Resumo

Este artigo pretende analisar o contexto que favoreceu a realização dos movimentos grevistas do final da década de 1910 no Rio de Janeiro-RJ. A cidade, na visão dos defensores do ideal ácrata, configurava-se como o território ideal para o início da transformação social almejada pelos mesmos. A pesquisa objetiva à reflexão sobre o porquê, na visão de Oiticica e de outros anarquistas, o operariado deveria se rebelar, naquele momento, contra o sistema vigente. Este período entre 1917 e início dos anos 1920, foi marcado por intensa organização e atuação do movimento operário. Tal fato resultou na deflagração de várias greves e também na esperança, por parte dos anarquistas que atuavam nos meios operários, de que seria possível iniciar uma revolução e, assim, alcançar a destruição total do Estado capitalista brasileiro. Motivados pelos problemas que os proletários enfrentavam, entre eles a carestia de vida intensificada pela Primeira Guerra Mundial e a falta de legislação do trabalho, e pelo imaginário construído a partir do sucesso da Revolução Russa, anarquistas e demais militantes da causa operária, lançaram-se na tentativa da emancipação do homem em relação ao capital e transformação do território político nacional daquele contexto. O conflito envolveu práticas sociais e espaciais que caracterizaram um processo, temporalmente localizado, de luta de classes pela construção e consolidação de novos simbolismos tendo como oposição a manutenção das condições e estruturas já estabelecidas.

Palavras-chave: José Oiticica, greves, imaginário, território político, anarquismo, movimento operário brasileiro

Abstract

This paper intends to analyze the context that favored the achievement of the late 1910s strike movements in Rio de Janeiro - RJ . The city, in the view of the advocates of anarchist ideal, it configured as the ideal territory to the beginning of the desired social transformation. The research aims to reflect about why, in the view of Oiticica and other anarchists, the working class would revolt at that time against the current system. This period, between 1917 and the early 1920s, was marked by intense organization and activity of the labor movement. This fact resulted in the initiation of various strikes and also in the hope, by the anarchists who were acting in the workers’ environments, that it would be possible to start a revolution and thus achieve the total destruction of the brazilian capitalist State. Motivated by problems that workers faced, including the cost of living intensified by the First World War, and the lack of labor legislation, and the imaginary built from the success of the Russian Revolution, anarchists and other militants workers' cause, were cast in attempted of man’s emancipation in relation to capital and transformation of the national political territory of that context. The conflict involved social and spatial practices that characterize a process temporally located, of class struggle for the construction and consolidation of new symbolisms, having as opposition the maintenance of the conditions and structures already established.

Keywords: José Oiticica, strikes, imaginary, political territory, anarchism, brazilian labor movement

Introdução

Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas (DICKENS, 1859, p. 7).

Este trecho do primeiro capítulo do livro de Charles Dickens, Um Conto de Duas Cidades, busca revelar os sentimentos dos homens que viveram e participaram do processo revolucionário francês do final do século XVIII. Mesmo sob algum risco de risco de anacronismo, poderia ser feita a comparação desses desejos e percepções com os anseios de grande parte dos integrantes do movimento operário brasileiro do início do século XX. O final dos anos de 1910 parecia, à grande parte dos militantes da organização operária brasileira, o contexto perfeito para início da guerra social contra o sistema organizacional vigente. Segundo Cristina Hebling Campos, no início de 1917, cinco sindicatos estavam filiados à FORJ – Federação Operária do Rio de Janeiro: Sindicato Operário dos Ofícios Vários, Sindicatos dos Sapateiros, Sindicato dos Operários em Pedreiras, Centro dos Operários Marmoristas, e a Liga dos Empregados em Padarias. José Oiticica era filiado ao primeiro. Esse núcleo sindical, juntamente com o Centro Libertário, desencadeou, no início daquele ano, uma “campanha contra o aumento dos gêneros de primeira necessidade e dos impostos” (CAMPOS, 1988, p. 53). Sobre a alteração do custo de vida, escreveu Oiticica: “A Guerra Européia alterou as condições de existência em toda a Terra, alterou, necessariamente, o custo de subsistência, prejudicou a todos, menos os industriais das munições de guerra, de boca ou de combate”(OITICICA, 1918a).

O Contexto Sócio-Político e a Configuração do Imaginário

A questão da carestia tornou-se o carro chefe da organização operária. Buscando politizar esta questão, anarquistas e militantes da causa operária visavam arregimentar novos sindicalizados, conseguindo por esse meio aumentar as fileiras de operários participantes de tais organizações (CAMPOS, 1988, p. 99). Outro motivo que também movimentava o meio operário eram as notícias que começavam a chegar sobre a deflagração de uma revolução que visava derrubar o governo russo. O que acabou por incentivar ainda mais os militantes brasileiros a investirem contra a organização social capitalista (BARTZ, 2008, p. 12). Possivelmente, José Oiticica, juntamente com seus companheiros de luta, acreditava na Revolução Russa como o início de um processo revolucionário que se expandiria em âmbito mundial.

Toda a movimentação operária, segundo Oiticica, tinha como um dos principais motivos a desigualdade inerente ao sistema econômico capitalista. O proletariado sofria e, por isso mesmo, organizava-se para lutar contra os responsáveis por seus males. O aumento dos lucros por parte dos donos das indústrias não era dividido com os operários. Pelo contrário, “procuram sempre esconder os lucros, ‘choram misérias’, alegam dívidas, o imposto, as reformas e ameaçam de fechar as fábricas se lhes reclamam maior paga” (OITICICA, 1918a). Então, os trabalhadores cansados de serem explorados e ludibriados por seus patrões se organizariam para reivindicar o que lhes era de direito, este seria o motivo das greves. A exemplo disto, segundo Oiticica,

temos a greve de junho de 1917 em S. Paulo. A qual se deflagrou porque os operários, vendo-se instrumentos de fortuna súbita dos Crespí, Matarazzo e Puglitsi, impuseram alta dos salários, pediram sua participação nos lucros centuplicados dos patrões. Estes resistiram. Queriam ganhar o máximo sozinhos (OITICICA, 1918a).

Com tais declarações procurava, possivelmente, atingir os dois grupos envolvidos na questão operária: a classe trabalhadora e a classe mandante. A primeira seria seduzida com a idéia da força operária, da grandeza do movimento, da união do operariado que, segundo José Oiticica, não se resumia ao Rio de Janeiro – como exemplo, cita a greve de 1917 de São Paulo, a qual teria sido motivada pelos mesmos problemas enfrentados pelo operariado carioca; à segunda Oiticica provavelmente tentava amedrontar com a idéia da iminente derrocada do capital, a partir da “real existência” de uma união geral dos trabalhadores.

Segundo Carlos Augusto Addor, a greve paulista “tem sua origem basicamente vinculada ao [...] agravamento das condições de existência da classe operária” (ADDOR, 2002, p.94). Boris Fausto considera que tal movimento “abriria uma conjuntura histórica cujos limites se estendem cronologicamente até 1920”(FAUSTO apud ADDOR, 2002, p. 94). Corroborando com esse pensamento, Addor afirma que a greve generalizada, que ocorreu no Rio de Janeiro em julho de 1917, teve como último elemento incentivador, as notícias sobre a movimentação operária paulista. A organização da greve carioca, seria resultado de uma intensa atuação da FORJ e também motivada por alguns acontecimentos imediatos como o desabamento do New York Hotel, ainda em construção, matando e ferindo vários operários (ADDOR, 2002, p. 96- 98).

A greve paulista e a queda do New York Hotel, citados por Addor, fazem crer numa participação, se não direta, bastante intensa de José Oiticica na referida greve na então Capital Federal. O primeiro fator para pensarmos em tal participação de Oiticica nesta greve é sua intensa atuação no movimento de organização operária liderado pela FORJ desde o início do ano de 1917. O segundo fator que conduz a pensar em tal possibilidade é a relevância do desastre no New York Hotel para sua deflagração. Como mencionado, o ocorrido fez com que os ânimos da classe trabalhadora se exaltassem ainda mais e o sindicato da construção civil organizasse um protesto, ocorrido no momento do enterro das vítimas. Neste, “os oradores atacam a burguesia, criticam a organização social e denunciam a opressão do Estado, para exaltarem a necessidade de organização, o sentido da liberdade, a grandeza da luta operária e a inevitabilidade da revolução” (CRUZ apud CAMPOS, 1988, p. 54).

Dentre os oradores que denunciavam o desastre e incentivavam os trabalhadores à luta contra a sociedade capitalista, estava José Oiticica. “Com a fluidez de sua palavra, emocionou todos os presentes demonstrando o crime de que foram vítimas os 40 pais de família” (RODRIGUES, 1993, 38). Pensando na importância, apontada por Addor a estes fatores, para a organização e concretização da greve generalizada de julho de 1917 e sabendo da participação de José Oiticica, tanto na Federação Operária, quanto no funeral dos trabalhadores, é que se pode pensar na hipótese de sua efetiva participação na organização de tal greve

No decorrer da greve, devido aos intensos combates entre trabalhadores e Forças Armadas e, aproveitando o estado de sítio declarado pelo Congresso Nacional, após a entrada do Brasil na Grande Guerra, o Governo Federal fechou todas as federações operárias do Brasil (BANDEIRA, 1980, p. 116). Ainda no mês de julho daquele ano, Aureliano Leal, então chefe de polícia do Distrito Federal, informou ao Presidente Venceslau Brás ter ordenado, após ter sido recebido a tiros por militantes sindicais, o fechamento da FORJ e também do Centro Cosmopolita (DULLES, 1977, p. 58).

A repressão policial, o fechamento das federações e outras medidas tomadas por parte do governo arrefeceram o movimento sindical no final daquele ano de 1917. Outro fator prejudicial à organização operária foi justamente o sentimento de patriotismo que aumentou com a entrada do país na Primeira Guerra Mundial. O Presidente Venceslau Brás pediu aos

operários que se mantinham em greve para que retornassem ao trabalho em nome da pátria. Vários operários não só voltaram ao trabalho como também organizaram “batalhões patrióticos” que visavam angariar fundos para os Aliados (DULLES, 1977, p. 61-62).

José Oiticica e outros Militantes da Causa na Sistematização das Ideias Revolucionárias

Os anarquistas, opositores da Guerra Mundial, intensificaram sua batalha contra o conflito. Se antes os motivos eram políticos, agora os militantes da teoria ácrata estavam perdendo sua força de combate.

Assim, tentaram mostrar que os objetivos da Guerra eram contrários aos interesses do trabalhador, pois era, como todas as outras, “mercantil, visceralmente guerra de banqueiros [...]. Os ‘homens do dinheiro’ é que fazem guerra, pondo à frente os discursadores e os patriotas entusiastas” (OITICICA, 1918b). O patriotismo motivado pela guerra defenderia, segundo os ideais anarquistas, uma Pátria que seria o motivo da “separação entre homens, motivo das digladiações comerciais, agrupamentos de banqueiros e capitalistas gananciosos que iludem a massa estulta para se enriquecerem às sombras de bandeiras.” (OITICICA, 1918b).

O anarquista, segundo Oiticica, não é contra a Pátria, mas contra a “Pátria pretexto de extorsão”. Com esses discursos José Oiticica e seus companheiros tentavam demonstrar aos trabalhadores que a luta proletária não era antipatriótica, que o verdadeiro sentimento de patriotismo deveria ser expresso no combate a esta guerra que promovia a separação dos homens, a morte da humanidade e a defesa de interesses de poucos, interesses mercantilistas. Propagando essa idéia, eles buscavam apoio para dar sequência à sua luta contra a sociedade burguesa, visando à deflagração da revolução que derrubaria a ordem vigente.

Se 1917 terminou com arrefecimento da luta operária, por outro lado parece ter preparado o território para que o ano de 1918 trouxesse novos ares para o movimento, reforço significativo ao imaginário da revolução como possibilidade factível. “O ano de 1918 se inicia sob o signo da vitória da Revolução Social na Rússia Soviética” (ADDOR, 2002, p. 96-98). Possivelmente empolgados com a vitória da deflagração contra a sociedade capitalista na Rússia, ainda em janeiro, anarquistas reúnem-se com o objetivo de constituir a Aliança Anarquista do Rio de Janeiro, a qual lançaria seu primeiro Boletim de informações já no mês de fevereiro. Buscando reorganizar os trabalhadores, intelectuais e militantes iniciaram a organização de outro órgão que representaria a força operária. No mês de março foi então constituída a União Geral dos Trabalhadores – UGT – nascido em substituição à FORJ.

Segundo Alexandre Samis, Oiticica estava envolvido tanto na construção da Aliança Anarquista do Rio de Janeiro quanto na da UGT e, assim, “alternava sua ação entre uma entidade organizativa e outra de classe” (SAMIS, 2007, p. 97). Essa dupla atuação era comum tanto entre os anarquistas do Rio de Janeiro, quanto de outros locais do país. Visando à derrocada total da sociedade burguesa e do Estado capitalista, acreditavam na força dos operários. Assim, defendiam que, para que a ação direta dos trabalhadores se tornasse mais eficaz, era necessário que se organizassem em sindicatos e organizações de classe (ADDOR, 2002, p. 97).

No início de 1918, durante o período de formação da Aliança Anarquista e da UGT, Oiticica, em uma possível tentativa de demonstrar que o sucesso da luta dos povos oprimidos era iminente, afirmou:

Hão de mover todas as vontades para a supressão definitiva dos

exploradores de homens, e o destino humano não sairá das conferências de chanceleres, nem das ofensivas colossais, nem das fórmulas mais ou menos fraudulentas de jurisconsultos e chefes da nação; a de irromper dos soviets, dos sindicatos libertários, das agremiações dos proletários, porque agora a dor humana, avolumada com os morticínios gigantescos, as tragédias formidáveis destes três anos tem para dirigir-lhe os ímpetos de reivindicação a essa consciência que o século XIX nos legou, e vai ser, no século XX, a luz guiadora da humanidade em marcha (OITICICA, 1918c).

Nesse período, os soviets já haviam conseguido derrubar a autocracia russa. Ao citá-los, Oiticica buscava, certamente, incentivar os sindicatos libertários e as agremiações dos proletários brasileiros ao levante também contra os “exploradores de homens” e não só em prol de melhorias trabalhistas. Tinha como guia a consciência nascida no século XIX, na qual, possivelmente, se referia à teoria anarquista. Pode-se notar também a ênfase dada ao impacto causado pela Grande Guerra, que seria crucial para a insurreição dos povos oprimidos contra os responsáveis por seus males.

Segundo Bartz, o movimento operário, no final de1918, dava mostras de ter retomado suas forças,

No Rio de Janeiro a Aliança Anarquista, [...], onde militavam importantes figuras como Astrojildo Pereira e José Oiticica, decidiu preparar uma insurreição para derrubar o governo e instalar uma República Soviética de Operários. O plano era deflagrar uma greve revolucionária, invadir o Palácio Presidencial e tomar a Intendência de Guerra, para armar os trabalhadores e controlar o Rio de Janeiro (BARTZ, 2008, p. 41).

A construção simbólica, pautada num imaginário temporalmente localizado – o contexto de lutas do final da década de 1910 e, principalmente, a vitória dos soviets russos – estaria prestes a ser, também, territorialmente consolidada.

Conflitos, Agentes e as Articulações à Apropriação Territorial

A deflagração da insurreição se deu no dia 18 de novembro de 1918, sendo preparada por Oiticica e Astrojildo, tendo contado, ainda, com a importante participação de Manuel Campos, Agripino Nazaré, Ricardo Correia Perpétua e Elias Ajus, um agente da polícia infiltrado no movimento.

A tomada da Rússia pelos soviets, blocos compostos por soldados e trabalhadores, inspirava os anarquistas brasileiros. A presença de um tenente do Exército, portanto, o qual afirmava que também compartilhava das ideias que visavam à derrubada do governo, agradava muito aos organizadores deste movimento. Nos jornais operários eram correntes tentativas de arregimentar as forças militares para a causa operária (LAMOUNIER, 2011). O exemplo russo trazia a certeza da necessidade da união destas classes. Isso talvez fizesse não parecer ingênua a crença de que era possível levar as ideias revolucionárias para dentro dos quartéis. Então, possivelmente inspirados nos soviets e tendo como exemplo também as greves da Cantareira, Oiticica e seus camaradas aceitaram o Tenente Elias Ajus em seus planos.

A greve da Companhia Cantareira e da Viação Fluminense eclodiu em agosto do mesmo ano da insurreição e paralisou barcas entre Rio e Niterói. Niterói parou completamente e as autoridades novamente apelaram para a repressão (BANDEIRA, 1980, p. 116). Contudo,

quando a força militar apareceu para sufocar o movimento grevista, parte dos soldados passaram para o lado dos trabalhadores e lutaram contra seus colegas de farda. Como saldo deste combate, dois soldados perderam a vida defendendo a classe operária. Esses acontecimentos certamente influenciaram os organizadores do movimento que se deflagraria na segunda quinzena do mês de novembro de 1918.

As palavras de Everardo Dias, importante militante da causa operária naquele contexto, pode esclarecer melhor quais eram os fatos que instigavam os desejos revolucionários e davam certeza de que a batalha contra o Estado seria vitoriosa.

Nós sabíamos, e os acontecimentos o haviam comprovado na Europa, que a possibilidade de implantação de um governo de estrutura socialista em um só país, após ter quebrado a resistência do capitalismo monopolista, não se daria forçosamente num país de maior florescimento industrial, mas naquele em que o proletariado contasse com forças ou aliados poderosos entre a massa popular descontente, [...]. Seria o agravamento das condições em que viviam os trabalhadores que provocaria a insurreição de maneira catastrófica. No Brasil, principalmente a situação tornara-se muito séria e vinha agravando-se de dia para dia. [...]. As forças armadas estavam também exacerbadas por lutas intestinas. Ainda era recente a “questão dos sargentos”, que por um triz não deu com o governo no chão [...]. Na Marinha continuava viva como uma chaga a lembrança do massacre cruel do Satélite e da Ilha das Cobras, [...]. Ora, quase todos os marinheiros expulsos dos quadros da Armada haviam-se proletarizado [...]. Tinha sido elaborado e discutido um programa pronunciadamente socialista e que seria o manifesto com que se apresentaria ao povo, visando à eliminação de toda a especulação, castigo exemplar aos exploradores da miséria do povo, além da nova estrutura política que a situação do momento exigia (DIAS apud BANDEIRA, 1980, p. 119- 120).

É bem provável que Oiticica e seus camaradas não tivessem uma visão muito diferente do contexto da época. Organizando assim um levante que visaria, segundo a versão oficial apresentada no inquérito policial, a derrubada do Estado e seus representantes.

Grande parte da narrativa sobre a organização do movimento que será feita aqui se baseia nos depoimentos encontrados nos autos do inquérito instaurado pela polícia depois de debelada a tentativa insurrecional de 1918. Os depoimentos estão também disponíveis no livro de Bandeira, “O ano vermelho: A Revolução Russa e seus reflexos no Brasil” (1980).

Segundo o chefe da seção de Segurança Pública e Ordem Social, da Inspetoria de Investigações e Capturas, foi por fins do mês de outubro que se iniciaram as reuniões noturnas na casa do professor Oiticica. Nelas estavam sempre presentes Manuel Campos, João da Costa Pimenta, Astrojildo Pereira, Álvaro Palmeira, Carlos Dias, José Romero, José Elias e mais alguns (BANDEIRA, 1980, p. 305).

Oiticica e seus camaradas também contavam com o apoio dos líderes dos trabalhadores das fábricas de tecidos, Manuel Castro e Joaquim Morais (DULLES, 1977, p. 67). A adesão da União dos Operários em Fábricas de Tecidos – UOFT – era crucial aos anseios dos militantes devido a sua extrema organização. “O proletariado fabril – e em particular, os operários têxteis – vai constituir a espinha dorsal do ascenso operário ao longo de toda a conjuntura de

1917 a 1920, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro”(ADDOR, 2002, p. 99). Outra entidade que apoiava o levante e mantinha reuniões em sua sede, era a União da Construção Civil – UCC. A cargo de levar a ideia revolucionária às forças militares, ficou Ricardo Corrêa Perpétua devendo, assim, entregar os panfletos na Vila Militar (BANDEIRA, 1980, p. 306).

O Tenente Ajus era vizinho de Ricardo Corrêa Perpétua e estava presente no momento em que este recebeu os panfletos. Aproveitando sua desatenção, retirou um panfleto e, ao tomar conhecimento do teor do assunto, foi logo ao Quartel General, sendo incumbido de acompanhar de perto a movimentação daqueles “agitadores”(BANDEIRA, 1980, p. 307). Segundo o Tenente Ajus, logo que foi incumbido de se infiltrar entre os organizadores do possível movimento insurrecional, voltou para casa e fingiu sua insatisfação com a forma de governo vigente,numa conversa com Corrêa Perpétua. Assim, o anarquista, ao saber da vontade de Ajus de substituir o governo por um semelhante ao da Rússia, convidou o Tenente a comparecer a uma reunião que trataria deste tema.

No dia seguinte, os dois foram à casa do professor para uma das reuniões. Após esta, ocorreram mais algumas, a maioria na casa de Oiticica. Seguindo seu depoimento, Elias Ajus afirma que nestas reuniões foram tratados primeiramente assuntos que informavam sobre o porquê e como se daria o levante. Assim declara,

O Prof. Oiticica começou expondo [...] que o governo atual não satisfazia mais as aspirações nacionais e que se tornava mister criar-se um governo genuinamente popular, como se fizera na Rússia, de representantes de operários e soldados; que entre os operários o movimento já estava completamente organizado, dispondo ele e seus companheiros de todos os tecelões e metalúrgicos dispostos a tudo, já armados com grandes quantidades de bombas e dinamites, de explosão por contato, aguardando apenas que fosse feita a designação do dia para a greve geral descendo os operários de Botafogo que se aproximariam do palácio do Catete e em momento dado matariam a sentinela e invadiriam o palácio, aprisionando o presidente e içando uma bandeira vermelha enquanto no mesmo momento, outros operários se reuniriam no Campo de São Cristóvão onde seria fácil o ataque a Intendência da Guerra a fim de se apossarem de armas, munições e equipamentos, enquanto que os operários de Bangu em número de dois mil saltariam em Realengo, se apoderariam das armas e munições existente na fábrica de cartuchos, que incendiariam partindo para esta cidade [...]; que lembrava ainda o Prof. Oiticica que o ataque devia ser combinado para a hora em que estivessem funcionando a Câmara e o Senado, como às duas horas da tarde, para serem presos todos os seus membros e finalizou por dizer ao declarante (Ajus) que contava com ele para remover dificuldades com elementos do Exército, ficando os dois, isto é, o professor e o declarante como chefes do movimento (BANDEIRA, 1980, p. 309)

Aproveitando-se da posição destacada no grupo de insurrectos, Ajus recomenda, como mais conveniente, o encontro de todos no Campo de São Cristovão partindo, de lá, para a tomada da Intendência da Guerra e, então, dando sequência ao plano. Esta sugestão foi aprovada na reunião seguinte, realizada na Rua do Carmo, em uma sala onde Oiticica ministrava cursos. Neste mesmo encontro acertaram a data em que se realizaria o levante, dia 18 de novembro, às dezesseis horas, no Campo de São Cristóvão. Com objetivo de repassar o plano, uma

última reunião foi marcada. Seria realizada na residência do professor, na noite que antecederia a ação. Nesta reunião, ficou combinado que Oiticica se encontraria, do meio-dia até as quatorze horas, no segundo andar do prédio da Rua da Atlântica, para realizar os últimos exames do movimento.

Na madrugada, após a última reunião, Ajus encontrou-se com a alta cúpula do Exército e denunciou todo o plano. Assim, as forças militares prenderam, por volta das duas horas da tarde do dia 18 de novembro, no lugar em que estava marcado para ser realizado o exame do levante, Oiticica e “os cabeças” do movimento. Entre estes estavam Astrojildo Pereira, Manuel Campos, Carlos Dias, Álvaro Palmeira, José Elias da Silva, João Pimenta e Agripino Nazaré (ADDOR, 2002, p. 126). Ricardo Corrêa Perpétua fora preso nas imediações do lugar marcado.

Sem a organização e direcionamento dos principais representantes do levante, os trabalhadores que entraram em greve iniciaram o conflito com as Forças Armadas no Campo de São Cristóvão. A peleja, no entanto, se deu de forma desorganizada, sendo facilmente vencida pelos militares. As greves continuaram, mas, já no fim de novembro, os trabalhadores, em sua maioria metalúrgicos e tecelões, retornaram às fábricas (DULLES, 1977, p. 71).

Após ser detido na Rua Atlântica, Oiticica foi levado para a Brigada Policial, permanecendo incomunicável. Somente em março de 1919 foi encerrado o processo criminal e José Oiticica foi acusado e condenado pelo crime de atentado, sendo considerado a liderança máxima do movimento. Agripino Nazaré, Álvaro Pimenta, Ricardo Corrêa Perpétua, Astrojildo Pereira, Carlos Dias, Manuel Campos, João da Costa Pimenta, Gaspar Gigante, Manuel Castro, Joaquim Moraes, Manuel Domingues, Oscar Silva e Adolfo Buste, foram acusados como co- autores (ADDOR, 2002, p. 129). Somou-se o total de 78 prisões, os condenados brasileiros seriam desterrados para o extremo Norte do país ou Fernando de Noronha, os estrangeiros seriam deportados (CORREIO DA MANHÃ, 1918). José Oiticica seguiu, juntamente com sua esposa e filhos, para Alagoas, terra natal de seu pai.

Reflexos territoriais do Conflito: manutenção de condições dominantes e exclusão dos agentes revolucionários

O depoimento de Ajus permite entender um processo, pautado na intenção insurrecional anarquista, que, a partir de práticas sociais relacionadas à luta de classes, visava uma ocupação territorial específica tanto física quanto política da então Capital Federal. Este processo conduziria, consequentemente, a transformações radicais no sistema social vigente – a derrubada anarquista do Estado capitalista. Consistiria numa reconfiguração de valores que lembra a ideia de produção e reprodução espacial a partir de praticas sociais determinadas tratada por David Harvey (HARVEY, 1994).

Mais do que transformação, a mudança radical de valores resultaria na criação de um novo território, com novos significados, imbuídos de simbolismos relacionados a uma ideologia de gestão alternativa às estruturas já estabelecidas.

A intervenção militar, impedindo a concretização da ideologia ácrata, presente no imaginário do operariado, conforme as proposições de Oiticica, Astrojildo e demais militantes da “sublime teoria”, resultou em duas condições concernentes ao território disputado. Por um lado o esgotamento da greve, com o desmantelamento organizacional da insurreição, garantiu a manutenção do território político-espacial dominante. Sem atendimento algum às revindicações, os trabalhadores voltaram às mesmas fábricas, ao mesmo regime de trabalho, regido sob o mesmo sistema contra o qual reclamavam. Por outro, a prisão de Oiticica e dos insurrectos considerados co-autores do levante, anulou a participação destes agentes, ao

menos por determinado período, no território sobre o qual tentaram intervir. Desterros e deportações, bem como a manutenção do regime trabalhista configuraram o domínio das práticas e estruturas já estabelecidas sobre a possibilidade de consolidação de novos significados.

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