Resumo

Este trabalho tem por objetivo refletir acerca do atual estágio da historiografia sobre o urbanismo em Fortaleza, partindo de um balanço panorâmico do já amplo catálogo dos estudos urbanos sobre a cidade. Fundamentalmente centrado na análise de textos técnicos e científicos, este levantamento busca identificar os marcos e referências ligados à constituição de uma história da prática urbanística local, e que aparecem com a contribuição de diferentes áreas de conhecimento em um quadro de pesquisas marcado por um forte historicismo. Consideramos aqui a hipótese de que um dos maiores entraves ao desenvolvimento de uma cultura urbanística local encontra-se exatamente na ausência de reflexão sobre as ações passadas de condutas técnico- administrativas cujos elementos constitutivos ainda não foram completamente elucidados e muito menos codificados. Ao reivindicar a urgência do amadurecimento de uma história do urbanismo em Fortaleza, este artigo destaca algumas questões epistemológicas que resistem como hesitações na investigação historiográfica desta disciplina.

Palavras-chave: história do urbanismo, prática urbanística, Fortaleza-Ce

Abstract

This paper aims to reflect upon the current stage of Fortaleza urbanism historiography by drawing up a wide balance of the already extensive catalogue of the city urban studies. Mainly focused on the analysis of scientific and technical texts, this survey tries to identify landmarks and references linked to the constitution of a local urbanistic practice history. These practices appear with the contribution of different knowledge areas in a framework of research characterized by a strong historicism. We suppose that one of the biggest barriers to the development of a local urbanistic culture lies precisely in the lack of reflection about the previous actions of technical and administrative practices whose constituent elements have not been fully elucidated or codified. By claiming the urgency of the maturation of a history of urbanism Fortaleza, this article highlights some epistemological questions who resist as hesitation for historiographical research in this discipline.

Keywords: history of urbanism, urbanistic practice, Fortaleza-Brazil

Introdução

Com bastante frequência, e sempre com grande estranheza, um tanto de profissionais do urbano reclamam em voz alta que cidades como Fortaleza não têm urbanismo, sob a alegação de que se desenvolvem no caos da improvisação de projetos desconectados. Tal conjectura equivale a afirmar que lá também não existe uma história do urbanismo; isso porque historicizar o urbanismo de uma cidade sem urbanismo constituiria uma perda de tempo, um conhecimento irrelevante, não desvendando outra verdade que não seja: a cidade não tem urbanismo.

Assim como outras grandes cidades brasileiras que, a partir da segunda metade do século passado, ganharam expressão urbana pelo crescimento vertiginoso e desordenado, a capital cearense não é um centro gerador de estudos e de novas práticas do urbanismo, se notabilizando mais pela ausência de concepção de utopias, experimentações ou inovações e, sobretudo, pela importação quase sempre oblíqua, tardia e desinformada de modelos propostos em centros urbanos mais influentes do país e do exterior. Diante dessa realidade, é de se duvidar se há ali, de fato, alguma cultura urbanística digna de registro historiográfico.

Mas decididamente todo fenômeno de urbanização, por subordinado e irrefletido que seja, traz em si algum suporte teórico e prático que processa representações, ferramentas e meios de ação para a configuração material do lugar. Sechi (2006) lembra que teoria e prática do urbanismo são plurais: elas são aquelas do técnico que estuda e propõe, do político eleito que decide, do administrador que controla, do construtor que realiza; enfim, dos sujeitos que as promovem, de suas intenções, das técnicas utilizadas, dos resultados esperados, dos êxitos obtidos, dos problemas que induzem a novas transformações.

O conjunto dessas ações – que aqui chamamos de prática urbanística –, é resultado das relações dialéticas complexas entre os grupos sociais e o espaço que eles ocupam, pois como adverte Halbwachs, o espaço urbanizado é a materialidade que ratifica as relações sociais. Para evidenciar o conteúdo dessa singularidade, o historiador do urbanismo talvez deva fazer como o imperador mongol que, diante das descrições muito parecidas que Marco Polo fazia de todas as cidades, procurava “...diferenciá-las [...] desmontando a cidade pedaço por pedaço, reconstruindo-a de outra maneira, substituindo ingredientes, deslocando-os, invertendo-os” (CALVINO, 1990, p.43).

Este trabalho tem por objetivo refletir acerca do atual estágio da historiografia sobre o urbanismo em Fortaleza, partindo de um exame do já amplo catálogo dos estudos urbanos sobre a cidade. Fundamentalmente centrado na análise de textos acadêmicos, este levantamento tem como base os marcos e referências ligados à constituição de uma disciplina que ainda não possui um estatuto definitivo, e que aparecem com a contribuição de diferentes áreas de conhecimento em um quadro de pesquisas marcado por um forte historicismo.

Consideramos aqui a hipótese de que um dos maiores entraves ao desenvolvimento de uma cultura urbanística local encontra-se exatamente na ausência de reflexão sobre as ações passadas de condutas técnico-administrativas cujos elementos constitutivos ainda não foram completamente elucidados e muito menos codificados. Ao reivindicar a urgência do amadurecimento de uma história do urbanismo em Fortaleza, este artigo destaca algumas questões epistemológicas que resistem como hesitações na investigação historiográfica desta disciplina.

Em referência ao balanço dos estudos urbanos sobre Fortaleza

De início, é preciso enfatizar que o balanço efetivado abrangeu um conjunto de estudos técnico-científicos já divulgados e que, mesmo originado em áreas distintas de conhecimento, trazem questões de interesse para uma história do urbanismo em Fortaleza, ainda que tratadas em diferentes níveis de profundidade. Esta base de análise revela não apenas os percursos trilhados como denota o significativo numérico dos estudos urbanos sobre a capital cearense. Uma primeira constatação é o caráter fragmentado desta produção e que a maior parte das contribuições – principalmente sob a forma de artigos, dissertações e teses – ser bastante recente. Ao que tudo indica, estamos diante de um campo de estudo ainda em construção, com tudo o que isto implica em termos de lacunas e indefinições.

Preliminarmente encontramos dificuldade em precisar qual o conteúdo intrínseco a uma história do urbanismo, que em muito se emaranha com a noção de história urbana ou da cidade. Acompanhamos a perspectiva daqueles que afirmam ser necessário diferenciar “história urbana” de “história do urbanismo”, mesmo que os dois termos se confundam, tanto na linguagem comum e nas práticas de ensino como também no direito público. Para a historiadora italiana D. Calabi (2003), esta confusão se deve, em certa medida, à existência de um hiato intelectual decorrente das dificuldades encontradas pelo urbanismo em reconhecer seu âmbito e especificidades próprias. Há também um hiato institucional na medida em que com muita frequência a fonte de origem dessas produções seja a mesma, brotando nas mesmas estruturas institucionais onde se desenvolvem os trabalhos acadêmicos e programas de pesquisa e, sendo divulgadas nos mesmos colóquios, seminários e conferências.

Em termos formais, a história urbana pode ser entendida como um campo do conhecimento, não como uma disciplina isolada, na acepção comum do termo "disciplina". Um campo em que convergem historiadores de diferentes áreas de conhecimento, e não uma forma de conhecimento em si mesmo. Já a história do urbanismo esteve, por muito tempo, inserida no âmbito da história da arte e/ou da arquitetura com pouca ou nenhuma ênfase em aspectos econômicos, sociais ou políticos, e basicamente referenciando-se na dimensão estética e formal, próxima ao âmbito da história da produção cultural (LEMAS, 2009).

Mais recentemente, os historiadores do urbanismo ampliaram seu objeto de estudo, abarcando não apenas os modos de ação do poder público mas também dos setores privados, obrigando-se, portanto, a enfrentar novas escolhas teóricas e metodológicas. E mais ainda, parece que hoje não é possível desenvolver uma reflexão sobre ferramentas conceituais do urbanismo sem fazer história, fato que amplia as relações da ação urbanística com as particularidades de uma cidade (PINSON, 2003; SECHI, 2006, CALABI, 2012).

Dos registros românticos à contribuição dos programas de pós-graduação

Os relatos que interessam a uma historiografia do urbanismo em Fortaleza começam muito tardiamente. Até a década de 1970 observa-se tão somente a composição intermitente de pequenos textos de caráter descritivo e memorialista, escritos por intelectuais, cronistas e amantes da cidade, sendo o caso dos esforços do Barão de Studart, Thomas Pompeu de Souza Sobrinho, Carlos Studart Filho e Raimundo Girão. Deste período, ganha destaque uma linha de trabalho firmada a partir da Revista do Instituto do Ceará, que publica matéria sobre a formação do território e origem das

cidades cearenses e sobre os primeiros planos para Fortaleza. A contribuição ao urbanismo desses escritos depende muito mais da habilidade do leitor de separar as representações emotivas da cidade dos rápidos registros sobre estratégias políticas e ação instrumental orientada para a transformação do espaço urbano.

A partir dos anos 1980, surge o trabalho pioneiro de Liberal de Castro. Arquiteto atuante e fundador-professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará, este estudioso começa a preencher um vazio e dá conteúdo à compreensão da evolução urbana de Fortaleza, através de sua já clássica análise da morfologia da cidade em que pondera sobre as origens e características físicas do traçado, articulando tais atributos ao papel dos diversos agentes produtores do espaço. Ainda nesta década, surgem os primeiros artigos e pesquisas acadêmicos, num momento em que este tipo de produção era bastante raro. Nesses trabalhos, a prática urbanística, quando comentada, o é apenas de modo pontual e secundariamente, não merecendo maior atenção dos pesquisadores, que centram seus esforços na compreensão de fenômenos emergentes como a expansão urbana, a segregação socioespacial ou o crescente papel do turismo não organização material do espaço.

Aliás, esta preocupação em caracterizar a origem e evolução dos novos eventos urbanos continuará a ser o destaque do interesse investigativo dos trabalhos científicos que se multiplicam no início do novo século, quando se passa a explorar objetos diversos relacionados a momentos e processos distintos da urbanização local. O grosso da produção se detém em um período de tempo mais recente, compreendo as duas ou três últimas décadas, e é realizada por profissionais egressos de diferentes programas de pós-graduação; primeiramente em Geografia, Sociologia e História, e em seguida em Arquitetura e Urbanismo.

Tabela 1- Balanço da produção técnico-acadêmica e relação dos principais eixos temáticos. Fonte: levantamento do autor, jan. 2014.

Tabela 2- Relação quantitativa de dissertações e teses elaboradas em programas de pós-graduação que trataram de temas de interesse para uma história do urbanismo de Fortaleza. Fonte: levantamento do autor, jan. 2014.

Toda esta produção abarca um leque diversificado de eixos temáticos que revela um ponto de inflexão na organização da pesquisa sobre a cidade e o urbano, na medida em que as análises se ajustam aos objetivos mais específicos das áreas de concentração de cada programa de pós-graduação, demarcando campos e cruzamentos teórico-metodológicos coerentes com cada uma dessas áreas. Em sua maioria, esses trabalhos fazem estudos de caso da cidade de Fortaleza – ou de parte dela, quer como território político-administrativo, quer como subsistema técnico –, e cujos processos investigativos evidenciam diferentes estilos narrativos, estratégias expositivas e modalidades de discurso que tencionam cada um a seu modo as coordenadas conceituais sobre o urbano.

Mas qual é efetivamente o aporte desses trabalhos para uma história do urbanismo de Fortaleza? Em um comentário (muito) breve, é possível afirmar que a contribuição mais significativa da Sociologia se faz pela escolha metodológica de introduzir os habitantes não como simples categorias contábeis, agenciados em tipos familiares e séries estatísticas, mas como atores com direito de intervir sobre a definição de seu lugar de vida. Já as pesquisas na área da Geografia contribuíram com o afinamento conceitual de categorias como espaço-tempo, com destaque para a leitura sobre escalas e singularidades dos territórios urbanizados.

Em outra medida, a pesquisa sobre o urbano em Fortaleza experimentou uma notável influência dos programas de pós-graduação interdisciplinares – com destaque para as temáticas relacionadas ao planejamento urbano, ao meio ambiente e às políticas públicas –, tratando questões centrais como “habitação”, “turismo” ou “transportes”, agora interpeladas sob o enfoque de conceitos mais amplos – tais como governança, participação democrática e sustentabilidade –, embaralhando funções e responsabilidade do poder público e da sociedade civil. Reconhecemos, portanto, os préstimos desses esforços que lançam luzes sobre as ações urbanizadoras e suas mediações com a política, a ciência e a cultura. Tal condição nos faz lembrar que, por mais autônomo que seja, todo escrito de história é tributário de um horizonte de expectativa e da demanda social de uma época.

Todavia essa acumulação e diversificação de trabalhos ainda não foi suficiente para forjar no plano epistemológico uma coerência temática nem a provar que a história do urbanismo em Fortaleza se inscreve em um espaço científico legítimo, com destaque para seu objeto e a especificidade de seus métodos e conteúdos. Não podemos esquecer que uma profusão de estudos sobre a cidade e seus territórios não apaga de modo algum os ingredientes e prerrogativas específicas do urbanismo: a leitura do espaço e a estimulação do projeto. Ainda falta uma melhor apreensão dos processos de decisão e das condições de viabilidade e eficácia das intervenções urbanísticas através de uma instrução mais aprofundada de seus aspectos econômicos, sociais e políticos.

Guardamos, assim, a impressão de que este progresso do conhecimento no campo dos estudos urbanos não “alargou” a consciência ou domínio social para uma história do urbanismo em Fortaleza. Admitimos, não obstante, que talvez seja preciso recorrer à sociologia do conhecimento para melhor certificar como um campo de conhecimento acentua outro saber. Ou seja, como um tipo de conhecimento favorece um ou outro tipo e forma de conhecimento, constituindo assim um sistema de conhecimento (GURVITCH, 1960). Sempre é possível considerar, como Marx, que existe uma função social do conhecimento.

Algumas considerações epistemológicas sob a luz de uma história do urbanismo em Fortaleza

Reivindicar o aperfeiçoamento da história do urbanismo em cidades como Fortaleza significa, para nós, trazer ao debate questões epistemológicas sobre as condições de validade do discurso e dos meios de demonstração dos métodos desta disciplina. Uma epistemologia do urbanismo pode nos ajudar a melhor compreender que ele se situa entre duas acepções inseparáveis: a primeira como disciplina positivista que faz uso das contribuições metodológicas das ciências sociais; a segunda como um modo de ação do poder público, especializado e planificador.

Daí porque o historiador do urbanismo se vê confrontado não apenas com um estado de espírito, de mentalidade e de cultura de um grupo social historicamente e geograficamente situado (FIJALKOW, 2013), mas também com a ideia de que a cidade seja uma sorte de força ativa, autônoma, embora se insira como um subsistema que só faz sentido dentro de uma rede urbana regida pela “urbanização do capital” (JANSEN, 1996). A seguir, distinguimos três questões que interessam a uma episteme urbanística, em especial para o caso de Fortaleza.

Os encargos da periodização histórica e dos modelos de representação

Os historiadores se deparam com um problema constante em seu ofício: explicar determinadas periodizações históricas, para contextualizar o objeto de pesquisa. No caso dos profissionais que lidam com o homem no tempo e no espaço, é preciso ter em mente que uma categorização temporal é o produto de um lugar social específico, visando um discurso de normatização para que os eventos passados possam ser inteligíveis às necessidades atuais. Em outras palavras, é preciso dominar a divisão do tempo em períodos, em pedaços de tempo submetidos à mesma lei.

Constatamos que ainda falta compreender melhor o processo histórico – a ordenação dos acontecimentos segundo uma sequência sistemática, lógica e objetiva – do urbanismo em Fortaleza. Esse conhecimento se faz necessário porque existem hiatos temporais e inúmeras passagens obscuras (sobretudo ao longo do século XX), em que não se sabe exatamente como a cidade se comportava em sua conduta técnico- administrativa. Uma periodização consistente possibilitaria novas reflexões a partir de novos conjuntos de relações e de proporções, revelando as leis objetivas internas do seu procedimento e assim facilitando novas sínteses científicas.

Este tipo de avanço ficou evidente na última década, por exemplo, com o ressurgimento do interesse de pesquisadores sobre os processos iniciais de urbanização do Ceará nos séculos XVIII-XIX, cujo conteúdo produziu uma significativa “mudança” do tempo histórico. Os trabalhos sobre organização territorial e origem das cidades cearenses, reacendem a hipótese explicativa de que o passado aparece como fonte privilegiada de questionamento e compreensão da “norma” histórica em crise, passando por representar uma estratégia conceitual para a compreensão e reapropriação do presente.

Qual a melhor periodização para uma história do urbanismo em Fortaleza? Eis um desafio para os historiadores. Considerando que pode haver tantas divisões possíveis quanto houver pontos de vista cultural, etnográfico e ideológico, e mesmo escalas de observação, não há como definir um único padrão de períodos. Uma primeira possibilidade já foi lançada com trabalhos que situam as bordas cronológicas do

urbanismo local a partir das datas de elaboração dos planos urbanísticos. É preciso que se diga, entretanto, que em geral esses trabalhos ainda são fortemente regidos pelo processo descritivo, atentos mais às justificativas das proposições ali contidas – sobretudo no que se refere à expansão urbana – do que a uma análise crítica sobre modelos, conceitos e normas.

Uma alternativa de periodização ainda por ser sintetizada seria a de considerar a noção de “prática urbanística”, cuja abrangência contribui inclusive para evitar a já alongada polêmica sobre as distinções entre urbanismo e planejamento urbano1. De fato, esta noção pode ser surpreendentemente útil, pois em um determinado momento histórico, uma prática urbanística pode ser descrita em um “modelo de representação” (GRAWITZ, 1996), capaz de acomodar um conjunto específico de princípios, métodos, estruturas organizacionais, mecanismos institucionais, proposições e realizações. Cada modelo sofre a influência de múltiplas fontes e causas, embora sempre traduza de modo particular as ideias em circulação, revelando-se plenamente

em função das possibilidades e limitações de uma cidade, ou seja, somente ganha contornos nítidos quando confrontada às especificidades de um lugar.

A disciplina urbanística como sistema social: atores e léxico do urbanismo local

Não restam dúvidas que a história do urbanismo deva refletir sobre a criação de instrumentos funcionais técnico-administrativos para o controle da cidade, embora se deva também identificar sua história institucional e reconhecer sua história social, através do exame das atividades dos grupos que estão no poder. Calabi (2012) lembra que é possível inclusive construir uma história cultural do urbanismo, por intermédio de referências aos promotores e aos destinatários das ideias, ao debate e às lutas ideológicas.

No caso de Fortaleza, evidenciamos duas relevantes lacunas historiográficas: ausência de conhecimento sistematizado sobre o papel das instituições e dos professionais e sobre o léxico produzido na cultura urbanística local. No primeiro caso, saber como centros de estudo, órgãos governamentais e de classe influenciam o pensamento e a ação sobre a cidade poderia esclarecer muitos aspectos ainda ininteligíveis. Ainda está para ser ampliado o conhecimento sobre o comportamento dos diferentes atores, quer como agentes contestatórios, quer como atores-parceiros em ações urbanísticas

específicas2.

Certamente são muitos os obstáculos a este tipo de investigação. No que se refere às instituições públicas, em especial a Prefeitura de Fortaleza, os pesquisadores em uníssono reclamam da dificuldade de se chegar aos documentos oficiais – os originais de projetos, planos, termos administrativos –, e de poder avaliar por dentro os hábitos institucional-administrativos. Ademais, é preciso levar em conta que a falta de sistematização de acervo, arquivamento e controle documental, dificulta o resgate da

1 Nesta perspectiva, tanto a disposição para o desenho projetivo e o caráter monodisciplinar do urbanismo, como as preocupações com as diferentes escalas da ocupação do território e o recorte interdisciplinar do planejamento urbano, encontram-se inseridos no lastro de uma prática urbanística.

2 É possível citar, por exemplo, o caso da Universidade Federal do Ceará. Embora alguns esforços já tenham sido feitos no sentido de compreender como a abertura e expansão dos campi afetaram a morfologia da cidade, quase nada ainda foi dito sobre a repercussão urbana do conhecimento produzido em seus laboratórios de pesquisa ou sobre os acordos de cooperação entre universidade e gestores urbanos.

memória urbanística, que não raro se encontra refém do depoimento oral (e das idiossincrasias) de algum técnico mais dedicado.

No que se refere aos profissionais diretamente ligados ao urbanismo, também não dispomos ainda de esforços de pesquisa que busquem esclarecer seu espaço profissional e conceitual; ao contrário do que aconteceu em outras cidades brasileiras, onde as pesquisas já revelaram a contribuição de arquitetos, engenheiros e demais profissionais do urbano (LEME, 1999). Não há investigações sobre a formação profissional local e regional, e pode-se estender esta afirmação para o campo produtivo, onde não se explora estudos sobre as relações da produção urbanística considerando o papel de agentes como os escritórios de arquitetura e urbanismo, os laboratórios de pesquisa tecnológica, as empresas de construção civil, etc. Resta-nos, portanto, elucidar e trazer ao debate questões como: o tempo da criação, as identidades profissionais, as especialidades e competências, a cultura organizacional e as ambições políticas.

Complementarmente, não podemos esquecer que os textos e o léxico produzidos em uma prática urbanística refletem não apenas os particularismos da cidade, mas também as mutações que ela sofre no tempo. Como se sabe os conceitos tiram sua significação do contexto de onde eles saem; eles podem mudar de sentido de acordo com a maneira como eles são considerados (FAUCHEUR, 1999). Daí a importância de se identificar estes escritos, apesar da fluidez das significações. Cada prática urbanística desenvolve um léxico que se enriquece com a diversificação progressiva das técnicas e dos métodos concernentes às intervenções urbanas, às ferramentas jurídicas e aos procedimentos administrativos.

O urbanismo em mutação e a democracia técnica: novos dilemas da pesquisa

Uma frente de pesquisa que vem se tornando cada vez profícua nos últimos anos, se refere aos estudos de caso sobre as grandes obras de intervenção urbana. Em geral, esses trabalhos desenvolvem uma análise crítica sobre o caráter mercadológico, espetacular e autoritário dessas ações pontuais e fragmentadas, em geral denunciadas como oportunistas, disfuncionais, elitistas, segregacionistas, etc. Apesar da coerência dessas críticas, ainda nos falta entender melhor as razões e implicações desta démarche urbanística que é o “projeto urbano”. É preciso ter em vista que o urbanismo sofre com os perigos do tempo longo e com as reviravoltas das situações econômicas e políticas.

No Brasil, firmou-se o entendimento de que projeto urbano é um genuíno produto da supremacia neoliberal no contexto das cidades, e como tal ele deve ser analisado. Epistemologicamente, entretanto, o projeto urbano parece ser uma nova especificidade metodológica que veio substituir o urbanismo normativo, sendo entendido como um processo interativo de concepção e de realização visando dispositivos concretos que se precisam ao longo do processo. Para os urbanistas europeus não se pode desvincular a ideia de projeto urbano da noção de “governança” que advém da evolução do exercício democrático, e que modifica as condições de elaboração da ação urbanística recompondo os jogos de poder e os modos de decisão em matéria de planejamento urbano, com destaque de enfoque para o mundo associativo (PINSON, 2003).

Mesmo que entre nós, neste lado do equador, essa percepção conceitual seja recebida com forte suspeição e ceticismo, na medida em que na prática tudo se comporta de

modo diferente, fica a incômoda questão: sob o efeito desta nova concepção metodológica que parece subordinar a materialização da resposta urbanística à sua elaboração projetual, o que vem a ser então o urbanismo na contemporaneidade? Eis uma questão que pode animar um bom número de pesquisadores, inclusive porque diz respeito a seu próprio papel social.

Uma possibilidade de resposta talvez se encontre naquilo que alguns especialistas chamam de pesquisa “en plein air”, já que o urbanismo depara-se numa época em que a concepção dos artefatos técnicos não pode mais se restringir a laboratórios ou escritórios confinados. Isso implica investir em proposições alternativas orientadas para a produção de “espaços híbridos” (no sentido de espaço de negociação e ação política entre atores) em um contexto de “democracia técnica” (CALLON, LASCOUMES et BARTHE, 2001). Esta perspectiva da democracia técnica ajudaria a pensar uma abordagem não-instrumental do projeto urbano, através da formação de redes sóciotécnicas nas quais os atores sociais, que não participam do mesmo universo cognitivo e de interesses, se encontrariam implicados na coprodução de saberes e reformulações de demandas.

Para o caso dessa proposição não se mostrar viável, cabe-nos insistir no fato de que existe uma ordem social da ciência. As análises de Latour (1994) demonstram a existência de sistemas de trocas, de círculos de credibilidade em que o capital científico se encontra como o produto – ou o contra-dom – de um conhecimento simbólico, podendo desencadear reinvestimentos materiais. As redes sociais da ciência permitem analisar os processos de construção desses círculos de credibilidade. Não se pode descartar, portanto, que o desenvolvimento dos segmentos profissionais no urbanismo se faz não apenas a partir de disciplinas ou de hibridação de disciplinas, mas também pelas interfaces entre as demandas de projetos e a pesquisa. Neste contexto, os processos de acreditação podem ser tão influenciados pela conjuntura política ao ponto de relativizarem qualquer justificação teórica.

Conclusão

Afinal, qual é o papel social da história do urbanismo: revelar, como o personagem da caverna na alegoria platônica as mitificações incrustadas do tempo, ou reatualizar e ampliar o rol das ficções urbanas? Acreditamos, como Perrot (1975), que a história do urbanismo permite elucidar que a cidade não pode se reduzir a um simples quadro espacial, que a cidade é como um alambique onde o quantitativo se transforma em qualitativo. E mais que isso, uma história do urbanismo pode contribuir decisivamente para um saber de ação, saber sobre a ação, e saber para a ação. Considerar a disciplina urbanística como um ator social remete à hipótese de uma eficiência da descrição sobre a ação, a ser encorajada por nossas instituições de pesquisa pelo fato mesmo da hibridação do estudioso e do político.

Em um contexto de divisão crescente do trabalho, e Fortaleza não foge à regra, as estruturas organizacionais e os mecanismos institucionais da ação no urbano se diversificaram profundamente. Novas funções especializadas resultaram da transformação contínua das competências assumidas por profissionais, em especial o arquiteto-urbanista, da mesma forma que o papel de gestores e habitantes terá variado sensivelmente ao longo do tempo. Identificar esses atores, bem como sua produção material e seus dispositivos operacionais, permitiria elucidar os desafios políticos e sociais de uma cidade que ainda acredita não possuir uma história do urbanismo.

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