Resumo

Neste artigo, pretende-se estudar as transformações nas relações Estado/Favela entre 1979 e 2014, na Cidade do Rio de Janeiro, e seus desdobramentos em projetos e políticas públicas de urbanização de favelas. Para isso, são analisados três programas distintos, em seus devidos contextos políticos, econômicos e sociais. Primeiramente, é analisado o Projeto Mutirão, que se desenvolveu entre 1981 e 1989. Em seguida, é analisado o Programa Favela-Bairro, desenvolvido entre 1992 e 2009. Por último, discute-se o Programa Morar Carioca, lançado através de um concurso de metodologias de urbanização de favelas, em 2010, e de alcance ainda a ser avaliado. A partir do estudo do período compreendido, e das características específicas de cada programa, observa-se um progressivo reconhecimento do direito à permanência da favela na cidade, e da responsabilidade do poder público na urbanização de seu habitat.

Palavras-chave: Urbanização de favelas, Planejamento Urbano, Rio de Janeiro

Abstract

This paper intends to study the changes in the State/Favela relations, between 1979 and 2014, in the city of Rio de Janeiro, and its consequences on projects and public policies of slum upgrading. In this intention, three different programs are analyzed in their proper political, economic and social contexts. First, we analyze the Projeto Mutirão, which was developed between 1981 and 1989. Then we analyze the Favela- Bairro program, developed between 1992 and 2009. Finally, we discuss the Morar Carioca program, launched through a competition of methods for slum upgrading in 2010, with a reach yet to be evaluated. From the study of this period, and the specific characteristics of each program, it is possible to note a growing recognition of the rights of the city slums, and the public authorities responsibility on the urbanization of its habitat.

Keywords: Slum upgrading, Urban Planning, Rio de Janeiro

INTRODUÇÃO

As favelas constituem um fenômeno urbano contemporâneo associado aos processos de segregação sócio-espacial impostos pela ausência de mecanismos de redistribuição da riqueza e de políticas habitacionais que garantam o acesso à moradia para as camadas mais pobres da população. No Rio de Janeiro, as favelas encontram-se fortemente incorporadas à paisagem urbana, representando uma das mais graves questões sociais enfrentadas pela cidade.

Na primeira metade do século XX, as favelas eram vistas como um fenômeno transitório, cuja erradicação seria um processo natural do desenvolvimento da cidade.

Posteriormente, nas décadas de 1960 e 1970, as favelas passaram a ser compreendidas como assentamentos “subnormais”, sendo sua erradicação promovida ativamente pelo Estado, através de políticas de remoção, com a transferência de sua população para conjuntos habitacionais situados em áreas periféricas. Essas políticas, porém, foram se revelando ineficientes, sobretudo quanto ao atendimento das necessidades das populações removidas, bem como pela carência de recursos para dar continuidade aos programas de remoção.

Na cidade do Rio de Janeiro, a urbanização da favela de Brás de Pina, iniciada no final dos anos 1960, constitui, nesse sentido, um marco referencial do posicionamento crítico de técnicos, agentes do Estado e lideranças comunitárias. O projeto de urbanização de Brás de Pina, embora com condições de ação limitadas, se transformaria numa bandeira de luta para a Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara, que reivindica, a partir desse momento, a implementação de projetos com características semelhantes, nas demais favelas cariocas (SANTOS, 1981).

No final da década de 1970, o esgotamento do regime autoritário e o crescente movimento pela redemocratização do país determinaram mudanças na atitude oficial do governo federal em relação à população favelada dos grandes centros urbanos – o fim da política de remoções é um desdobramento desse quadro político (VALLADARES, 1980). Na primeira metade da década de 1980, com as primeiras eleições livres desde 1964, observa-se um novo discurso político, que considera necessário resgatar a dívida social existente junto às comunidades faveladas.

No estado do Rio de Janeiro, uma das propostas de Leonel Brizola, eleito para o governo do estado em novembro de 1982, era transformar as favelas em bairros populares. A atuação da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e a implementação de ações como o projeto “Todos Juntos, Participando” – Projeto Mutirão – já apontavam para uma mudança na relação entre a administração municipal e as comunidades faveladas.

Dez anos mais tarde, a partir das diretrizes contidas no Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, foi criado, em 1994, o Programa Favela-Bairro, que teria por objetivo viabilizar melhorias urbanísticas, com a implantação de infraestrutura de saneamento e acessibilidade, além da criação de equipamentos urbanos. Através dessas intervenções, pretendia-se promover a integração das favelas aos bairros onde estavam inseridas.

Em julho de 2010, por sua vez, a Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura do Rio de Janeiro lançou o Programa Morar Carioca, com o objetivo de urbanizar todas as favelas da cidade até o ano de 2020. Para viabilizar esse ambicioso programa de ação, a prefeitura firmou uma parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB- RJ), promovendo um concurso de metodologias de urbanização de favelas.

Neste trabalho pretendemos contribuir para o entendimento das características dessas intervenções urbanísticas promovidas pelo poder público municipal em três momentos distintos. O Projeto Mutirão, o Programa Favela-Bairro e o Programa Morar Carioca constituem proposições que traduzem (ou pretendem traduzir) diferentes abordagens do projeto de urbanização de assentamentos informais. Há que ressaltar, ainda, que estes programas habitacionais foram implementados em distintos cenários políticos, econômicos e sociais de nosso país, o que contribuiu,

decisivamente, para suas configurações.

O PROJETO MUTIRÃO (1981-1989): MARCO DA RETOMADA DAS INTERVENÇÕES URBANÍSTICAS EM FAVELAS CARIOCAS.

A grave crise econômica que o Brasil atravessou na década de 1980 gerou, dentre outros desdobramentos, a extinção do Banco Nacional de Habitação e a consequente ausência de políticas habitacionais de interesse social. Nesse contexto, o cenário das cidades brasileiras passou a ser marcado pela fragmentação urbana, com o crescimento expressivo da produção informal da moradia, multiplicando-se favelas, loteamentos informais e cortiços.

De acordo com os dados do Censo do IBGE de 1980, no estado do Rio de Janeiro, 93% da população favelada encontrava-se na região metropolitana, sendo que a população favelada da capital era de 707.874 habitantes, o que correspondia a 13,8% de sua população total (TASCHNER, 1998).

Com o processo de redemocratização do país, iniciado em 1979, e com a promulgação da Lei da Anistia, observa-se o início de uma mudança de posição de setores governamentais, trazendo novas perspectivas quanto à urbanização das favelas. Nesse cenário, foi criada a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social em 1979 e o Projeto Mutirão em 1981, que retomam a proposta de urbanização de favelas, ao desenvolver projetos elaborados por equipes multidisciplinares, focando, além das obras de infraestrutura, pavimentação e construção de equipamentos comunitários, a implementação de programas de geração de emprego e renda e de capacitação profissional. Através da parceria constituída entre a SMDS e a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), teve início a realização de experiências no campo da educação comunitária, saneamento básico e ações de preventivas de saúde – contudo, em um número reduzido de favelas.

A primeira fase do Projeto Mutirão ocorreu entre 1981 e 1984. O objetivo era a promover a extensão de serviços públicos a comunidades faveladas. A participação da comunidade, no processo de planejamento e de implementação das ações, era considerada uma das peças chaves desse projeto (RODRIGUES, 1988). Planejamento e obras eram, basicamente, de infraestrutura de saneamento básico, além da reforma e construções de creches. Nas comunidades onde o projeto foi implementado, as obras eram realizadas nos finais de semana, e a mão de obra envolvida não era remunerada.

Em 1984, a realização de um seminário patrocinado pela SMDS – denominado Mutirão/Rio – contou com a participação de 150 comunidades faveladas e teve por objetivo possibilitar a participação das lideranças comunitárias na decisão de alocação dos recursos destinados ao Projeto Mutirão. Apesar do resultado satisfatório, a então Secretária da SMDS, Dilza Terra, seria exonerada do cargo, o que é atribuído à pressão feita por vereadores cariocas, insatisfeitos com a eliminação do seu papel de “intermediários” na liberação de recursos públicos para a execução de obras em comunidades faveladas.

Após esse seminário, teve início a segunda fase do Projeto Mutirão (1984-1988). As prioridades continuaram a ser as mesmas – porém, numa escala consideravelmente maior, envolvendo um maior número de arquitetos e de engenheiros, além de recursos financeiros. A ênfase na questão da mobilização popular, com a implementação de ações voltadas para a organização da comunidade, de modo a possibilitar sua

intervenção, como protagonista do processo de planejamento e execução das obras, é significativamente reduzida e o foco passa a ser a realização maciça de obras, em que a participação comunitária passa a ter um caráter menos relevante.

A partir de 1984, os trabalhadores envolvidos no Projeto Mutirão passam a ser remunerados e, em 1986, é criado um desdobramento do programa, voltado para a contenção de encostas, a recuperação e regularização das nascentes e mananciais, a limitação da expansão das comunidades em áreas de risco e a recomposição paisagística (BARBOZA, 2013 p.72-73). Observa-se, ainda, nesse período, uma ampliação da atuação do Projeto Mutirão, com o atendimento de um maior número de comunidades e a realização de projetos de urbanização simplificada – ao contrário das pequenas intervenções pontuais, até então realizadas. Desse modo, os projetos de urbanização passam a ser desenvolvidos, contemplando uma abordagem mais ampla das diversas questões da comunidade. A partir de 1987, o programa passou a ter três vertentes: Obras, Educação Sanitária e Reflorestamento – este último expressava as tendências apontadas no Relatório Brundland, que sinalizava o compromisso entre políticas sociais, de crescimento econômico e de proteção ambiental.

No final de 1987, e notadamente a partir de 1988, o Projeto Mutirão perde o seu caráter de promotor principal das ações públicas em favelas e outros programas começaram a surgir, visando à promoção de urbanizações mais complexas. Percebe-se que o nome Mutirão passa a ser associado exclusivamente às ações de urbanização simplificada – sendo, inclusive, renomeado como Projeto Mutirão - Urbanização Simplificada (1987-89).

Nesse período, foi elaborado, também, o Plano Plurianual de Urbanização de Assentamentos Precários (1988). A proposta era tentar assegurar um investimento fixo para promover a urbanização de todos os assentamentos informais da cidade do Rio de Janeiro, o que demandaria, segundo cálculos do Fundo Rio, cerca de 3% da arrecadação municipal. Visava à superação do caráter disperso e fragmentado que caracterizava as ações do poder público nas favelas cariocas. Esse plano pretendia, ainda, desenvolver projetos de urbanização para a captação de recursos junto ao BNDES e ao Banco Mundial, principalmente. Nesse mesmo período, foi criado o Programa Emergencial de Habitação (1988), que visava à redução déficit habitacional e o reassentamento das famílias que viviam em situações de risco, através do cadastramento de terras públicas – em especial aquelas pertencentes ao município do Rio de Janeiro – e a implantação de loteamentos populares nessas áreas. Ao lado do Plano Trienal de Urbanização Comunitária (1990-1993) – que teve como diretriz básica promover a ação integrada dos diversos serviços públicos envolvidos nas áreas habitacionais de baixa renda – é possível afirmar que esses planos contribuíram para o posterior surgimento do Programa Favela Bairro.

FAVELA-BAIRRO (1994-2009): A CONSOLIDAÇÃO DAS AÇÕES PÚBLICAS DE URBANIZAÇÃO DAS FAVELAS CARIOCAS.

A elaboração do Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro (PDDCRJ-92, Lei Complementar nº 16) possibilitou um amplo debate, que envolveu, além dos órgãos da administração municipal, diversos setores da sociedade, tornando-se a partir de 1992, ano de sua promulgação, o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana do município. Ali estariam contidos os parâmetros norteadores da ação do poder público em diversos campos, inclusive no

tocante à habitação social.

Desse modo, as ações do poder público em comunidades faveladas ganhariam uma maior expressão, como afirma Pasternak Taschner (1998, p.14):

O Plano Diretor, nos seus artigos 148 a 151, recomenda a inclusão das favelas nos mapas e cadastros da cidade, enfatiza a participação dos moradores no processo de urbanização, recomenda “preservar a tipicidade da ocupação local” e o esforço para integrar as favelas aos bairros.

Essa autora destaca, ainda, que, com a Constituição de 1988, toda a questão referente às invasões de terra passou à alçada do município, e, nesse sentido, o programa municipal de desfavelamento, estabelecido pelo Plano Diretor de 1992, “reafirmou a idéia da integração das favelas, como parte efetiva do tecido urbano formal”, buscando promover a “melhoria das condições de vida da população favelada e integrá-la no resto da cidade”.

O Programa Favela Bairro surge a partir do consenso sobre princípios básicos. O primeiro deles é o que reconhece a moradia como um direito do cidadão. Além disso, o entendimento de que a habitação não é somente a casa, a moradia, mas também a integração à estrutura urbana (infraestrutura sanitária, transporte e equipamentos de educação, saúde e lazer), cabendo ao Estado prover essa estrutura urbana. Por último, o pressuposto de que os investimentos públicos em unidades habitacionais deveriam se dar somente quando necessários à melhoria da ambiência urbana e da infraestrutura ou ao enfrentamento de situações de risco.

De acordo com as diretrizes do Programa Favela-Bairro – iniciado com a realização de um concurso público de metodologias para intervenção em comunidades faveladas, promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB RJ) –, as principais ações destinadas a promover a integração das favelas ao tecido urbano em que se inserem deveriam:

“complementar ou construir a estrutura urbana principal; oferecer condições ambientais para a leitura da favela como um bairro da cidade; introduzir os valores urbanísticos da cidade formal como signo de sua identificação como bairro: ruas, praças, mobiliário e serviços públicos; consolidara inserção da favela no processo de planejamento da cidade; implementar ações de caráter social, implantando creches, programas de geração de renda e capacitação profissional e atividades esportivas, culturais e de lazer; promover a regularização fundiária e urbanística. (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1994).

O Programa Favela Bairro – que contemplou 147 comunidades faveladas, com a execução de 138 intervenções – pretendeu construir ou concluir a infraestrutura urbana básica das favelas; implantar mobiliário urbano adequado; desenvolver uma legislação específica de uso e ocupação do solo; e realizar ações de caráter social. O programa contou com 600 milhões de dólares, resultantes de contratos assinados com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, e outros 120 milhões, que constituíram a contrapartida municipal.

MORAR CARIOCA (2010): UM NOVO ESTÁGIO DE INTEGRAÇÃO DOS ASSENTAMENTOS INFORMAIS À CIDADE OFICIAL?

Segundo o Instituto Pereira Passos (IPP), a partir da compatibilização dos dados apurados pelo Censo Demográfico de 2010, para “aglomerados subnormais” com limites definidos pelas bases cartográficas da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, a metrópole carioca é a cidade brasileira com maior população residente em favelas: 1.443.773 habitantes, correspondendo a 23% da população da cidade (IBGE. Censo Demográfico 2010; Instituto Pereira Passos).

O Programa Morar Carioca, lançado pela Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro em 2010, pretendia constituir um novo estágio de abordagem das intervenções urbanísticas em assentamentos precários informais, propondo, de acordo com as diretrizes apresentadas pela Secretaria Municipal de Habitação, a incorporação dos conceitos de sustentabilidade ambiental, moradia saudável, bem como a ampliação das condições de acessibilidade.

A primeira particularidade do Morar Carioca se refere à escala de atuação do programa. Com o objetivo de urbanizar todas as favelas cariocas em 10 anos, e com 8 bilhões de Reais de orçamento, o programa expandiria, de modo significativo, as metas de seu antecessor, o Favela-Bairro, pretendendo ser um dos maiores legados dos mega eventos realizados na cidade, em 2014 e 2016.

É possível perceber algumas diferenças no perfil das propostas de intervenção apresentadas para o Concurso Morar Carioca, quando comparadas com aquelas selecionadas pelo Programa Favela Bairro, em 1994. Neste último, as intervenções eram restritas à qualificação dos espaços públicos e melhoria de serviços de infraestrutura nas favelas, além da construção de equipamentos comunitários. Essas intervenções, de modo geral, procuravam alterar o mínimo possível a estrutura espacial da favela, sendo as realocações de moradia propostas somente quando se tratava de reassentar famílias que ocupavam áreas de risco ou para viabilizar melhores condições de acessibilidade. Os projetos eram assim desenvolvidos por um conjunto diversificado de razões.

O cenário econômico no país no final da primeira década do século XXI era significativamente distinto daquele em que o programa Favela-Bairro foi realizado, em 1995, quando havia uma menor disponibilidade de recursos para investimento na execução de obras de urbanização. Esse quadro restringia a possibilidade de projetos urbanísticos mais ousados, sobretudo no que diz respeito à acessibilidade dos assentamentos. O Programa Morar Carioca estimulava, ainda, as equipes participantes a apresentarem propostas que desadensassem o tecido urbano das favelas, com a construção de unidades habitacionais multifamiliares verticalizadas em vazios gerados pela retirada de habitações existentes.

Há, também, motivações ideológicas, no que diz respeito à essa alteração nas abordagens conceituais dos projetos de urbanização de favelas. Havia, no passado recente, entre os arquitetos urbanistas, quase que um consenso sobre o respeito à permanência do habitat construído pelos moradores, ao longo de anos e com recursos e esforços próprios. Dessa forma, seria uma atitude autoritária promover cirurgias urbanas significativas, impondo novas soluções morfológicas. Nesse sentido, demolições eram previstas exclusivamente para viabilizar condições mais adequadas de acessibilidade, além da retirada de famílias que ocupavam áreas de risco – o

programa Favela-Bairro previa um número máximo de famílias a serem reassentadas, no interior das próprias comunidades contempladas.

No concurso Morar Carioca, por sua vez, as equipes propuseram intervenções mais ousadas, com significativas reestruturações da malha urbana da favela. Foram propostas aberturas de vias de maior porte, construção de teleféricos e de planos inclinados. Conjuntos habitacionais verticalizados com a liberação de área para construção de espaços de recreação e lazer foram apresentados em diferentes versões, com a justificativa de assegurar assim melhores condições de habitabilidade para a população local.

As novas intervenções propostas iriam, simultaneamente, propor expressivas cirurgias no tecido da favela, e reconhecer as formas vernáculas de habitar dessas comunidades. Desse modo, foram previstas a melhoria das unidades habitacionais existentes, através de investimento e assessoria técnica, pela implementação de soluções que contemplem os problemas de salubridade e estabilidade das edificações. Essa previsão está em consonância com a Lei 11.888, sancionada em dezembro de 2008, que assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social.

Outra questão que permeia a grande maioria dos projetos apresentados no concurso Morar Carioca, e que não era considerada tão relevante no Programa Favela-Bairro, diz respeito à sustentabilidade ambiental e às possibilidades de introdução de dispositivos que assegurem redução do consumo de energia, captação de águas pluviais para reuso, manejo seletivo de resíduos sólidos e utilização de componentes construtivos reciclados.

Outro significativo desafio que deveria ser enfrentado pelo Programa Morar Carioca diz respeito à participação popular organizada, no desenvolvimento e implementação dos projetos de urbanização a serem realizados. Se, durante o Programa Favela/Bairro, havia explicitamente, em todos os documentos oficiais, a exigência de que fosse garantida a ampla participação comunitária em todas as fases do projeto, diversos fatores impediram que esse objetivo fosse plenamente alcançado. A ausência de metodologias participativas mais adequadas, a exiguidade dos prazos contratuais e a pouca representatividade de diversas associações de moradores, acabaram por transformar essa participação em elemento meramente formal de todo o processo. No Morar Carioca, somente a existência de um cenário político efetivamente favorável permitiria que fossem implementadas soluções mais ousadas de inserção dos moradores no processo de planejamento, acompanhamento da execução das obras de urbanização e posterior monitoramento das melhorias implantadas.

Cabe ressaltar que, até o momento da elaboração deste trabalho, o Programa Morar Carioca permanece sendo muito mais uma intenção (?) da prefeitura municipal, do que uma política pública concreta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

O Projeto Mutirão inicialmente tinha um caráter limitado, no que diz respeito ao número de comunidades atendidas. Mais do que a execução de obras de saneamento e de edificações de pequeno porte, pretendia-se assegurar aos moradores envolvidos um papel relevante na concepção e execução das intervenções. Esse processo de planejamento participativo impactava, contudo, os prazos de execução das obras, o

que acarretou um desgaste, junto aos gestores municipais, da equipe técnica que deu início às atividades do projeto. Havia, portanto, uma incompatibilidade entre os novos rumos traçados pela administração municipal, a partir de 1984 – que pretendia ampliar o volume de obras e o número de comunidades atendidas pelo programa – e a dinâmica de planejamento até então adotada. Ainda que ampliado o corpo técnico, e dispondo de maiores recursos financeiros, o Projeto Mutirão, entre 1985 e 1986, caracterizava-se, ainda, pela realização de intervenções pontuais de obras de saneamento, pavimentação e drenagem, cujo alcance, embora relevante para as comunidades atendidas, não possuía um caráter amplo de intervenção no habitat. Para muitos, essa pulverização de pequenas intervenções urbanísticas traduzia a tentativa de atender o maior número possível de comunidades, cujas demandas estavam represadas há décadas. Acrescente-se a esta leitura, o reconhecimento de que os recursos eram, então, mais escassos do que os disponíveis após a promulgação da Constituição de 1988, que assegurou ao município do Rio de Janeiro melhores condições financeiras.

O programa Favela-Bairro, por sua vez, de acordo com Taschner (1998), teve como princípio a “tentativa de uma aproximação holística, através do uso de participação social já no próprio desenho”, voltado para a qualificação de áreas faveladas, através da colocação de equipamentos públicos e infraestrutura urbana. A autora também considera relevante a parceria firmada entre a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), no financiamento dos programas de urbanização, e, no que diz respeito ao desenvolvimento propriamente dito do projeto urbanístico,

Pôde-se observar, por outro lado, os resultados insatisfatórios na regularização fundiária promovida pelo programa Favela-Bairro, atribuídos, por Cavallieri (2003) ao desinteresse dos moradores das comunidades atendidas, que “talvez mesmo não a desejassem”, uma vez que poderia representar restrições à “liberdade de construir e de ocupar o solo, de que os favelados desfrutam de forma muito mais ampla do que os moradores das áreas formais”.

Estudo realizado em 2003, pelo Instituto Pereira Passos, em conjunto com o Instituto de Pesquisa e Planejamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro, comparando dados de sete favelas onde foram implementados o Programa Favela-Bairro e os de outras cinco, nas quais não foram realizados projetos de urbanização, revelam resultados diferenciados (ABRAMO, 2004). Na avaliação desses resultados, afirma Pedro Abramo, coordenador da pesquisa, a implementação das obras de urbanização não trouxe alterações significativas no que diz respeito à situação econômica dos moradores das favelas beneficiadas pelo programa de urbanização implementado pela prefeitura carioca. Por outro lado, os dados da pesquisa apontam o crescimento expressivo – mais de 200% – do número de domicílios nas sete favelas onde o Programa Favela-Bairro atuou, indicando que as obras de urbanização realizadas estimularam o crescimento destes assentamentos.

A concretização das propostas contidas no Programa Morar Carioca, e materializadas nos projetos apresentados pelas equipes técnicas que participaram do concurso, é algo que dependeria do que se convencionou chamar de "vontade política". Dependeria, também, da real incorporação dos moradores das comunidades faveladas, a serem atendidas, às diferentes etapas de decisão, implementação e monitoramento dos projetos urbanísticos previstos. Somente assim, seria possível afirmar que foi

construído um "morar carioca" - a integração das favelas ao restante da cidade, através de projetos de urbanização que reconhecem o que é comum e o que é particular em cada favela da cidade do Rio de Janeiro.

Deve-se considerar, porém, que há uma aparente contradição nas políticas públicas habitacionais implementadas na cidade do Rio de Janeiro, durante a primeira metade da década de 2010. Se, por um lado, a realização dos Jogos Olímpicos de 2016 parece ter catalisado o Programa Morar Carioca, por outro, o mesmo evento serve como justificativa para a realização de remoções de favelas em áreas associadas ao evento. Essas ações muito se assemelham àquelas implementadas na cidade do Rio de Janeiro na década de 1960, quando diversas favelas da zona sul foram removidas de forma truculenta, com seus moradores sendo reassentados em conjuntos habitacionais localizados em áreas periféricas, atendendo, assim, aos interesses do capital imobiliário.

Apesar dessas ações de remoção localizadas, é possível afirmar, contudo, que de 1979 a 2014, observou-se, na cidade do Rio de Janeiro, uma significativa transformação na relação Estado/Favelas. O reconhecimento do direito à permanência da favela na cidade e a criação de programas públicos destinados à urbanização do seu habitat traduzem essa transformação.

Referências bibliográficas

ABRAMO, P. Favela-Bairro: mais infraestrutura e renda pior – O Globo, 22 de fevereiro de 2004.

BARBOZA, S. C. Políticas e programas habitacionais no município do Rio de Janeiro: uma avaliação da experiência (1979-2002). Niterói: Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal Fluminense, 2013.

CAVALLIERI, F. Favela-Bairro: Integração de Áreas Informais no Rio de Janeiro. In: ABRAMO, P (Org.). A cidade da informalidade: O desafio das cidades latino- americanas. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2003. p.294

PASTERNAK TASCHNER, S. Tendências Recentes na Política de Desfavelamento Brasileira, artigo apresentado no ISA, em Montreal, julho de1998. p.14

PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Edital do Concurso Favela- Bairro. Rio de Janeiro, 1994.

RODRIGUES, P. H. A. Extensão dos serviços públicos às comunidades de baixa renda do município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IBAM/CDM, 1988

SANTOS, C. N. F. dos. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Zahar. 1981

VALLADARES, Lícia do Prado. A propósito da urbanização de favelas. In: XXXII Reunião Anual da SBPC. Rio de Janeiro, 1980.