Resumo

A relação entre a cidade de Vitória e as águas presentes em seu território foi historicamente marcada por situações de conflito, expressas em sua paisagem. A construção e o crescimento das cidades pressupõe, naturalmente, a adaptação do meio para permitir e potencializar as atividades humanas, criando-se condições necessárias à fixação do homem no espaço geográfico. Tais transformações são determinadas socialmente de acordo com as necessidades e preceitos de cada momento histórico. O presente artigo objetiva analisar a evolução dessa relação determinada pela construção do aglomerado urbano no entorno da Baía de Vitória, sítio físico sobre o qual a cidade cresceu e que compreende a própria baía, além dos cursos d’água que nela desaguam, os quais banham os seguintes municípios da Grande Vitória: Vitória, Cariacica e Vila Velha. Objetiva, também, caracterizar as duas fases identificadas dessa relação no decorrer de cinco séculos de ocupação. A primeira fase identificada, que abrange desde o início da colonização até o início do século XX, pode ser caracterizada por situações de convivência e relativa harmonia entre os elementos hídricos da paisagem e a ocupação urbana. A partir daí, porém, processou-se um grande crescimento e expansão da cidade, por conta do comércio de café e, sobretudo, pelo processo de industrialização, quando a cidade ganha outros contornos. No século XX começa a configuração do que identificamos como uma segunda fase, em que se acirram as situações de conflito na relação entre a cidade e suas águas.

Palavras-chave: rios e córregos, Baía de Vitória, paisagem urbana, relação cidade- sítio, história urbana

Abstract

The relationship between the city of Vitória and the waters present in its territory has been historically marked by situations of conflict, expressed in its landscape. The construction and growth of cities presupposes, naturally, the adaptation of the environment to enable and enhance human activities, creating the necessary conditions to people settle in geographical space. Such transformations are socially determined according to the needs and precepts of each historical moment. This article aims to analyse the evolution of this relationship determined by the construction of the urban areas surrounding the Vitória’s Bay, physical site on which the city grew and which comprises the bay itself, in addition to the water courses that flow into it, which bathes the following municipalities in Great Vitória: Vitória, Cariacica and Vila Velha. It also aims to characterize the two phases identified in this relationship over the course of five centuries of occupation. The first phase identified, which spans from the beginning of colonization until the early twentieth century, can be characterized by the coexistence and relative harmony between the water elements of landscape and urban occupation. From there, however, a major growth and expansion of the city took place, on behalf of the coffee trade and, above all, by the process of industrialization, when the city assumes other setup. In the 20th century begins the configuration of what we identify as a second phase, in which the conflict situations arrise in the relationship between the city and its waters.

Keywords: rivers and streams, Vitória’s Bay, urban landscape, relationship between city and physical site, urban history

Introdução

A relação entre as cidades brasileiras e as águas presentes em seus territórios tem sido marcada pelas situações de conflito. A construção e o crescimento das áreas urbanas pressupõem adaptações do meio natural para possibilitar e potencializar a realização das atividades humanas. Tais adaptações, decorrentes da apropriação do sítio físico pelo homem para sua transformação em áreas urbanas, ora passa pela incorporação das características e elementos naturais à sua paisagem e ao seu desenho, ora pela supressão e/ou exclusão.

A forma urbana e o desenho da cidade podem determinar situações harmônicas ou de conflito nas relações entre os assentamentos urbanos e as águas de seu território, uma vez que decorrem das necessidades colocadas socialmente em cada momento histórico. Assim, a paisagem, compreendida como resultado dos processos naturais e antrópicos de transformação do meio, evidencia as etapas das relações entre a cidade e seu sítio. As paisagens urbanas são constituídas a partir da interação entre homem e natureza, a qual consequentemente determina certas relações entre o ambiente construído e o natural, caracterizadas por sobreposição, dominação, ruptura, continuidade ou complementação, que permeiam o meio urbano, qualificando-o e constituindo-o. E ao tratar da cidade de Vitória, Klug afirma: “o estudo dos processos históricos e naturais que levaram às transformações da paisagem ajuda a compreender os problemas, as qualidades e as especificidades da paisagem da cidade” (KLUG, 2009, p. 14).

Este artigo objetiva analisar o caso específico dessas relações entre a expansão do aglomerado urbano do contexto urbano da Grande Vitória (compreendido pelos municípios de Vitória, Cariacica e Vila Velha) e a Baía de Vitória. Portanto, se trata de focar as relações entre o desenvolvimento urbano e o entorno imediato da Baía de Vitória bem como dos cursos d’água que nela desaguam. Para tanto, buscar-se-á caracterizar as fases identificadas dessa relação, que passou do convívio à negação no decorrer de cinco séculos de ocupação urbana, analisando-se os episódios que influenciaram e determinaram a paisagem atual da citada baía. Mapas, textos, relatos e trabalhos historiográficos compõem o material consultado, a partir do qual foi possível traçar os caminhos seguidos pelas cidades na ocupação e transformação de seu sítio, sobretudo no que se refere ao meio hídrico.

A Baía de Vitória: sítio físico da Grande Vitória

Podemos considerar a Baía de Vitória como o exutório da Bacia do Rio Santa Maria, configurando uma região estuarina onde se instalaram os municípios de Vitória, Vila Velha e Cariacica. A configuração espacial dessa baía determina sua divisão em três setores distintos (Figura 1). O primeiro deles é o canal sul, também conhecido somente como Baía de Vitória, que se estende desde sua barra até a foz do Rio Marinho no sentido leste-oeste e divide os municípios de Vitória e Vila Velha. Na porção mais interna localiza-se outro setor, conhecido como Baía Noroeste, que se estende no sentido norte-sul, desde a foz do Rio Santa Maria até a foz do Rio Marinho, e divide os municípios de Vitória e Cariacica. Já o último setor, o Canal de Camburi, estabelece a divisão entre a porção insular do município de Vitória e a porção continental.

Figura 1. Mapa do aglomerado urbano no entorno da Baía de Vitória, onde identificam-se: a) Baía de Vitória; b) Baía Noroeste; c) Canal de Camburi; d) Baía do Espírito Santo; e) Ilha de Vitória; f) Rio Santa Maria; g) Rio Marinho; h) Rio Aribiri; i) Canal da Costa e Bigossi; j) Rio Jucu; k) Rio Bubu.

Na hidrografia do continente destacam-se alguns rios como o Santa Maria, que é o de maior volume e deságua na porção norte da baía, e o Aribiri e o Marinho, localizados no município de Vila Velha e que deságuam nas proximidades do centro de Vitória. Outros cursos e canais (naturais ou construídos) de menor expressão compõem a rede hidrográfica da região. Antes dominada por manguezais, a baía ainda conserva grande extensão territorial com essa vegetação ao norte da Ilha de Vitória, entrecortada por canais naturais e artificiais e que possuem seu regime de águas atrelado ao movimento das marés.

Localizada no interior da baía de Vitória, a parte insular é a que lhe dá a forma de um canal. A Ilha de Vitória é a maior das que compõem um arquipélago que contava com um grande número de ilhas menores, mas que foram conectadas por sucessivos aterros. O conjunto é marcado por um relevo acidentado, com destaque para o Maciço Central na porção centro-oeste da mesma, onde localizam-se as nascentes dos córregos que também deságuam na baía.

Em Vila Velha, os rios Marinho e Aribiri, além dos canais da Costa e Bigossi, entre outros, cortam as áreas planas e alagadiças do município. Influenciados diretamente pelo regime de marés, esse conjunto de cursos deságua na margem sul da baía pontuada por morros que se estendem da barra até a foz do Rio Marinho. Já no município de Cariacica, de relevo ondulado, encontram-se rios e córregos encravados nos fundos de vale. Alguns desses são tributários do Rio Marinho, enquanto outros

lançam suas águas na baía.

Assim, a configuração espacial da Baía de Vitória, levando em consideração os aspectos físicos e naturais de seu sítio, demonstra uma interação entre os variados ambientes que a compõe, estabelecida principalmente pelos rios e cursos de água que tecem relações hidrológicas complexas. Mas a riqueza dessas relações foi muito alterada pela ocupação urbana, de modo que suas características e elementos, antes incorporados ao desenho, à paisagem e ao cotidiano urbano, foram deformados ou mesmo suprimidos com o tempo.

Da muralha à cidade-presépio

A Vila de Vitória foi fundada no século XVI na região insular pelos portugueses, uma vez que a antiga sede da Capitania do Espírito Santo, localizada no continente e próxima à entrada da Baía de Vitória, fora abandonada. Conforme Oliveira (2008), o motivo para tal decisão era a vulnerabilidade da Vila Velha a ataques de indígenas, além da dificuldade de estabelecer comunicação por via terrestre com o interior da colônia em função dos terrenos alagados que a limitavam. Dessa maneira, a Vila de Vitória contava com a baía para proteger-se dos atacantes, além de permitir acesso facilitado por via aquática entre a capital e as terras produtivas do interior, localizadas principalmente em Cariacica.

Figura 2. Desenho do final do século XVIII, de Vitória vista de Paul (Vila Velha). Fonte: MEMÓRIA, 2014.

Vitória ocupou uma elevação que se destacava no Maciço Central da ilha e que era contornada pelas águas da baía. No entorno dessa elevação localizavam-se áreas de mangue, que limitaram a expansão do núcleo urbano inicial. Na Figura 2, percebe-se um estágio em que a vila já havia se desenvolvido até ocupar toda a colina, harmonizando a nova paisagem com os elementos naturais do sítio. Serafim Derenzi descreveu tal paisagem resultante onde se destacam os elementos hídricos e ambientes relacionados a eles como fatores aos quais a vila se incorporou:

Na segunda metade do século XVIII a capital do Espírito Santo, vista do continente, tem belo aspecto paisagístico. Lembrando um feudo medieval encastelado na grimpas das montanhas a se espalhar em áreas tranqüilas de um belo lago. O casario, nascendo do mar, entremeia-se com o resto de vegetação nativa e morre em torno do ‘Colégio’ e da Matriz. As torres assimétricas de Santiago dão-lhe um harmonioso

equilíbrio que se casa com o plano de fundo, coberto de mata secular e vigorosa. Não há separação definida entre as águas e a terra. O mar entra pela prainha e, nos baixios de Roças Velhas, dilui-se nos mangues, que se confundem com o mataréu das colinas. Nas marés menores descobrem bancos de areia, que, pouco a pouco, aterrados, se transformam em embarcadouros e trapiches (DERENZI, 1965, p. 95).

Vitória era abastecida com produtos vindos das fazendas localizadas nas áreas continentais, os quais eram transportados por embarcações que atracavam nos trapiches e pequenos cais construídos nas margens da baía. Importante considerar, também, as atividades pesqueiras e artesanais que abasteciam a vila com peixes e outros produtos do mar.

A população da vila obtinha água das fontes alimentadas pelos cursos d’água que vertiam do Maciço Central, dois deles identificáveis na Figura 3. Tais cursos, segundo Broedel (1994), tinham sua vazão diminuída nos períodos de estiagem, o que obrigava a obtenção de água potável em outros locais, inicialmente no Rio Marinho e, posteriormente, no Rio Jucu. Este último não deságua na Baía de Vitória, mas, conforme Martins (1993), fora ligado por fazendeiros ao Rio Marinho com a construção de um canal no século XVIII.

Figura 3. “Planta Geral da Cidade de Vitória”, 1895, onde identificam-se os modos como o assentamento urbano se moldava junto aos cursos d’água. Fonte: MEMÓRIA, 2014.

Percebe-se que a cidade moldava seus espaços permitindo o convívio e o acesso à baía e aos elementos hídricos de toda a região. As edificações se implantavam ao longo da linha d’água da baía, sem separação por meio de qualquer via que a margeasse. A principal maneira de contato entre cidade e canal acontecia por meio de ancoradouros e trapiches. Essa configuração foi mantida até o século XIX, com pequenas modificações e ampliações das instalações urbanas em aterros, naquele então realizados com lixo e entulhos nas áreas alagadas próximas. Os córregos e suas nascentes permaneciam inalterados, entremeando-se nos manguezais que bordejavam toda a ilha.

Com a descoberta de pedras preciosas e ouro no interior da Capitania, ficou proibida a criação de novos povoamentos entre Vitória e o interior. Além disso, toda a população deveria se dirigir e povoar o litoral como reforço aos sistemas de defesa do das riquezas recém-encontradas, reforçados por meio de fortificações acrescentadas à paisagem da região da baía (LIMA JUNIOR; SOARES; BONICENHA, 1994). Assim, a partir do século XIX até o início do século XX, a relação entre a cidade e as águas começa a se modificar. Os limites e a escala da cidade ganham outros contornos em comparação aos da baía, e foram empreendidas modificações físicas em canais, córregos e manguezais.

Ao final do período colonial, findada a proibição de expansão para o interior, a cidade de Vitória experimentou uma fase de crescimento. E a partir do final do século XIX, as riquezas advindas do comércio de café, que tinham Vitória como ponto final de escoamento do interior do estado, incrementaram esse crescimento e possibilitaram a instalação de infraestruturas urbanas até então inexistentes.

O Projeto do Novo Arrabalde, de autoria de Saturnino de Brito e datado de 1896, orientou a expansão da ocupação da ilha para as praias localizadas a leste. O projeto do novo bairro (Figura 4), descontínuo ao Centro devido extensos manguezais, previa uma área seis vezes maior do que a do antigo núcleo urbano, além de um traçado regular muito diferente do assentamento colonial. A implantação do Novo Arrabalde se fez sobre os areais próximos ao litoral da ilha, mas contou com áreas aterradas sobre manguezais em seu interior. O projeto previu, também, uma via marginal à orla marítima, possibilitando o acesso da população às praias. Previu, ainda, que o acesso entre o “Centro” e o Novo Arrabalde se faria por uma estrada que se estenderia ao longo da base dos morros, denominada de Avenida Vitória e que foi elevada em relação às áreas de mangue circundantes, interferindo na dinâmica hídrica da região.

Figura 4. Planta da Ilha de Vitória em 1896 com inserção do Novo Arrabalde. Fonte: BRITO, 1896.

O Plano de Melhoramentos da Capital do início do século XX dotou a cidade de Vitória com novos serviços como abastecimento de água, bondes elétricos, rede de esgoto, entre outros. Isso modificou a dependência da população da vila em relação à água captada na ilha, uma vez que a captação passou a acontecer nas nascentes do Córrego Duas Bocas, em Cariacica. Além disso, as áreas de mangue que limitavam o núcleo urbano inicial, as regiões do Campinho e da Prainha, são aterradas, e sobre elas são criados, respectivamente, o Parque Moscoso (Figura 5) e a Praça Costa Pereira. Por conta disso, os cursos d’água nesses locais foram suprimidos. Ao final dos melhoramentos, a cidade parecia acabada, apresentando um aspecto modernizado (Figura 6) e “foi nesse momento que Aerobaldo Lélis [...] criou a legenda: Vitória, cidade-presépio” (MARTINS, 1993, p. 101).

Figuras 5. Foto do Parque Moscoso nas primeiras décadas do século XX. Fonte: MEMÓRIA, 2014.

Figuras 6. Foto de Vitória a parir do continente nas primeiras décadas do século XX. Fonte: MEMÓRIA, 2014.

Outros aterros ocorreram nas proximidades da antiga vila durante este período, possibilitando a abertura de novas ruas e a criação de mais terreno para a expansão da cidade. Abriam-se novas frentes para a baía, com vias margeando-a e cais para atracação de embarcações. Enquanto os córregos e áreas de mangue perdiam espaço no cotidiano urbano de Vitória, a baía ganhava destaque ao colocar-se como o único modo de acesso à cidade, além de servir de palco para a realização de disputas de regatas (Figura 7) e festividades religiosas, como a procissão marítima da Festa de São Pedro, apreciadas pela população debruçadas nas margens (LIMA JUNIOR; SOARES; BONICENHA, 1994).

Figuras 7. Foto de regata na baía com a população acompanhando nas margens, nas primeiras décadas do século

XX. Fonte: MEMÓRIA, 2014.

Novos tempos: portos, indústrias e aterros

Ao longo do século XX, a relação entre a cidade e as águas do território da Baía de Vitória é caracterizada principalmente pelas intensas modificações e degradações promovidas pelo crescimento da cidade. A expansão passa a ocorrer tanto em novas áreas da ilha como nas terras continentais, e o início desse período é marcado pelo aumento do comércio do café e pela intensificação das atividades portuárias (CAMPOS JUNIOR, 2002).

A construção do Porto de Vitória inicia-se no governo de Jerônimo Monteiro (1908- 1912) e até meados do século XX são finalizados os novos cais e armazéns. Dessa maneira, as instalações portuárias constituíram uma barreira física entre a cidade e a baía, dificultando o acesso e a percepção desta. Posteriormente, ocorreram outros aterros, como o da Esplanada Capixaba e o da Vila Rubim, ambos criando terreno para a expansão da cidade, sendo que o último anexou a Ilha do Príncipe à Ilha de Vitória, desfazendo o canal que as separava. Tais aterros definiram os atuais contornos da ilha junto ao Centro de Vitória.

Ao final da década de 1920, Vitória passa a contar com acesso por via terrestre a partir da construção da Ponte Florentino Avidos (MARTINS, 1993). Assim, o acesso à cidade a partir dos municípios de Cariacica e Vila Velha foi facilitado, permitindo a extensão das linhas férreas até o porto, ampliando a capacidade de escoamento da produção de café. Por outro lado, como ressalta Mendonça (2006), a percepção que se tinha da cidade e de sua paisagem é influenciada por essa nova modalidade de acesso, antes realizada exclusivamente por via marítima.

Conforme plantas cadastrais da década de 1940, novas áreas são ocupadas no interior da Ilha de Vitória, como os bairros de Jucutuquara e Maruípe, entre outros, além de outros bairros localizados na porção continental do município. Os cursos d’água que atravessavam essas antigas fazendas são inicialmente canalizados (Figura 8), passando a constituir parte da rede de drenagem da cidade e, posteriormente, foram tamponados na medida em que o esgoto lançado sem tratamento comprometeu a qualidade de suas águas e a salubridade do ambiente urbano (DANIEL; DADALTO, 1999).

Figuras 8. Foto do Bairro de Jucutuquara com o córrego canalizado, na década de 1930. Fonte: MEMÓRIA, 2014.

Porém, a expansão urbana sobre o sítio não fica restrito somente à Ilha de Vitória. A facilidade de acesso terrestre em função da Ponte Florentino Avidos (Figura 9) fez com que novos bairros surgissem nos municípios de Vila Velha e Cariacica, ocupando inclusive locais suscetíveis a alagamentos tanto às margens de canais artificiais como de rios.

Figuras 9. Foto da Ponte Florentino Avidos ligando Vitória ao continente, década de 1920. Fonte: MEMÓRIA, 2014.

Vasconcellos (1993) comenta que a partir da década de 1940, a base produtiva do estado se transforma por incentivo do governo à industrialização. Ele ressalta que Jones dos Santos Neves “conduziu o início do processo de modernização industrial, que implicou num reordenamento do espaço urbano da Capital” (op. cit., p. 115). Essa conformação viria consolidar-se na Grande Vitória a partir da segunda metade dos anos 1960. O ritmo de expansão e crescimento da cidade, que até a década de 1960 ocupava esparsamente áreas na ilha e no continente, ganha impulso com a implantação dos Grandes Projetos Industriais e dos portos de Tubarão e Praia Mole na região continental de Vitória. A economia dos municípios se dinamiza com a criação de novas atividades econômicas, ligadas principalmente à indústria siderúrgica e às atividades portuárias.

Em função disso, foi necessário disponibilizar novos terrenos para o crescimento da cidade. Na Ilha de Vitória, foram concluídos os aterros dos mangues encontrados entre a área do Novo Arrabalde e o Centro de Vitória. Essa região constituiu-se em novos bairros (Bento Ferreira, Ilha de Monte Belo, Ilha de Santa Maria e Forte São João). Estes foram limitados ao sul por uma avenida que redefiniu os limites da Baía de Vitória, desfazendo as reentrâncias de água, as quais definiam um limite impreciso entre terra e água. Os aterros incorporaram a Ilha de Santa Maria e Ilha de Monte Belo à Ilha de Vitória, além de suprimir grande parte dos canais naturais que permeavam o mangue. Os canais artificiais foram posteriormente tamponados e tiveram suas margens concretadas, constituindo a rede pluvial da cidade. Além disso, estes não escaparam do contexto de poluição hídrica que atingiu os diversos corpos d’água da Grande Vitória.

Também a região da Enseada do Suá foi local de um grande aterro, na década de 1970, conquistando uma extensa porção de mar e disponibilizando-a para a expansão da cidade. Assim, foram anexadas diversas ilhas à Ilha de Vitória, modificando seu desenho original, a exemplo dos aterros anteriores. A praias que ali existiam (do Canto, Comprida, de Santa Helena e do Suá) foram substituídas por outras,

distanciadas do tecido urbano existente. Posteriormente, o tratamento dado ao aterro incluiu um grande parque urbano ao longo de sua orla, enquanto o restante do aterro recebeu novo arruamento, cumprindo-se assim sua função imobiliária.

Figuras 10. Foto do Cais de Paul com linhas férreas instaladas no Morro Pela Macaco para o transbordo do minério para exportação, 1949. Fonte: MEMÓRIA, 2014.

Enquanto isso, a margem sul da baía (Figura 10), no lado oposto ao Centro de Vitória, foi ocupada por novas instalações portuárias (Cais de Paul, Cais de Capuaba, Terminal de Vila Velha) que, em conjunto com as linhas férreas, constituíram novas barreiras impedindo o livre acesso às suas águas.

A região oeste da ilha manteve-se à parte das maiores modificações sobre o sítio e, também, sobre os elementos hídricos da região. Esta se configurava, junto com os morros da ilha, a última fronteira de ocupação na porção insular de Vitória. Enquanto isso, a fronteira urbana expandia-se continuamente nos municípios de Vila Velha e Cariacica.

A expansão da cidade nesses locais deve-se ao crescimento populacional, intensificado pela chegada de migrantes vindos do interior do estado e de outras unidades da Federação, atraídos pelas promessas de emprego e renda em decorrência da industrialização da Grande Vitória. Porém, esse contingente populacional acabou não sendo totalmente absorvido pela economia local (VASCONCELLOS, 1993). Assim procedeu-se a formação de novas periferias na Grande Vitória, tanto loteamentos regulares como invasões, instalando-se em locais ainda desocupados.

Nenhum dos municípios que passou a integrar a região então chamada Grande Vitória possuía infra-estrutura para receber o fluxo de pessoas do interior e de outros Estados que deslocavam-se em suas direções (VASCONCELLOS, 1993, p. 137).

Assim, os manguezais, que ainda existiam no oeste da Ilha de Vitória e passaram a servir como local para despejo de lixo, foram ocupados por palafitas a partir de 1977 (Figura 11). Os moradores da região utilizavam-se desses resíduos tanto para promover o aterro dos manguezais, como para conseguir o sustento de suas famílias (ALMEIDA; GOBBI, 1983). As alterações promovidas impactaram severamente o ecossistema dos manguezais da região, de modo que, ao final dos anos 1980, iniciaram-se as primeiras obras de urbanização na região, contendo a expansão urbana sobre os manguezais e sua degradação.

Figuras 11. Foto das palafitas sobre os manguezais da Baía Noroeste, década de 1980. Fonte: Arquivo Público Municipal - PMV.

Vale ressaltar que os cursos d’água que desaguavam nessa região não escaparam ao destino imposto aos demais córregos da ilha, sendo canalizados e tamponados. Em relação ao Maciço Central, a criação do Parque Estadual da Fonte Grande no final da década de 1980 impediu a ocupação de grande parte das vertentes, protegendo e possibilitando a recuperação das matas, conservando-se assim as nascentes e cabeceiras ali existentes. Também a criação da Estação Ecológica da Ilha do Lameirão contribuiu para a conservação dos manguezais remanescentes.

A expansão das áreas urbanas nos municípios de Cariacica e Vila Velha ocorreu seguindo o curso de novas vias. Loteamentos e invasões perpetuaram-se ao longo das rodovias Carlos Lindenberg e Jerônimo Monteiro, que ligavam o Centro de Vitória ao Centro de Vila Velha. As áreas urbanas estenderam-se até as margens dos cursos d’água da região, principalmente dos rios Aribiri e Marinho (Figura 12), e ocuparam as áreas alagadiças, determinando a retificação de seus cursos e a canalização de seus leitos em determinados trechos. Os manguezais que se estendiam pela foz do Rio Aribiri foram ocupados até que as obras de urbanização servissem de contenção, restando ainda manguezais protegidos no Parque Natural Municipal Morro da Mantegueira.

Figuras 12. Foto de novas áreas urbanas às margens do Rio Aribiri em Vila Velha, realizada na década de 1970. Fonte: MEMÓRIA, 2014.

Figuras 13. Foto de Vila Velha onde vê-se a formação de novos bairros próximo ao litoral do município, realizada na década de 1970. Fonte: MEMÓRIA, 2014.

Já no município de Cariacica, a expansão urbana acompanhou a Rodovia José Sete e a BR-262, ocupando as cabeceiras e os vales de córregos e rios. Também na região próxima ao litoral de Vila Velha os canais artificiais tiveram suas margens ocupadas, como o caso dos canais da Costa e Bigossi, entre outros (Figura 13). Posteriormente, também a Rodovia do Contorno constituir-se-ia num vetor de crescimento da cidade.

Nas últimas décadas do século XX, duas novas pontes foram construídas, ampliando- se a comunicação de Vitória com Vila Velha e Cariacica. A primeira localizada próxima à Ponte Florentino Avidos, e a segunda na entrada da Baía de Vitória. Ambas deram melhores condições de circulação a toda cidade, fazendo com que novos bairros nos municípios continentais continuassem surgindo, suprimindo continuamente as áreas alagadiças e ocupando as margens dos canais de drenagem urbana. As facilidades de circulação terrestre acabaram por determinar uma drástica redução do transporte marítimo de pessoas, culminando na extinção do transporte coletivo por via aquática e o abandono dos terminais aquaviários ainda na década de 1980.

Atualmente, a relação entre a cidade suas águas na Grande Vitória é marcada por um mosaico de situações que varia desde a incorporação delas na paisagem urbana, até sua negação, ressaltada pela degradação a que foram submetidas (Figuras 14 e 15).

Figura 14. Foto de canal tamponado em Vitória, 2009. Figura 15. Foto de canal poluído com esgoto em Vila

Velha, 2009.

Considerações Finais

Pode-se perceber que os usos e apropriações dos elementos hídricos, o desenho urbano e o tratamento dispensado aos espaços de água alteraram-se ao longo do tempo segundo os preceitos e necessidades de cada momento. O desenvolvimento e a aplicação de novas técnicas, além da disponibilização de recursos foram fatores determinantes para que fossem superadas as limitações colocadas pelo sítio à expansão urbana.

As dimensões territoriais da baía de certa maneira condiciona sua inserção no desenho e na paisagem da Grande Vitória, mas os canais, rios e córregos não. Assim, é necessário repensar o modo como a cidade lida com suas águas, para que ela se aproprie efetivamente dessas, explorando as potencialidades que elas oferecem. Dessa maneira, vê-se necessária uma redefinição do papel das águas urbanas no contexto das cidades para a construção de uma relação mais harmônica.

Agradecimentos

Agradecemos a Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES), pelo apoio com o qual foi possível o desenvolvimento deste artigo.

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