Resumo

O presente artigo busca contribuir para o entendimento do processo de estruturação da cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará, na perspectiva da Geografia Histórica Urbana. Esta cidade é conhecida nacional e internacionalmente pelo movimento sócio-religioso do final do século XIX, cujo representante de maior expressão é o Padre Cícero Romão Batista, personagem que tem influenciado muitos estudos sobre esta cidade. Muito se tem pesquisado sobre o sacerdote e sua influência no crescimento e expansão da cidade, tendo a dimensão espacial sido renegada ao segundo plano e por vezes desconsiderada. Argumentamos que a produção do espaço urbano de Juazeiro do Norte não pode ser limitada apenas ao papel da dimensão religiosa, pois muitos outros elementos estiveram presentes na produção e estruturação desta cidade. A metodologia usada é baseada em leitura bibliográfica que resultou na nossa dissertação de mestrado, cujo este trabalho faz parte das reflexões. Concluímos que o estudo da cidade de Juazeiro do Norte requer que tenhamos em mente que o processo histórico tem uma dimensão espacial que é nítida, sem a qual o fenômeno urbano não pode ser estudado, sendo este o resultado da articulação entre agentes, diversas escalas e processos histórico- geográficos.

Palavras-Chave: estruturação da cidade; produção do espaço urbano; geografia histórica urbana; Juazeiro do Norte

Abstract

This paper aims to contribute with the understanding the Juazeiro do Norte - Ceará city structuring process, in the urban historical geography perspective. This city is known nationally and internationally result from the socio-religious movement of the late nineteenth century, whose representative is the Padre Cicero Romão Batista greatest expression, a character who has influenced many studies about this city. Much has been studied about the priest and his influence on the city growth and expansion, having been denied the spatial dimension to the background and sometimes disregarded. We argue that the Juazeiro's urban space production can not be limited only to the religious dimension role, as many other elements were present in this city production and structuring. The methodology is based on literature reading that resulted in our master thesis, which this work is part from reflections. We conclude the Juazeiro city study requires that we keep in mind that the historical process has a spatial dimension that is clear, without which the urban phenomenon can be studied, this being the interaction between agents results, different scales and processes historical- geographical.

Key-words: structuring the city; production of urban space; urban historical geography; Juazeiro do Norte

Introdução

A busca da compreensão das lógicas que produzem o espaço urbano está entre as tarefas mais árduas para os geógrafos na atualidade. Embora seja simples afirmar que a cidade é produzida

1 Este trabalho apresenta parte da discussão desenvolvida no segundo capítulo da nossa dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-graduação em Geografia da UNESP de Presidente Prudente-SP com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

pelos diversos agentes sociais ao longo do processo histórico, é bastante complexo entender como eles atuam no processo de produção do espaço urbano ao longo do tempo, como também compreender quais os seus interesses, suas motivações e as contradições.

Ao estudar uma cidade em particular devemos levar em conta que ela se estrutura a partir de uma multiplicidade de relações que são espaço-temporais e que se realizam em várias escalas, com influência de várias temporalidades distintas.

A presente pesquisa se vincula à Geografia, particularmente à Geografia Urbana. Neste sentido, concordamos com Carlos (2011, p. 67) que nos adverte que “à Geografia está posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial”. Pensar a cidade em uma perspectiva espacial não quer dizer que a cidade deva ser vista como um agente ativo, que se transforma por si mesma. Harvey (2006) alerta para a necessidade de se pensar os processos (urbanização) e os artefatos gerados por ele (a cidade) evitando uma interpretação reificada. A cidade não é um agente ativo, é passivo, “simples coisa” nas palavras do autor. Entretanto, não se pode negar o papel das formas produzidas, nesse caso a cidade, na mudança social (HARVEY, 2006).

Este artigo está dividido em duas seções além desta introdução e das considerações finais. Na primeira seção apresentamos a nossa argumentação em favor de uma maior atenção à dimensão espacial da cidade de Juazeiro do Norte, enquanto que a segunda seção a atenção é dada à análise do período entre 1870 e 1930 e seus aspectos da produção do espaço urbano.

Proposta argumentativa e metodologia

Nossa proposta tem como primeiro plano de análise o fenômeno urbano, deslocando para um segundo plano o aspecto religioso que está atrelado ao desenvolvimento da cidade de Juazeiro do Norte, localizada no sul do estado do Ceará. Não pretendemos, porém, desqualificá-lo ou ignorá-lo. Não se trata disso. Pelo contrário, buscamos entender a estruturação desta cidade a partir das múltiplas dimensões e, nesse caso, a religiosidade e a fé se apresentam como importantes aspectos históricos da produção espacial urbana. Longe de cortar o “cordão

umbilical” que liga a produção do espaço urbano de Juazeiro do Norte à religiosidade2, o que

queremos é tirar o fenômeno urbano de trás das “sombras da cruz”, ou, pra ser mais preciso, das “sombras da estátua”3.

Para alguns, isso pode parecer uma heresia, visto que o desenvolvimento desta cidade se confunde com a própria história de vida do sacerdote Padre Cícero. Escuta-se com frequência, no plano do senso comum e na fala de muitos políticos e empresários locais que “se não fosse o Padre Cícero, Juazeiro hoje não seria o que é”, ou “se tirarmos as romarias, Juazeiro se acaba”. Questões como essa nos levaram a tentar entender o fenômeno urbano como um aspecto particular do desenvolvimento histórico-geográfico, em que a questão religiosa teve um papel fundamental em um determinado período, mas que, no nosso entendimento, hoje não tem mais a influência que tinha até as décadas de 1960/1970.

Este texto parte da perspectiva da geografia urbana histórica e, para isso, tomamos como suporte a proposta metodológica sugerida por Vasconcelos (2008), que está dividida em quatro etapas: a) estabelecer periodizações nas longas durações procurando observar as continuidades e descontinuidades; b) examinar o contexto em cada período de análise em

2 A pesquisa de Silva Júnior (2009) é exemplar nesta perspectiva. O autor mostra, entre outras coisas, que a religiosidade está presente até na nomeação dos bairros e ruas ao longo do processo de expansão da cidade de Juazeiro do Norte. Os bairros São Miguel, Salesianos e São Francisco são os principais exemplos.

3 Essa expressão “nas sombras da cruz” é usada por Silva Júnior (2009) pra fazer referência ao papel da Igreja no desenvolvimento urbano das cidades de Juazeiro do Norte e Sobral, ambas do Ceará. Preferimos utilizar “nas sombras da estátua” por entender que caracteriza melhor a particularidade desse processo em Juazeiro do Norte, uma vez que o Padre Cícero não é considerado santo oficial pela Igreja. De certo, a estátua foi construída na década de 1960, mas a expressão é usada mais em sentido figurado e metafórico para designar a situação da cidade de Juazeiro ser um efeito do qual a causa seria o Padre Cícero.

fontes primárias e secundárias; c) examinar o papel dos principais agentes, tanto locais como externos, que contribuíram para a produção a cidade; e d) examinar o desenvolvimento espacial da cidade em cada um dos períodos. Deter-nos-emos apenas ao período de 1870 e 19304, que se refere ao interregno em que acontecem grandes transformações no povoado de Joaseiro – atual Juazeiro do Norte. A chegada de Padre Cícero ao Povoado, o “milagre da hóstia” envolvendo este sacerdote e uma beata, a separação entre o Estado e a Igreja em âmbito nacional, duas secas devastadoras no Nordeste, a passagem do Brasil Império para o Brasil República e a crise do café, são os principais acontecimentos que marcam esse período com intensas transformações espaciais e rebatimentos na produção das cidades.

A dimensão espacial da cidade de Juazeiro do Norte de 1870 a 1930

Juazeiro do Norte é uma cidade do século XX. Em 2011, completou seu primeiro centenário de emancipação política. Suas raízes remontam ao início do século XIX. Data de 15 de setembro de 1827 o lançamento da pedra fundamental, na capela de Nossa Senhora das Dores

– atualmente a Basílica Menor e conhecida como Igreja da Matriz – pelo padre Pedro Ribeiro da Silva, no Povoado Joaseiro5, distrito da cidade de Crato (MENEZES; ALENCAR, 1989).

Em meados do século XIX, entre 1824 e 1850, a região do Cariri, no sul do Ceará6 – da qual Juazeiro do Norte faz parte – partilhava de ideologias e aspirações nacionalistas e separatistas advindas da influência econômica e política do Recife. Esta região permaneceu relativamente isolada, sem grandes progressos materiais, exceto a cidade do Crato, que era o núcleo urbano por excelência da região. Nesse ambiente, como no Brasil como um todo, o catolicismo ortodoxo vinha se decompondo, o que facilitou o aparecimento de misticismos e práticas litúrgicas e crendices populares, próprias dos pobres, que viria a influenciar o surgimento de Juazeiro (DELLA CAVA, 1985 [1970]7).

Esse panorama começou a mudar entre 1855 e 1865. O Cariri iniciou um renascimento político e econômico por meio de influências advindas de escalas mais amplas. A expansão demográfica dos centros urbanos, como Fortaleza e Recife, que aumentavam a demanda por alimentos e a necessidade europeia de matéria-prima, sobretudo o algodão, fizeram o Cariri – e a economia do Nordeste como um todo – expandir sua produção e alcançar um progresso econômico que refletiu na produção espacial do Vale, principalmente na cidade do Crato (DELLA CAVA, 1985).

Em 1872, chega ao povoado o Padre Cícero Romão Batista. É extensa a bibliografia sobre esse importante personagem da história de Juazeiro do Norte, razão pela qual não nos deteremos nele8. Nesse período, Juazeiro ainda era distrito da cidade de Crato. O contexto social da época anterior à chegada do sacerdote, incluindo-se ai a tensão entre o Estado e a Igreja, bem como a influência do missionário Padre Ibiapina, conforme expõe detalhadamente Della Cava (1985), e o predomínio da sociedade coronelista, foram imprescindíveis para que se conformassem os processos que ajudam a explicar o futuro do povoado.

4 A periodização para o estudo de Juazeiro do Norte que propomos na dissertação de mestrado abrange além do período de 1870-1930, os de 1930 a 1980 e os de 1980 aos dias atuais. Por questões de espaço para a realização deste trabalho, optamos por analisar apenas o primeiro período.

5 Até 1911, Juazeiro era distrito do município de Crato. Passou a se chamar Juazeiro do Norte a partir de 1943 “alterado pelo decreto estadual nº 1114, de 30-12-1943, retificado em virtude do parecer de 14-06-1946 do Conselho Nacional de Geografia” (IBGE, 19??a, não paginado). Antes disso pode-se encontrar vários tipos de grafias, como Joaseiro, Juazeiro, Joazeiro, Juàzeiro etc. Conservaremos as grafias de acordo com que foram escritas nos textos originais, mas usando “Juazeiro do Norte” quando for de nossa autoria

6 Sempre que fizermos referência à região do Cariri significa que estamos nos remetendo ao Cariri Cearense. É

importante lembrar disso para não provocar confusões com o Cariri paraibano.

7 As datas da publicação original aparecerão entre colchetes somente na primeira vez que os respectivos autores forem citados.

8 O leitor que quiser consultar a lista de publicações e livros sobre o Padre Cícero e Juazeiro do Norte, pode acessar o seguinte link: <[http://www.godocs.com.br/padre/docs/bibliografia.pdf]{.ul}>.

Esse recorte temporal é uma época de intensos acontecimentos na escala do Nordeste, Brasil e do mundo. No caso do Brasil, é a época do fim da escravidão, da famosa “Questão Religiosa9” com a separação entre Estado e Igreja, o fim do Império e o início da República, fase inicial da passagem do Brasil agroexportador para o Brasil urbano-industrial. Na escala internacional, a guerra Civil nos Estados Unidos e a Primeira Guerra Mundial acabaram afetando o Brasil, principalmente do ponto de vista econômico.

Em específico às cidades, na escala nacional, a origem de Juazeiro está inserida num contexto de predomínio do campo sobre a cidade, ao menos no âmbito da atividade produtiva, com a economia do café comandando as mudanças que deram ao campo, durante o século XIX até a década de 1920, o controle social e político, com o coronel sendo sua expressão no Nordeste (OLIVEIRA, 1977).

Neste período, as cidades se constituem como lócus do poder e do controle do território, sendo por meio delas que o Brasil se inseria na divisão internacional do trabalho. O padrão urbano, embora com as alterações do ponto de vista dos ciclos da economia brasileira, reproduz uma contradição desde a Colônia: de um lado “um vasto campo indiferenciado, com uma rede urbana pobre, e de outro lado poucas e grandes cidades polarizando as funções de capital comercial e de intermediação entre a produção nacional e a sua realização nos mercados internacionais” (OLIVEIRA, 1982, p. 40).

Iniciam-se, também, no que tange ao espaço urbano, os mercados de terras10, as reformas urbanas em diversas cidades pelas ideologias do higienismo e do sanitarismo. É o período em que “os processos capitalistas modernos se firmam solidamente nas cidades brasileiras” (ABREU, 2001, p. 35), ainda que de modo desigual e diferenciado conforme a formação socioespacial.

À mesma época dava-se o processo de romanização das liturgias da Igreja Católica desde o século XIX, que a permitiu adentrar nos sertões nordestinos fundando capelas e paróquias. Tem-se ai a participação institucional das Igrejas Cristãs, como também os Capuchinhos e os Jesuítas que participaram da gênese de uma ética capitalista – ainda que o capitalismo enquanto tal só se firmasse posteriormente no Brasil – baseado no modo de vida empreendedor com inspiração na acumulação e no lucro (GONÇALVES, 2006, 2007). Isso se refletiu em projetos de civilização do sertão nordestino e de desenvolvimento regional a partir das cidades.

É, nesse contexto, que ocorre o alardeado “milagre da hóstia”, em 1889. Tal evento é comumente caracterizado como o principal fator de mudança tanto em Juazeiro como no Vale do Cariri. Após se espalharem as notícias sobre o “milagre”, “todos os dias chegavam novos contingentes de romeiros: homens, mulheres e crianças, leigos e clérigos, ricos e pobres, pessoas ilustres e simples desconhecidos” (DELLA CAVA, 1985, p. 80). A ele, está atrelada uma série de fatores de ordem nacional e internacional – a “Questão Religiosa” é um deles – que possibilitaram a sua realização e dispersão pelo interior do Nordeste11.

Este evento apresenta-se como um momento decisivo da constituição do povoado. Suas implicações tiveram efeitos espaciais profundos e à dimensão religiosa estavam atreladas as

9 A “Questão Religiosa” foi um conflito entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica. Ocorreu no início da década de 1870, quando Dom Pedro II mandou prender dois Bispos, os quais, tomaram posição contra a maçonaria. Para saber mais como isso influenciou o movimento de Juazeiro, ver Della Cava (1985).

10 O Jornal “O Rebate”, que funcionou de 1909 a 1911 em Juazeiro, e que teve um importante papel no que se

refere à autonomia do povoado, já trazia em suas matérias anúncios de vendas de imóveis localizados no centro da cidade e ou próximo a ele (O REBATE, 190; 1910).

11 A tese de Della Cava (1985, p. 20) é que “o movimento religioso-popular originou-se e desenvolveu-se dentro de um contexto social definido pelas estruturas dominantes em âmbito mundial e nacional. Para sermos mais precisos, o movimento religioso-popular de Joaseiro afetou e foi afetado: (1) pela instituição eclesiástica internacional, a Igreja Católica Apostólica Romana; (2) pelo sistema político nacional do Brasil imperial e republicano; e (3) por uma economia nacional e internacional em mudança”.

dimensões política e econômica12. Conforme ressaltou Della Cava (1985, p. 116), não se percebeu muito bem que “por trás dessa fachada [de centro de fanatismo religioso, de romeiros etc.], porém, estavam ocorrendo importantes transformações políticas e econômicas”.

Antes, durante e depois do “milagre da hóstia”, aconteceram graves secas no Nordeste, que influenciaram a migração para o Cariri e, por conseguinte, para o aumento da densidade populacional dos municípios e cidades. As principais que tiveram consequências foram as secas de 1877, 1888, 1898, 1900 e 1915. É para Juazeiro do Norte que afluiu a maioria dos migrantes, tanto pela questão mítica do sacerdote e da propagação da sua fama de milagreiro pelo interior nordestino, como pelas secas devastadoras.

A bibliografia existente relata que, em 1875, o povoado tinha cerca de trinta e duas casas cobertas de palha, a capela, apenas duas ruas – “a rua Grande, mais tarde rua Padre Cícero, estendia-se, paralelamente, ao longo da capela e encontrava-se em perpendicular com a rua dos Brejos – e cerca de dois mil habitantes, assemelhando-se com uma fazenda de cana-de- açúcar” (DELLA CAVA, 1985, p. 41).

Figura 1- Juazeiro do Norte. Estrutura espacial do povoado em 1875.

Fonte: Della Cava (1985, p. 42)

As intensas migrações que ocorreram para Juazeiro do Norte fizeram que o povoado desse um salto demográfico em poucos anos. Della Cava (1985, p. 138) afirma que “entre 1890 e 1898, a população de Joaseiro mais que duplicou, ultrapassando 5 mil habitantes; em 1905, subiu para 12 mil; em 1909, chegou a 15 mil”. Toda essa população teve que se instalar de alguma forma no povoado. Inicia-se, assim, uma divisão social do espaço que servirá de alicerce para a formação de uma estrutura urbana de caráter monocêntrico que se expressará como centro- periferia ao longo do século XX.

12 Ianni (1979, p. 152-153) observa que o messianismo “está ligado a transformações nas relações sociais de produção [...] sendo a atividade religiosa [...] uma forma de protesto [...] Por trás da aparente resignação que acompanha a reza, a procissão, a romaria e o movimento messiânico, está o descontentamento face às condições presentes de vida”.

Foto 1 - Juazeiro do Norte na década de 1910.

Fonte: arquivo do autor

A década de 1920 é um tanto especial para Juazeiro do Norte e para o País como um todo. No Brasil, esse período é marcado pelo auge da economia agroexportadora, a reforma do sistema bancário e o aparecimento de novos agentes políticos. Esta é a década das origens do Brasil moderno, fundamental, portanto, para se entender o Brasil contemporâneo (SARETTA, 1997). No âmbito das cidades, iniciam-se os atos normativos que acabaram por influenciar o desenvolvimento posterior delas, como a regulamentação do concreto armado – que tornou possível a verticalização – acompanhada por normatizações a respeito da propriedade urbana e o surgimento dos primeiros códigos de zoneamento urbano (ABREU, 2001).

No caso do Nordeste, e do Cariri cearense em particular – incluindo-se ai Juazeiro –, é o momento da rearticulação em escalas geográficas internacionais por meio da economia voltada, principalmente para a Europa e para a Inglaterra em particular, mediante a exportação do algodão a partir da segunda metade da década de 191013. O Cariri também ganhou prestígio político em escala nacional através das relações que se estreitavam cada vez mais, por meio de Floro Bartolomeu e pelo prestígio de Padre Cícero, frente às massas e aos

políticos não só do Cariri, mas do Ceará e do Nordeste como um todo. Nesta época, “Joaseiro era o maior reduto político do Nordeste” (DELLA CAVA, 1985, p. 255).

Era no centro da cidade que se estabelecia a vida de relações da urbe juazeirense. Na década de 1920, diversos equipamentos comerciais e de serviços se instalaram na cidade. Tem destaque a instalação de três fábricas de beneficiamento de algodão, duas ainda em 1919 – o “Pita” de propriedade de Felenon Pita, um rico comerciante e industrial da cidade, uma filial da firma P. Machado e Cia, de Fortaleza, a “P. Machado e CIA” –, e a outra em 1923, de propriedade de Dirceu Inácio de Figueirêdo, onde hoje é a Escola Estadual de Ensino Profissionalizante Prof. Moreira de Souza, antiga Escola Normal Rural. Além disso, a feira passa a ser realizada no Quadro da Independência – hoje Praça Padre Cícero –, e ruas adjacentes, no centro da cidade a partir de 1924, mesmo ano da inauguração do posto de profilaxia “Moura Brasil” (MENEZES; ALENCAR, 1989).

Alguns equipamentos de lazer também foram construídos, e destacamos que, em 1921, foi inaugurado o primeiro cinema, de propriedade do Pelúsio Correia de Macêdo, que funcionava com energia elétrica gerada no local, pois, na cidade, a luz elétrica só chegou em meados da

13 “Entre 1916 e 1918, o algodão apresentou a metade do valor das exportações anuais do Ceará. Através dos anos 20, foi responsável por cerca de 75% da renda total do Ceará, enquanto que os impostos provenientes dos vários ramos da produção e da exportação algodoeiras correspondiam a 55% do orçamento anual real do governo do estado do Ceará. Um indicador da importância do algodão pode ser visto no relatório publicado em 1923 por uma delegação de representantes das indústrias [têxteis britânicas]{.ul}, [que visitou Joaseiro]{.ul} e outros centros produtores do Nordeste com o objetivo de promover o incremento, em volume e em qualidade, das [exportações]{.ul} [de algodão para a Inglaterra]{.ul}” (DELLA CAVA, 1985, p. 258-259 – grifos nosso).

década de 192014. Em 1925, o primeiro carnaval da cidade foi organizado pelo Deputado Federal Floro Bartolomeu (MENEZES; ALENCAR, 1989).

Quanto à existência de luz elétrica, ela só existia no centro da cidade, da mesma forma que o calçamento nas vias urbanas (fotos 2 e 3). A periferia, por sua vez, era o espaço dos despossuídos. A prova disso é que, no ano de 1925, o “Jornal Ideal” publicou uma matéria intitulada “Juazeiro em foco”, fazendo críticas às autoridades locais e reclamando sobre a expansão da luz elétrica para a população da “zona suburbana” (MENEZES; ALENCAR, 1989, p. 130-131). Cabe mencionar nos anos 1920 vários são os trabalhos publicados, contraditórios entre si, que retratam a dimensão espacial da cidade e os modos de vida urbanos. Os livros de Costa Andrade (1922), Moraes Barros (1924), Floro Bartolomeu (1923), Castro (1925), Ceará (1925), Macêdo (1925), Lourenço Filho (1926), e uma matéria especial na Revista Nação Brasileira (1928) expõem como se dava a estruturação da cidade naquele momento histórico. Carvalho (1968), que também visitou a cidade na década de 1920, assim a descreveu:

[...] As ruas centrais, de aspecto semelhante às de Iguatu, Quixadá e Crato, com seu casario de tijolo e telha, em velho estilo português, levemente modificado pelo meio, apareciam retificadas e calçadas. Na área periférica, erguida às pressas e em desordem, de maneira a formar um labirinto, rasgavam-se vielas, alargavam-se becos, numa febre a que não chamo de embelezamento urbanístico [...] (CARVALHO, 1968, p. XI).

Fotos 2 e 3: Juazeiro do Norte. Rua Padre Cícero, em 1923. Imagem utilizada por Floro Bartolomeu no seu discurso em defesa de Juazeiro.

Fonte: arquivo do autor

Obras de infra-estrutura urbana foram realizadas, como a construção da estrada de rodagem que ligava Juazeiro ao Horto15 em 1923 e o Matadouro Modelo em 1928. Em 1929, a cidade foi arborizada com pés de Ficcus-Benjamins (MENEZES; ALENCAR, 1989). A figura abaixo retrata a expansão urbana da cidade nesse primeiro período.

14 Para saber mais sobre a história da energia elétrica em Juazeiro do Norte ver: CASIMIRO, Renato. “A energia elétrica em Juazeiro (I)”. Disponível em: <[http://www.portaldejuazeiro.com/2010/12/energia-eletrica-em-]{.ul} [juazeiro-i.html]{.ul}>. Acesso em: 13 jan. 2013.

15 Horto era o nome de um antigo distrito da cidade, hoje é um bairro. Tem uma importância simbólica significativa, pois é lá onde está a estátua de Padre Cícero e é onde este, quando vivo, se recolhia para realizar suas orações.

Figura 2 - Mapa da expansão urbana de Juazeiro do Norte entre 1870-1930. Fonte: Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, Juazeiro do Norte, 2000.

Adaptado pelo autor

Todavia, o maior acontecimento deste período foi sem dúvida a inauguração do ramal da Rede de Viação Cearense, que passou a ligar o Cariri à Fortaleza em 1926, o que vinha sendo batalhada pelas elites locais deste o início da década de 1910 e que, segundo Loureço Filho, em nota à segunda edição do seu livro “Juàzeiro do Padre Cícero”, promoveu alguns melhoramentos urbanos que não existiam na época de sua visita à cidade. Esse fixo influenciou um novo traçado urbano e uma nova expansão, pois com a inauguração da estação passaram a se concentrar em suas proximidades alguns estabelecimentos comerciais, atacadistas e varejistas, transformando-a em uma área relativamente adensada (CEARÁ, 2000), posteriormente incorporada à mancha urbana, conforme a cidade se expandia. De forma sintética, afirma Alves (1948, p. 98) que “[...] o período de 1922 a 1926 [...] foi o apogeu da cidade”.

Considerações Finais

Diante do exposto, na análise da estruturação de Juazeiro do Norte entre 1870-1930 podemos tirar algumas conclusões de maneira sintética a partir de três dimensões: a) os agentes, b) as escalas e c) os processos. De fato, não é tão simples categorizar os agentes, visto que alguns deles atuaram de diversas maneiras. Tal inferência se dá também no plano das escalas e dos processos.

Como afirma Lefebvre (2008, p 52), “a cidade tem uma história; ela é a obra de uma história, isto é, de pessoas e de grupos bem determinados que realizam essa obra nas condições históricas”. Entre 1870 e 1930, os agentes que mais influenciaram, tanto intensivamente como extensivamente, foram o Padre Cícero e o médico baiano Floro Bartolomeu da Costa. Ambos atuaram e articularam os principais processos e dimensões que acabaram se produzindo e expandindo a cidade. A dimensão econômica, política e cultural-religiosa se entrelaçam, o que muitas vezes é despercebido nas análises de Juazeiro do Norte. Outros agentes influenciaram decisivamente a produção da cidade, como a classe dos proprietários fundiários, a pequena e nascente burguesia comercial, tanto a formada pelos adventícios como pelos “filhos da terra”, os artesãos, a Igreja e o Estado. Não se pode esquecer também dos romeiros que, de fato, contribuíram decisivamente na estruturação da cidade de Juazeiro do Norte.

No âmbito das escalas, elas se articulam de maneiras diversas. Como frisou Sposito (2011, p.

130) “nada pode ser explicado apenas em uma escala [...] toda a compreensão requer a articulação entre as escalas”. Entre 1870 e 1930, os eventos são articulados pelos diversos

agentes, tanto nas escalas regional, nacional e internacional. O local se articula ao global inicialmente com o evento do “milagre da hóstia”, o que propicia as articulações posteriores com a economia regional e internacional, resultado da produção do excedente alimentício e do algodão.

A escala nacional tornou-se a principal a partir do momento em que a política assumiu o primeiro plano, com as articulações encabeçadas por Floro Bartolomeu e pelo prestígio exercido por Padre Cícero. Os agentes se articulam escalarmente, visto que “a escala espacial constitui parte integrante das práticas espaciais dos agentes sociais da produção do espaço” (CORRÊA, 2011, p. 42). Juazeiro também se articula pela dimensão econômica nas escalas regional e internacional, sobretudo pelas investidas na produção do algodão e sua exportação para a Europa.

Do ponto de vista entre os processos, entre 1870 e 1930 é o momento em que, na escala nacional, o capitalismo se solidifica nas cidades brasileiras, embora não dominante, nem da mesma forma nos diversos lugares. Destacamos do ponto de vista do espaço urbano os processos de concentração e centralização espacial do capital. Produz-se, com isso, o centro da cidade, com a localização dos estabelecimentos comerciais e de serviços, as instituições de poder e a monumentalidade – a Praça Padre Cícero é o melhor exemplo disto. É o lugar dos encontros, das trocas, e do lúdico. Com isso, o centro da cidade assume, ao longo destas décadas, um papel importante, um elemento sem o qual a vida de relações na cidade não poderia existir, surgindo assim a primeira expressão de centralidade no espaço urbano, contrastando com a periferia urbana pobre e mal dotada de equipamentos urbanos.

Referências

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