma de diminuir os problemas de doença da Corte e depois capital federal.
Os subúrbios, desde a década de 1870, começaram a ser objetos de política sanitária dos diversos gabinetes do Império e a Baixada sendo área contígua e possuindo grande extensão de terras alagadas entraria no rol da atenção dos governos centrais e provinciais. Desde 1874, o item “extinção dos pântanos” aparecia nos relatórios dos
[]{#_bookmark2 .anchor}3 Em suas esferas central/federal e/ou provincial/estadual
[]{#_bookmark3 .anchor}4 Até meados do século XIX, não havia entre os médicos o consenso sobre as formas de propagação das doenças. Havia uma corrente que relacionava as áreas alagadas como fator de proliferação de doença, outra sobre a condição social do morador e falta de estrutura do Estado. Sobre as leituras médicas ver Chalhoub (1996) em especial o cap 2
[]{#_bookmark4 .anchor}5 A pesquisa privilegia Nova Iguaçu, isto significa que a documentação levantada no período refere-se à Jacutinga, Marapicu e Meriti e secundariamente Piedade de Iguassu e Santana das Palmeiras. O município de Estrela não foi contemplado.
ministros da pasta dos Negócios do Império, dando destaque as áreas pantanosas do município neutro. A Baixada passaria então, por estar muito próxima da capital, a ser também tema dos profissionais da saúde. As áreas alagadas que no início do século XIX eram imprescindíveis para o funcionamento do sistema de transporte calcado na vias fluviais, naquele momento eram vistas como obstáculo à ocupação da região pelas doenças que abrigavam e tornaram-se um problema de insalubridade para a própria cidade do Rio.
Na república dois movimentos foram fundamentais para a criação da primeira comissão de saneamento da Baixada: o movimento de profilaxia do Distrito Federal e a percepção que a malaria era a principal doença que vitimava a população do estado do Rio de Janeiro; mais uma vez a região era lida na interface das demandas da cidade capital, o que naquele momento mobilizava o governo federal, e da dinâmica regional representada pelos compromissos assumidos pelos grupos políticos do estado. O novo governo estadual começaria a organizar-se para dar conta do controle da moléstia através da Lei 30 de 30/11/1892 ao estabelecer a distinção entre obras de caráter geral e local, deixando a cargo dos municípios a última, mas essa separação implicava também em determinar de onde sairia o recurso financeiro. Desta forma, o governo estadual trouxe para a sua alçada um conjunto de despesas, entre elas o de dessecamento das áreas alagadas.
Entre 1889 e 1894, a administração estadual passaria por uma grande reforma para adequar-se ao novo regime. Somente em 1894, através da lei 173 de 27/11 definiu-se na prática o quadro de obras de caráter geral, ou seja, aquelas que estariam sob a competência do governo estadual, entre elas as obras de limpeza e desobstrução de rios, além da dragagem dos pântanos. Das quatro obras desse item, três ocupavam a Baixada Fluminense e uma na baixada de Campos, essa última ficaria a cargo de uma empresa particular em função de um contrato vigente, mesmo tendo sido assinado no tempo do império (19 de abril 1889).
Mesmo antes da instituição da primeira comissão, o governo estadual tinha sob sua alçada três intervenções na Baixada Fluminense, com argumentos diferentes, mas todas com objetivo de saneamento. A primeira, “Saneamento da margem direita da bacia do Macacu” seria realizada no interesse dos municípios de Santana de Macacu e de Magé; a segunda, “Saneamento da baixada do estado do Rio de Janeiro na região dos
rios que deságuam na baia do Rio de Janeiro e seus afluentes” se concentrariam nas planícies embrejadas dos municípios de Iguassu e Magé, e a última “Saneamento do rio Guandu e seus afluentes” seria realizada porque melhoraria o escoamento das águas dos rios que nasciam na serra acima, em município como o de Vassouras.
Em 1894, o governo estadual promulgou a lei 71 de 10/02 abrindo crédito anual de 500 mil réis destinados ao saneamento das bacias hidrográficas no litoral do estado e, somente em 10/10/1894 saiu o decreto executivo 128 dando instruções para execução da lei 71. As instruções dispostas nos 29 artigos do decreto versavam sobre o que deveria ser estudado (visto) pela Comissão na região, além da sua organização, já que ela foi pensada como um órgão dentro da administração pública. A Comissão funcionaria como uma repartição dentro da Secretaria de Obras Públicas e Indústria (SOPI).
No final do ano, a comissão iniciou seus trabalhos, pois fora instituída em novembro de 1894, no ano seguinte o presidente do estado relatava as primeiras ações.
A comissão de saneamento da Baixada prossegue regularmente nos estudos das regiões alagadiças próximas do litoral, para regularizar o curso das águas, realizado este desideratum, o governo entregará à agricultura terrenos fertilíssimos e, valorizados também, pela proximidade de três importantes centros de consumo e libertará as populações vizinhas da malaria, que há longos anos as tem dizimado. (Rio de Janeiro, 1895b: 20-21)
A comissão deveria atuar em duas frentes: nas franjas do Distrito Federal e na região de Campos e Macaé, embora sua jurisdição fosse toda a extensão da baixada do estado. Inicialmente os trabalhos se concentraram no entorno da baia de Guanabara, mas as chuvas torrenciais em 1896 fizeram que todas as atenções se voltassem para a baixada campista. Esse evento reforçou um dos objetivos da comissão, explícito no decreto, já que sua atuação deveria também contribuir para o funcionamento das vias férreas dentro do estado e foi justamente por isso que o seu trabalho voltou-se para Campos, pois as chuvas alagaram as plantações de cana e impediram o funcionamento da E F Campos- Macaé
Articulando as informações da legislação com as das Mensagens Anuais dos presidentes do estado, dos relatórios da secretaria de Obras e Indústria, dos Relatórios da própria Comissão e do relatório de Hildebrando Goes, é possível entender a dinâmica de funcionamento da Comissão de 1894.
A comissão era formada por engenheiros, chefiada inicialmente por João Teixeira Soares, que entrou de licença em abril de 1895, sendo substituído por Marcellino Ramos da Silva, já realizando o primeiro relatório. Nesse primeiro relatório a Comissão apontou todo o território do estado como campo de atuação, ou seja, a planície que se estende de Angra a Campos, mas os trabalhos concentraram-se em uma pequena área, em função da existência de um contrato de dragagem com uma firma particular para a baixada campista.
A lei que instituiu a comissão de engenheiros colocara como objetivo a produção de um conjunto de informações que permitisse realizar as obras de saneamento; o decreto que tornou possível a execução da lei inseriu também como objetivo a viabilidade econômica das intervenções. Assim, não bastava conhecer, era necessário extrair desse conhecimento vantagens econômicas.
Já no primeiro relatório todas as questões que envolveram a construção das diretrizes e funcionamento foram explicitadas, dando conta das limitações da Comissão. A comissão fora instituída para realizar estudos minuciosos que viabilizassem a atuação do Estado na promoção do desenvolvimento econômico das áreas atingidas, tinha sob sua alçada toda a extensão da planície do estado, mas na prática não tinha pessoal suficiente para estudá-la e usou como argumento um antigo contrato para não adentrar à baixada Campista.
Não bastava sanear, tinha que propor atividades economicamente vantajosas, esse objetivo esbarrava em dois grandes problemas: a dinâmica dos trabalhos não permitia grandes avanços, pois 48% do pessoal alocados na Comissão ficaram doentes nos primeiros meses de trabalho, ocasionando interrupções e rotatividade. Esse problema foi minuciosamente destacado no relatório; e o segundo era conjugar essa realidade com aquilo que o governo estadual considerava desenvolvimento econômico.
Desenvolvimento econômico era visto, naquele momento, como incremento à agricultura, e mesmo estando alocada em uma pasta voltada para indústria (SOPI), até porque a indústria era vista então como instrumento de desenvolvimento à lavoura, o objetivo da Comissão era entregar à população terras férteis livres de doenças. Ainda que fuja ao escopo desse trabalho, é importante salientar que todas as repartições estavam em sintonia com uma visão de desenvolvimento regional, e essa passava pelo incremento da agricultura, por conta disto temas como imigração (braços para lavoura) e tecnologia (educação, indústria e vias férreas) eram acionadas pela administração como suporte ao desenvolvimento agrícola.
A Baixada Campista dentro dessa perspectiva deveria ser o foco dos estudos, já que era a principal região agrícola do estado, mas em função do contrato de 1889 foi deixada de lado e todos os esforços se concentraram em uma pequena área da Baixada Fluminense (Duque de Caxias e Magé), as chamadas terras alagadas, em decadência, mas naquele momento era a principal via de passagem para a capital do estado, Petrópolis.
Enquanto o presidente do estado, em 1895, exortava a possibilidade de entregar terras férteis e sem doenças à população, o relatório confeccionado pela Comissão dava conta de que quase metade do pessoal ficara doente e desses 70% vinham da seção que compreendia Pilar e Estrela. As chuvas de verão mudariam o foco de atuação, ao interromper a estrada de ferro Campos – Macaé e arruinar as plantações de cana em Campos.
Depois de quase um ano estudando uma área específica da Baixada Fluminense, a Comissão voltar-se-ia para a Baixada Campista, mas ainda com objetivo apenas de estudo e sugestões de execução de obras. Essa situação mudaria ao longo de 1896 com a reestruturação interna da comissão, pois a “repartição” reorganizou-se em quatro seções, metade delas manter-se-ia concentrando-se nos estudos e as outras duas passariam a supervisionar a execução das obras. Essa mudança deu efetividade a atuação da Comissão, pois ela passou a realizar um conjunto de obras na baixada Campista e estudar a Fluminense, ou seja, intervir onde era necessária a manutenção das atividades econômicas já consolidadas e conhecer e analisar onde precisaria de uma transformação econômica. O estudo para a Baixada Fluminense foi imediato, da mesma forma que as obras para a Campista.
Com poucos recursos, pois o Estado do Rio ainda enfrentava a crise do Encilhamento, a Comissão no final do século quase nada tinha feito na Baixada Fluminense, a não ser conhecer detalhadamente o regime das águas e das marés na região e dragar alguns rios. Em 02 de maio de 1900 as atividades da comissão foram suspensas, pois o governo avaliou a sua pouca utilidade em relação ao seu custo de manutenção. No balanço feito pelo presidente do estado, apesar de importante os estudos minuciosos para a Baixada Fluminense, somente na Campista um conjunto de intervenções foi realizado. Os seis anos de existência deram ao estado um amplo e aprofundado conhecimento da Baixada Fluminense. Neste sentido, parte dos objetivos
da comissão foi realizada, pois aquela região fora de fato bem estudada, embora as sugestões voltadas ao desenvolvimento econômico não tenham sido feitas.
A Comissão consolidou a ideia que as terras próximas aos três principais centros urbanos (Petrópolis, Niterói e Rio de Janeiro) eram fertilíssimas e que demandavam de duas ações do Estado: o dessecamento dos terrenos para uso da agricultura e a atração de mão de obra para o trabalho no campo, na medida em que a região era vista como um grande vazio demográfico, mas para isso era necessário torná-la própria à ocupação. Para a Comissão os alagamentos e a proliferação de doenças não eram as causas dos problemas na região, mas obstáculos construídos pela falta de ação do Estado, esta sim a principal dificuldade que impedia o desenvolvimento econômico. Na prática a Comissão não avançou no saneamento da região, entretanto, conseguiu transformá-la em centro de preocupação do Estado, ao colocar como questão a necessidade de atuação direta.
Vista como uma região importante pelas cidades que estavam próximas, mas desabitada em razão das doenças que ali proliferavam, até aquele momento, segundo a Comissão, produto da falta de uma ação direta do estado, causa dos principais problemas. Essa imagem, ainda que não correspondesse à realidade6, ao separar o estudo da execução impediu efetividade das proposições e, por conseguinte da obras, entretanto, permitiu criar um imaginário de abandono e de vazio que seria utilizado pelas diversas gestões seguintes para ler a região.
Em 1902, uma nova comissão seria formada e ainda que explicitamente saneamento fosse articulado ao povoamento e ao incremento da agricultura, diferentemente da primeira onde o mote era o conhecimento e não fazia conexão direta com Distrito Federal, a segunda lia a região como extensão da capital, da mesma forma que o próprio território do estado do Rio, justamente porque a capital do país começaria a passar pelas transformações urbanas da reforma Passos.
O grande município de Iguassu7 com suas terras alagadas e secas apresentava diferentes leituras para o Estado. Em nível estadual, sob a égide do desenvolvimento da agricultura, as terras alagadas eram vistas como fronteira de expansão, sertão que precisava ser incorporado efetivamente à economia regional, desde que as doenças
[]{#_bookmark5 .anchor}6 Havia investimento do Estado na região e o vazio não pode ser utilizado para Jacutinga. Sobre o crescimento populacional de Jacutinga no período ver Silva (2013)
[]{#_bookmark6 .anchor}7 6º município em extensão do estado (Rio de Janeiro, 1902)
fossem controladas. Para o governo federal, a região era pensada como suporte da capital em função de sua proximidade, o que na prática significava controle da rede de abastecimento de água, criação de um cinturão verde e provimento de um estoque de terras para habitação, mas tudo isso dependeria também do controle das doenças e do transporte acessível, no caso o trem.
O fim da insalubridade era o objetivo comum das duas visões de Baixada. Cada uma delas foi construída em momentos diferentes. A primeira Comissão da república, instituída na última década do século XIX, via a região como celeiro da capital e com vocação para a agricultura apesar de vazia, sendo pensada como território suplementar da cidade do Rio, aliava as demandas de crescimento da cidade com os compromissos políticos assumidos pelo estado com os grandes fazendeiros, talvez seja por isso que a Comissão tenha ficado apenas na alçada dos estudos, não conseguindo nada além de pequenas dragagens; já a segunda, via a Baixada Fluminense como espaço subalterno, naquilo que o conceito de periferia evocaria anos mais tarde. Ambas acionavam o saneamento como instrumento de leitura do território.
Seria Nilo Peçanha na presidência da república em1910 que constituiria a primeira comissão federal e com ela todas as discussões realizadas nas duas primeiras seriam consolidadas e serviriam de referencia aos trabalhos das ulteriores. Esse ideário seria utilizado exaustivamente pela mais famosa das comissões, a do engenheiro Hildebrando Goes, durante o Estado Novo.
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