Resumo

O Ceará foi tardiamente colonizado. Durante o século XVIII, os boiadeiros e suas boiadas cruzaram o território cearense. A fixação dos boiadeiros, os sesmeiros do sertão, aliada à da Igreja - domesticando a população indígena que resistia à expansão do criatório - e à participação do Estado português - com a fundação das vilas cearenses - significou a possibilidade de capitalização em torno da atividade comercial da pecuária. A fazenda de gado espalhada no sertão foi sede da ocupação.

Ao lado de uma ou de outra fazenda, terras foram doadas aos santos pelos próprios conquistadores para a realização dos atos religiosos, onde foram erguidas algumas das primeiras capelas do território, outras foram edificadas nos primeiros aldeamentos. No correr do século, enquanto construíam edifícios religiosos em local previamente determinado pelo Bispo de Pernambuco, o Estado Português cuidava de demarcar as áreas de freguesias. Possivelmente em decorrência da baixa rentabilidade da pecuária, uma única freguesia colada fora fundada no Ceará durante o século XVIII, confirmando que o território despertou pouco interesse para Coroa.

Palavras-chave: Capitania do Ceará, Igreja, Estado português, Agentes econômicos

Abstract

The Ceará was later colonized. During the eighteenth century, the cattlemen and their herds crossed the territory of Ceará. The fixation of the cattlemen, the sesmeiros of the hinterland, allied to the Church

  • taming the indigenous population that resisted the expansion of the breeding - and the participation of the Portuguese State - with the founding of villages in Ceará - meant the possibility of capitalization around the commercial activity livestock. The cattle farm in the outback was the headquarters of the occupation.

Beside one or other farm, earth were donated to the saints by the conquerors themselves to the achievement of religious acts, which were erected some of the first chapels in the territory, others were built in the early settlements. In the course of the century, while constructing religious buildings on site previously given by the Bishop of Pernambuco, the Portuguese State tended to demarcate the areas of parishes. Possibly due to the low profitability of livestock, just one parish “colada” was founded in Ceará during the eighteenth century, confirming that the territory aroused little interest to Portugal.

Keywords: Captancy of Ceará, Church, Portuguese State, Economics agents

Introdução

O artigo discute os primórdios da fixação da Igreja no espaço territorial cearense. Contribui com a reflexão identificando as áreas do território e os lugares da fixação, estabelecendo a relação entre a gênese dos aglomerados e a construção das primeiras ermidas e capelas. Também evidencia a pouca importância da capitania para o Estado português considerando o número de freguesias coladas instaladas no território.

A pecuária e a ocupação do território

No final do século XVII e nos primeiros anos do século XVIII, ordens régias portuguesas proibiram a atividade da pecuária na faixa litorânea do nordeste brasileiro, reservando-a para a economia açucareira (JUCÁ NETO, 2012). Expulsos do litoral, os

criadores de gado com suas boiadas partiram em direção à capitania do Maranhão em busca de novas pastagens.

Durante o século XVIII, os boiadeiros e suas boiadas cruzaram o território cearense. Em relação a outras áreas do Brasil, a ocupação do território foi tardia. A despeito de sua baixa produtividade e pequena rentabilidade, a economia pecuarista atribuiu sentido à ocupação e deu forma e conteúdo à Capitania. A fixação dos boiadeiros, os sesmeiros do sertão, aliada à da Igreja - domesticando a população indígena que resistia à expansão do criatório - e à participação do Estado português

  • com a fundação das vilas cearenses - significou a possibilidade de capitalização em torno da atividade comercial da pecuária. A fazenda de gado espalhada no sertão foi sede primeira da ocupação.

Ao lado de algumas fazendas, terras foram doadas aos santos pelos próprios conquistadores para a realização dos atos religiosos, onde foram erguidas algumas das primeiras capelas do território. Além das ermidas erguidas no entorno das fazendas, outras foram edificadas nos aldeamentos.

Predominantemente, as primeiras celebrações aconteceram em altares móveis, frágeis, de madeira roliça; noutras situações as ermidas eram simples palhoças de taipa de sopapo com uma pequena cruz indicando a sua função. Inicialmente, inexistiam capelas construídas com alvenaria de tijolo. Assim como as fazendas de gado, hoje são raras as capelas do século XVIII.

A doação de terras para a construção das primeiras ermidas ao lado das fazendas de gado, juntamente com a formação dos primeiros aldeamentos indígenas significava o início da constituição do patrimônio religioso no Ceará.

A fixação da Igreja no território

A fixação da Igreja no Ceará também ocorreu tardiamente se comparada com o restante da terra brasileira. O processo de conversão1 da capitania não foi diferente daquele empreendido em outras regiões brasileiras, antecedendo o poder civil. Também como no restante do Brasil, a conversão dos sertões do Ceará realizou-se gradativamente, seguindo os caminhos do povoamento, da construção de capelas pelos colonizadores e a

consequente ampliação da rede de freguesias no território.

Além daqueles que se fixaram temporariamente, vários religiosos foram proprietários de sesmarias ou estavam "integrados em congregações beneficiadas com doações de terras" (NOBRE, 1986, P.246).

É possível presumir que, ao contrário da atividade produtiva do açúcar, concentradora de mão de obra, a atividade extensiva da pecuária e sua extrema dispersão tenham dificultado a instalação da Igreja.

O projeto jesuítico na Capitania do Ceará prendeu-se ao surgimento de algumas pequenas "missões anteriormente estabelecidas pelos inacianos em Parangaba, Caucaia e Paupina, nas proximidades da Serra da Ibiapaba, [...] da Serra de Baturité [...] dos Cariris-Novos", e na instalação do Real Hospício2 jesuítico em Aquiraz3.

As missões de Parangaba, Caucaia, Paupina, das serras da Ibiapaba, de Baturité e dos Cariris Novos foram transformadas em vilas no reinado de D. José I. Os novos topônimos impostos pelas autoridades portuguesas foram, respectivamente, os de

1 Tal como Fonseca (2011, p. 83), entendemos a Conversão em uma dupla acepção; tanto a cristianização dos espaços originalmente ocupados por povos “pagãos”, como a “ideia de sua metamorfose, de sua transmutação em territórios controlados por autoridades que exercem funções de cunho tanto religioso como civil”.

2 Segundo Serafim Leite (1943, p. 73), “entende-se por Hospício uma casa ou Residência Grande, cabeça de toda Missão, diferente das casas das Aldeias. A ela se acolheriam os missionários das Aldeias para repousar de vez em quando; e dela, os missionários [...] iriam fazer missões às Aldeias e ao sertão. Seria também uma como enfermaria

geral [...] A este conceito primitivo acresceu mais tarde outro, de estudos, vindo a ser este Hospício o primeiro Seminário e o primeiro estabelecimento oficial de Latim e Humanidades no Ceará”.

3 O Real Hospício de Aquiraz foi destruído em 1854.

Arronches (Parangaba), Soure (Caucaia), Messejana, Vila Viçosa Real e Monte-mor o Novo da América (Baturité). As missões dos Tremenbés, no rio Aracati-Mirim, e a dos Pacajús, no rio Choró, tornaram-se respectivamente Almofala e Monte-mor o Velho da América (Pacajus), mas permaneceram como simples povoados (NOBRE, 1986, p.242). De acordo com Nobre (1980, p. 211), antes mesmo da expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759, a possibilidade de tornar o Ceará uma província jesuítica já havia fracassado devido à criação das vilas, das freguesias, das dificuldades de comunicação no território, das brigas entres sesmeiros e povoadores, das “deliberações das autoridades superiores sediadas em Pernambuco, Bahia” e em Portugal, “da insuficiência de recursos para uma organização de maior vulto” e em decorrência da baixa produtividade da atividade econômica da pecuária.

O território cearense também foi pontuado por ermidas, capelas, aldeamentos pequenos e efêmeros que tiveram à frente, em sua maioria, padres seculares, os Clérigos do Hábito de São Pedro. Além dos oratorianos, carmelitas e capuchinhos percorreram o território, aldeiando a população indígena.

Como afirma Bueno (2009), durante o período colonial as instâncias de poder organizavam-se, hierarquicamente, "em instituições irradiadas a partir das 'cidades reais'". Essas instituições "administrativas, jurídicas e eclesiásticas sobrepunham seus territórios no espaço". Eram "tentáculos metropolitanos na distante 'Conquista', cumprindo papéis distintos" na lógica da ocupação territorial.

Algumas ermidas espalhadas pelo sertão, após a autorização do bispado de Pernambuco, foram transformadas em capelas curadas, visitadas pelo capelão residente da capitania e dependentes das paróquias mais próximas. Com o tempo, no entorno de algumas dessas capelas se organizaram pequenas povoações, alterando a dispersão reinante, vagarosamente, pela materialidade construída dos incipientes núcleos e a institucionalização dos mesmos4. Com o aumento do número de "pessoas de desobriga" ou o crescimento do núcleo adstrito às capelas, o bispo pernambucano era solicitado para a criação de uma paróquia, ou freguesia. Se colada, a freguesia teria um vigário dedicado unicamente a ela, remunerado pela Coroa.

O lugar de alguns primeiros aldeamentos

No final do século XVII, diante da sangrenta “guerra dos bárbaros”, o Rei de Portugal D. Pedro II entendeu que a forma possível de pacificação da região seria o “estabelecimento de aldeias de índios nos sertões de Açu, Jaguaribe e Piranhas”. Seriam duas aldeias em cada sertão, segundo ordem régia do governador de Pernambuco Caetano de Melo Castro datada de 6 de março de 1664 (NOBRE, 1980, p. 229). Possivelmente nas aldeias fundadas nos últimos anos do século XVII e por todo o século XVIII, uma rudimentar capela fora construída.

Em 20 de agosto 1696, o capitão mor do Ceará Pedro Lelou5 escreveu da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção do Ceará Grande ao Rei de Portugal D. Pedro II afirmando a inexistência de sacerdotes e religiosos que assistissem aos gentios na capitania cearense. O documento apresentou ainda um genérico e reduzido panorama quantitativo

dos aldeamentos existentes na capitania cearense.

4 Como afirma Murilo Marx (1991, p. 18), a institucionalização de “tantas e tão dispersas comunidades” se dava pela oficialização das ermidas “de sua capelinha visitada por um cura, o pela sua elevação um dia a matriz, elevação que significava a ascensão de toda uma região inóspita [...] ao novo status de paróquia ou freguesia”. Ainda de acordo com o autor, o que se obtinha não era somente o acesso à assistência religiosa, mas “o reconhecimento da comunidade de fato e de direito perante a igreja, portanto perante o próprio Estado”.

5 Projeto Resgate. AHU-ACL-N-Ceara. Cx. 1. Doc. 37.

[...] há quatro aldeias de gentio potiguaras. Estes são domésticos e batizados, mas mal instruídos na fé por falta de haver nesta capitania sacerdotes ou religiosos que lhes assistam e lhes ensinem a doutrina porque mal há um para todas, ficando elas distantes uma das outra 2, 4, 6 e 8 léguas e assim mais há uma nação de tapuias jaguaribaras que estão aldeados, e alguns destes batizados, mas gentílicos no seu trato e sem doutrina por alta de terem quem os vá catequizando e exortando nela. Há outra nação de tapuias paiacus que assiste este na Ribeira de Jaguaribe que pedem: se querem aldear, e batizar seus filhos, que lhes deem sacerdotes para isso. E há outra nação de tapuias anacés que também pedem lhes deem sacerdote para se aldearem a batizarem.

Até o início do século XVIII, quatro aldeamentos encontravam-se sob os cuidados dos Clérigos do Hábito de São Pedro no Ceará. Não nos foi possível determinar suas durações. Dos quatro, dois estavam localizados na Ribeira do Jaguaribe e dois nas proximidades da futura vila de Fortaleza. Em 1696, os índios paiacus foram reunidos na Aldeia de Nossa Senhora da Madre de Deus (Aldeia Velha), a meia légua do monte Arerê, atual Itaiçaba, na Ribeira do Jaguaribe, sob a ação do clérigo oratoriano João da Costa (Rocha, 2001, p. 22). Em 1697, os índios jaguaribaras e anacés foram aldeados em Parnamirim, a sete léguas de Fortaleza, pelo clérigo João Leite de Aguiar (NOBRE, 2001, p. 231). No ano seguinte, em 1698, Nobre faz referência a um aldeamento nas proximidades da futura vila de Nossa Senhora da Assumpção, sob a atenção do também clérigo João Alvares da Encarnação (NOBRE, 2001, p. 231). Em 1699, o clérigo padre João da Costa cria um novo aldeamento (Aldeia Nova) na Aldeia de Nossa Senhora das Montanhas, localizada a 24 léguas da antiga Aldeia Velha. Rocha (2001, p. 78) assevera que o aldeamento provavelmente localizava-se onde hoje se situa a cidade de Morada Nova.

Além da missão dos jesuítas na serra da Ibiapaba, definitivamente instalada por volta de 1695, também no início do século XVIII identificamos a presença de padres da Companhia de Jesus em missão na Ribeira do Jaguaribe. Segundo Rocha (2001, p. 79), em 1700, o jesuíta João Guinzel6 reuniu índios baiacus na Missão de Nossa Senhora da Anunciada ou Anunciação7 (Aldeia do Jaguaribe), nas proximidades da atual cidade de Tabuleiro do Norte.

Em 1702, de acordo com Geraldo Nobre (1980, p. 238), estando em missão pelo sul do Ceará, o padre João de Matos Serra, vigário colado da vila de Aquiraz (STUDART, 1923, p. 303), fundou o Arraial Novo, sob a invocação de Nossa Senhora do Ó, onde hoje é a cidade do Icó, e aí aldeiou os índios icós.

Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, governador da capitania de Pernambuco, escreveu ao rei D. João V, em 17398, apresentando uma relação das missões e aldeias da capitania pernambucana. Na capitania do Ceará, anexa à capitania de Pernambuco, foram inventariados treze aldeamentos (Tabela 1). Sete aldeias eram ministradas por jesuítas, uma por capuchinho, quatro por clérigos e a vila de Fortaleza não fica

especificado a ordem ou irmandade.

6 Segundo Serafim leite (1043, p. 76), 0 jesuíta João Guinzel é o mesmo padre jesuita João Guedes, um dois fundadores do Real Hospício de Aquiraz no Ceará.

7 Studart Filho escreveu que, em 1700, “o padre João Guedes, com ajuda do padre Vicente Vieira, fundou a Aldeia de

Nossa Senhora da Anunciada, onde reuniu ao Baiacus do Jaguaribe”; apud Nobre (1980, p. 235). O padre João Guedes pertencia à Companhia de Jesus, ver Serafim Leite (1953, p.94).

8 Projeto Resgate. AHU_ACL_CU_015. Cx. 55. D. 4767.

A “Descrição de Pernambuco com parte da sua história e legislação até o Governo de D. Marcos de Noronha em 1746 e mais alguns documentos até 1758” (tabela 2) apresentou a situação das aldeias no Ceará em meados do século XVIII (ROCHA, 2001, p. 247). Segundo o documento o território cearense possuía nove aldeamentos. Os jesuítas encontravam-se basicamente no litoral, excetuando a aldeia da Ibiapada, no alto da serra homônima. Já clérigos do Hábito de São Pedro achavam-se no processo de conversão do sertão. Somente a aldeia de Miranda, no Cariri, que dará origem a atual cidade do Crato encontrava-se sob a ação de um capuchinho, o frei Carlos Ferrara.

Em 1757, o Catálogo da Companhia de Jesus no Brasil relacionou somente cinco aldeias no Ceará: Parangaba, Paupina (Messejana), Caucaia, Payacus e Ibiapapa. (NOBRE, 1980, p. 225).

Tabela 1. Fonte: Projeto Resgate. AHU_ACL_CU_015. Cx. 55. D. 4767.

Tabela 2. Fonte: NOBRE, 1980, p.247.

Primeiras capelas e igrejas

Em alguns casos, após o erguimento das fazendas de gado, os sesmeiros requeriam permissão ao bispado de Pernambuco9 para construção de uma ermida, onde poderiam ouvir as missas celebradas por capelães. A permissão significava assistência religiosa. As ermidas eram construídas em terras doadas10 por um ou mais de um proprietário de terra, contribuindo para a formação do patrimônio eclesiástico na capitania cearense. Juntamente com a fixação dos boiadeiros, a Igreja reafirmava, assim, sua presença no território instalando-se nas terras oferecidas.

Em 20 de agosto de 1696, o capitão mor do Ceará Pedro Lelou em missiva ao rei de Portugal D. Pedro II afirmou que a capitania cearense não possuía igreja matriz e nem curato11. Que as únicas capelas eram as das aldeias e da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção.

O povo desta capitania não tem matriz, nem curato nem há mais igreja fora das aldeias que a capela desta fortaleza, e nela o capelão faz ofício de vigário causa de haver pouca obediência na infantaria por ele os querer reger e meter-se em toda a

9 As paróquias do Ceará eram subordinadas ao Bispado de Pernambuco e este, ao Arcebispado da Bahia, criado em 1676.

10 Em troca da doação de “terras para o santo, seu patrimônio ou da sua capela”, eram rezadas missas para o doador e sua família, em vida e após a morte (MARX, 1991, p.26).

11 Projeto Resgate. AHU-ACL-N-Ceara. Cx. 1. Doc. 36.

governança, com autoridade de vigário; e sendo só não pode acudir a toda obrigação; também se deve atender nesta parte ao bem das almas.

Geraldo Nobre (1980, p. 242) assevera que, provavelmente, "excluídas a do Forte de Nossa Senhora da Assumpção e as das aldeias dos missionários", a capela dedicada à Nossa Senhora do Ó cujo patrimônio fora doado pela família Montes na ribeira do rio Salgado, no lugar da futura matriz de Nossa Senhora da Expectação do Icó, foi a primeira a erigir-se no Ceará. A Carta Régia fundacional da Vila de Nossa Senhora da Expectação do Icó, de 1738, determinou a criação de uma "nova Villa no Icó junto aonde se acha a Igreja Matriz"(JUCÁ NETO, 2012).

Por volta de 1793, Manuel da Cunha Pereira, o capitão comandante da Ribeira do Jaguaribe, pediu licença à rainha D. Maria I para edificar uma ermida em homenagem a Nossa Senhora das Dores, em sua fazenda chamada Boqueirão, localizada na freguesia das Russas12. O documento expressa os procedimentos que provavelmente todos os detentores de terra, durante o século XVIII, deviam ter seguido ao requerer ao bispado

de Pernambuco a construção das primeiras capelas no território cearense. A requisição implicava na doação de terras para o orago correspondente à igreja, contribuindo para o patrimônio religioso da capitania do Ceará.

Diz Manoel da Cunha Per.a Cap.m Comand.e da Ribeira de Jaguaribe, Capitania do Ceará Grande no Bispado de Pern.co que elle pertende edificar na sua fazenda do Boqueirão Freg.a da Russas [...] hua Ermida a Nossa Snr.a das Dores; a qual se faz necess.a para nella ouvirem Missa o Sup.te e Sua Fam.a e igualm.te os Povos circunvizinhos q' distar da moradia do Sup.te Seis legoas a Ermida mais próxima [...] a Sua Pied.e lhe conceda faculd. de p.a d.a fundação concorrendo a Licença do Ordinário a patrimônio Canônico.

Freguesias

Além da construção das ermidas e capelas, e sua elevação à condição de igreja matriz, o bispo de Pernambuco cuidou de ordenar a demarcação dos limites das freguesias13 cearenses, que seriam frequentemente percorridas por padres visitadores angariando fundos para os cofres portugueses.

Em sua maioria, as vilas foram fundadas onde já existiam as sedes das paróquias, o que confirma a precedência da organização religiosa quanto à organização político- administrativa (NOBRE, 1980, p. 246). Durante o século XVIII, o número de freguesias superou o número de vilas criadas no Ceará. A capitania alcançou o século XIX com 17 freguesias e 14 vilas.

Em 17 de fevereiro de 1777, D. Tomás da Encarnação Costa e Lima, bispo de Pernambuco, apresentou ao rei de Portugal D. José I14 uma relação de todas as igrejas paroquiais que pertenciam ao bispado pernambucano - que se estendia desde a foz do São Francisco até Fortaleza, no Ceará, fazendo limite com o do Pará, a oeste, e com o arcebispado da Bahia, ao sul -, abrangendo várias capitanias. Segundo o bispo todas as

capelas do bispado ou eram de

12 Projeto Resgate. AHU_ACL_CU_017. Cx. 12. Doc. 693.

13 As freguesias “designavam o templo – a igreja matriz -, [...] a povoação [...], o conjunto dos fregueses, e por fim, o

território paroquial, que incluía a povoação sede, áreas rurais e, por vezes, sertões residuais” (FONSECA, 2011, p. 84)

14 Projeto resgate. AHU_ACL_CU_015. Cx. 126. D. 9545.

engenhos necessárias para a celebração do Santo Sacrifício da Missa e administração dos Sacramentos aos trabalhadores dos mesmos, ou são edificadas pelos povos circunvizinhos com patrimônio competente, nas distancias grandes das suas Matrizes para o referido fim dos Sacramentos e Santo Sacrifício, conservando-se nelas hum Sacerdote com licença do próprio Parocho, sem alguns encargos de encapellados.

De acordo com o documento, no território cearense havia uma vigaria colada, 19 amovíveis e 34 capelas (tabela 3).

As Paróquias, “freguesias coladas” ou “colativas” possuíam “vigários colados”, “padres perpétuos” que eram nomeados pelo Rei e recebiam os “benefícios eclesiásticos”, as “côngruas”. Já os Curatos ou paróquias encomendadas possuíam padres encomendados, temporários, “nomeados pelo bispo e remunerados pela população”; ou seja, não recebiam côngruas. Para subsistirem as paróquias “cobravam da população as “conhecenças”, que eram taxas diferenciadas (e em geral muito elevadas) para cada tipo de celebração ou sacramento” (FONSECA, 2011, p. 83). A Coroa só criava freguesia colada quando lhe convinha.

A Instalação de Freguesias Coladas como medida de controle implicava em investimentos por parte do Estado Português. Daí porque as sedes paroquiais nos sertões do Brasil localizavam-se em pontos estratégicos do território brasileiro. Como afirma Fonseca (2011, p. 83), a instalação “supunha a existência de povoamento estável e de certa prosperidade nas zonas que seriam incluídas dentro da freguesia”15.

Para efeito de comparação lembramos que em 1778, a região das Minas Gerais possuía 50 freguesias coladas (FONSECA, 2011, p. 97), São Paulo 13 e o Ceará em 1775 apenas uma. A presença de uma única freguesia colada na capitania cearense é indicativa do pequeno interesse da Coroa em relação ao Ceará, na medida em que implicava o pagamento das “congruas” em um território pautado pela baixa rentabilidade econômica. Como no restante do Brasil, o estabelecimento da estrutura eclesiástica no Ceará dependeu, primordialmente, da iniciativa dos habitantes. O que diferia de outras regiões do território brasileiro foi a ausência de capital local, associada à baixa rentabilidade da pecuária, que possibilitasse maiores investimentos por parte dos habitantes, durante o processo de fixação da Igreja.

Em 1800, o visitador Mariano Gregório do Amaral correu a capitania demarcando os limites das freguesias cearenses, identificando suas matrizes e capelas. O espaço territorial do Ceará encontrava-se definitivamente ocupado pela igreja. Possuía 17 freguesias e apresentava uma rede eclesiástica com 22 igrejas Matrizes e 47 capelas (figura 01, 02 e 03). A maioria das igrejas matrizes e capelas encontravam-se nas estradas coloniais delineadas pelo eng. Silva Paulet16 em sua Carta Marítima e

Geográfica da Capitania do Ceará de 1817.

Tabela 3. Fonte: Projeto Resgate. AHU_ACL_CU_015. Cx. 126. D. 9545.

15 Fonseca (2011, p.105) justifica o elevado número pela importância econômica da região mineradora que implicava na necessidade de “se ter “pastores” da confiança do rei na direção das comunidades mineradoras, sobretudo durante o apogeu da produção aurífera”.

16 “Antonio José da Silva Paulet. – Coronel do Real Corpo de Engenheiros. [...] Por Dec. de 13 de Maio de 1811 foi nomeado Ajudante de Ordens do Governo do Ceará, que assumiu a 19 de Março de

  1. (STUDART, 1923, p. 278

– 279)

Figura 1. Mapa Geográfico da Capitania do Ceará. 1800

Fonte: Mapa Geográfico da Capitania do Ceará. Autor: Mariano Gregório do Amaral [1800].

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Figura 2. Vetorização mapa original. Mapa Geográfico da Capitania do Ceará. 1800.

Fonte: Mapa Geográfico da Capitania do Ceará Autor: Mariano Gregório do Amaral [1800]. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Figura 3. Reconstrução gráfica – Freguesias, Igrejas Matrizes e Capelas da Capitania do Ceará. Ano 1800.

Fonte: Mapa Geográfico da Capitania do Ceará. Mariano Gregório do Amaral [1800]. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro./ Carta Marítima e Geográfica da Capitania do Ceará de 1817. José da Silva Paulet. GEAEM. Lisboa.

A Igreja, o Estado, os agentes econômicos e a população indígena: uma ação integrada

A fixação da Igreja no Ceará foi orquestrada por párocos que ou, na maioria das vezes, acompanhavam os primeiros desbravadores ou fundaram aldeamentos, congregando a população indígena que resistia à expansão da pecuária. A rede eclesiástica cearense precedeu a rede civil, mas em termos jurídicos ficava submetida à autoridade portuguesa, assim como ocorreu no restante do território brasileiro. No entorno das primeiras fazendas de gado, com suas ermidas, e dos aldeamentos a gênese urbana se faz presente. Como no restante do Brasil, a fixação – construção de capelas e Igrejas Matrizes – dependeu basicamente dos habitantes locais. As ações foram individuais ou associadas em irmandades.

De maneira dispersa, até as primeiras décadas do século XVIII, a Igreja fixou-se nas proximidades da foz do rio Jaguaribe, nas áreas adjacentes à Fortaleza de Nossa Senhora da Assumpção, na serra da Ibiapada – mais especificamente onde hoje se encontra a cidade de Viçosa do Ceará - e em alguns pontos do interior da capitania, como ocorreu no lugar da atual cidade do Icó. Somente a partir de 1738 a administração civil portuguesa fixou no sertão do Ceará, inicialmente nas proximidades do Icó. O Icó foi elevado à condição de vila somente em 1738. Por todo o século XVIII, a dispersão da Igreja juntamente com a fundação de vilas no território foi paulatinamente sendo alterada.

Embora a Coroa não tenha proibido a instalação de ordens religiosas na Capitania cearense, como ocorreu na zona mineradora, no Ceará não encontramos conventos e residências de ordens regulares com porte arquitetônico como as que foram construídas em outras regiões do Brasil. Supomos que a não fixação de ordens regulares em edificações de grande porte, deveu-se às condições da conquista pautadas por uma extrema adversidade: as secas, as brigas por posse de terra entre os sesmeiros, a resistência indígena à expansão da pecuária e pela pequena produtividade e baixa rentabilidade da economia pecuarista, atividade econômica que atribuiu forma e conteúdo ao território.

Finalmente, afirmamos que a compreensão da organização do espaço territorial do Ceará setecentista não pode desconsiderar as múltiplas ações integradas entre a Igreja, os representantes da atividade pecuária, a população indígena e o Estado português. Os agentes envolvidos na ocupação do território uniram-se de diversas formas e em tempos diferenciados, transformando o espaço.

Referencia Bibliográfica

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