Resumo

Brasília é aqui avaliada não como a concretização da cidade modernista, mas como artefato tecnológico permeado de intenções políticas e sociais. O prisma colocado para esta análise é justamente como esse conjunto de relações, favoráveis ou contrárias à mudança da capital colaboram na transformação do espaço social até se atingir um momento de mudança que marcou a história de uma sociedade.

Palavras-chave: Brasília, Scot, terrirório, Plano Piloto

Abstract

In this article, Brasilia is studied not as an achieve of the modernist city, but as a technological artifact permeated by social an political intentions. The prism placed for this analysis is precisely how this set of relationships, favourable or contrary to transfer the capital collaborate in the transformation of social space until a moment of change that marked the history of a society.

Keywords: Brasilia, Scot, territory, Plano Piloto

Introdução: o artefato

O Plano Piloto de Brasília é a materizalização dos princípios do urbanismo moderno. E muito já foi dito a respeito. Este artigo tem o foco no que não foi dito, o que está por trás da cortina do espetáculo da criação da Capital Federal.

Para isto, este artigo apresenta um estudo baseado nos conceitos e métodos da construção social das tecnologias (SCOT), ou análise sócio-construtivista, onde o planejamento urbano é entendido como tecnologia e a cidade (espaço físico), como artefato. Dentro deste conceito, coloca-se Brasília sobre o prisma dos estudos sociais das tecnologias, na tentativa de avaliar os aspectos sociotécnicos que conformaram um cenário propício à construção da nova capital Federal e os fatores que levaram à escolha do projeto vencedor do Plano Piloto de Brasília, caracterizando-o como símbolo da transformação de um país rural para um país moderno (industrial).

O artigo estrutura-se em três partes: (1) breve contextualização sobre as transformações na base econômica do país que, por meio da industrialização inseriu novas formas de organização da sociedade; (2) como estas transformações acarretaram na concretização da transferência da capital federal, projeto que permeou as intenções políticas desde o tempo do império, bem como na escolha do projeto vencedor; e (3) aproximação destes elementos à “popularização” de artefatos tecnológicos permitem estudar como as relações sócio-econômicas, com suas contínuas e pequenas transformações, acabam eclodindo num fato que marca a história.

A ferramenta

A cidade como a dimensão construída de um princípio urbanístico visando a transformação social e econômica de um contexto urbano que se tornava motor de um rápido processo de industrialização é a base da análise que Aibar e Bijker (1997)

propõem para o plano de Ildefonso Cerdà para Barcelona, de 1859. Nesta análise socioténica, a cidade é entendida como artefato tecnológico, considerando que a tecnologia depende, instrinsecamente das relações de poder estabelecidas na sua formação e formatação.

Sendo assim, um artefato é produto de uma negociação intergrupal; sendo possível estudá-lo como um dos resultados possíveis. Resultado, este, estabilizado quando o artefato não apresenta problemas para nenhum grupo social relevante – sendo importante ressaltar que a própria determinação de quais são os grupos sociais relevantes faz parte do projeto, ou da análise. (Pinch e Bijker,1987)

De maneira análoga, é possível analisar Brasília, cujo plano é elaborado em uma fase de intensa industrialização e urbanização do Brasil, mas representa, também, o símbolo de um país querendo-se moderno, deixando a antiga capital federal da fase colonial para a nova capital, no centro do país, que desloca as forças políticas nacionais pela força de um ideal, e de uma forma, modernista.

À escolha do projeto vencedor do concurso aproxima-se o conceito de fechamento e estabilização apresentado por Pinch e Bijker (1987). Uma vez determinada a mudança, os anti-mudancistas não foram considerados como atores relevantes na determinação do projeto; os candangos, trabalhadores que foram ao planalto central para a construção da capital, não foram considerados como grupos sociais relevantes. Ou seja, o fechamento de um processo de construção de um artefato tecnológico implica no delineamento de quais serão considerados os grupos relevantes. No caso do concurso, a própria composição do juri antecipava a conotação da avaliação dos projetos, pois a maior parte dos integrantes apresentava bom relacionamento com Niemeyer, e 3 dos 7 integrantes eram filiados ao movimento modernista.

Industrialização, novos rumos de uma sociedade

De acordo com Williams e Edge (1996, apud KLEIN e KLEINMAN, 2002), a configuração social modela as tecnologias, e seu inverso também é verdadeiro. Nesse contexto Klein e Kleinman (2002) argumentam sobre a necessidade de se fazer a distinção entre contexto e conteúdo, pois sem esta, torna-se impossível entender como o “mundo social” molda os artefatos (aqui, a cidade).

Diante desta perspectiva será apresentado um panorama extremamente conciso do cenário socieconômico do Brasil desde a era Vargas até a escolha do projeto vencedor do concurso do Plano Piloto de Brasília. Esta janela temporal se deve ao fato de que, a partir do mandato do Presidente Getúlio Vargas, optou-se por uma política pró- industrial, abrindo caminho para uma reorganização da estrutura produtiva e o desenvolvimento de núcleos urbanos. Tendo, apenas no governo de Juscelino Kubitschek, a implementação da estratégia de desenvolvimento que condicionou a trajetória de crescimento econômico, passando a depender, em maior escala, da presença de capital estrangeiro nos setores dinâmicos do processo de industrialização (AREND, 2009).

Com a abertura ao capital estrangeiro, tem-se a instalação de multinacionais – principalmente do setor automotivo – e um ambiente de inovação tecnológica que passa a redefinir não só a estrutura produtiva, mas também as relações sociais.

Segundo Perez (2004, apud AREND, 2009), a cada revolução tecnológica é definido um novo modo de crescimento e emerge um novo paradigma tecno-econômico. Na base desta afirmação parece estar Lefebvre (1999), que entende o urbano como um fenômeno da cidade industrial, estando intimamente ligado ao desenvolvimento tecnológico – e vice-versa, pois não se trata de uma questão de causa e efeito, mas de coexistência complementar. Santos (2006) corrobora afirmando que a sociedade é reflexo da tecnologia em um dado momento.

A industrialização traz consigo uma nova forma de organização e entendimento do espaço. As cidades se desenvolvem interligadas com as redes tecnológicas, que são fundamentais na articulação da mão-de-obra, mercado consumidor, infraestrutura e ideal de desenvolvimento, antes ausente nas estruturas rurais (Tavares, 2004).

Neste salto modernizador, conhecido como “anos dourados”, JK proporcionou com sua política funcional desenvolvimentista1, a colonização do interior por meio de planejamento regional com vultosos investimentos na infraestrutura de energia e de transportes para viabilizar a indústria automobilística2 em implantação no país (ALCOFORADO, 2000). Tudo isso, sintetizado na construção de Brasília.

De fato, as tecnologias influeciaram o processo de expansão geográfica do Brasil, que baseou a integração nacional na estruturação do plano nacional rodoviário em conjunto com a oferta de outras infraestruturas urbanas, possibilitando o surgimento e relacionamento de novas cidades, estimulando um crescimento em cadeia. Com isso, é interessante perceber que Brasília se constituiu como polo de desenvolvimento não por concentrar uma rede de infraestrutura técnica capaz de refletir para além do seu território; mas sim por necessitar de matéria prima e alimentos durante a construção da nova capital.

“Brasília não será, no caso, uma decorrência do planejamento regional, mas a causa dele” (Costa, 1965).

A importância de entender o papel das redes tecnológicas no desenvolvimento do Brasil está no fato destas terem servido como aparato político. Seu papel principal deixa de ser o de suprir uma determinada demanda e passa a ser estrutura condicionante para a construção da identidade de um país moderno. Neste contexto, JK colocou Brasília na posição de catalisadora e símbolo do desenvolvimento, não só da economia como da piscicologia nacional brasileira.

Controvérsias: Mudancistas x Antimudancistas

Pinch e Bijker (1987) salientam que o mundo social é constituído de estruturas historicamente estabelecidas que, em qualquer ponto no tempo, confrontam atores diversos. Ou seja, todo momento histórico é resultado da interação entre poder e

1 Para este estudo a política econômica do governo JK não tem peso na análise, pois mesmo diante do aumento da inflação e do desequilíbrio das contas externas, o Plano de Metas e a transferência da capital não foram deixados de lado (LEOPOLDI, 1991).

2 Os pacotes de investimento na indústria de bens de capital e de bens de consumo duráveis pesados, como a automobilística, configuraram um verdadeiro ciclo econômico, crescendo 7% ao ano (período avaliado entre 1956 e 1961), redefinindo o perfil tecnológico do conjunto da indústria brasileira (IPEA, 2010).

artefatos, onde os grupos relevantes (poder) trabalham para alcançar seus objetivos, resultando numa forma de desenvolvimento (artefato) que seja aceita como um “equilíbrio” entre as partes.

A história de Brasília sempre esteve marcada pelas relações de poder, visto que o anseio à interiorização pautado na transferência da capital federal foi um assunto político, com projetos e localização bem definida, desde os tempos do Império e oficializada na era Republicana pela Constituição de 1891, destinando área para a futura capital no centro do país. Na Constituição de 1934 estabelece-se um tom de imediatismo para a transferência da capital, mas a comissão de estudos da área é formada apenas em 19463.

Castro (1946), membro da comissão nomeada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, coloca como principal fator para localização da nova capital o povoamento brasileiro, uma vez que a grande maioria da população estava localizada na faixa litorânea. Já o “como” efetivar o projeto de transferência, iria além do planejamento; o que ele explica como oportunidade:

“No organismo da nação a capital deve funcionar como o coração ou seja, como um órgão interiorizado, bem protegido por boa armadura periférica, a desenvolver atividade fundamental, em ritmo, como se fôra bomba aspirante premente da civilização, convergindo recursos e energias da parte densamente povoada do país e econômicamente forte, a fim de projetá-los no ocidente, para desenvolvimento da parte do país de menor expressão social, política e econômica.” (Castro,1946)

Como Brasília veio a se transformar na meta síntese da política de JK desperta a atenção, uma vez que seu plano é apresentado com trinta metas, tendo sido acrescentada, posteriormente a meta 31ª: Brasília. “Uma promessa que abarcaria, na sua essência, a totalidade das demais metas, confluindo-se para a sua maior propaganda política” (TAVARES, 2004 p.86).

Conta-se que Brasília foi inserida no Plano de Metas durante um comício em Jataí, quandon um cidadão questionou se Kubitschek faria a mudança da capital conforme previsto na Constituição e este afirmou que iria cumpri-la integralmente (Couto, 2009). Diante disto, o presidente estaria comprometido a instalar a nova capital na área estipulada pela Constituição, deixando de lado a intenção de transferi-la para Minas Gerais, sua cidade e berço político.

Perante o discurso da nova capital o país se dividiu em dois grandes grupos: mudancistas, favoráveis à mudança da capital federal, e atimudancistas, contrários ao fato. Estes grupos são separados apenas como ferramenta de análise, pois muitos personagens permeiam nos dois grupos. Essa dificuldade de distinção entre os grupos

3 Ver Constituição/1891 em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm Ver Constituição/ 1934 em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm

se dá, principalmente pelo fato do discurso central ser o mesmo: o ideal de um Brasil moderno.

Para os mudancistas a transferência da capital é o meio possível de desenvolver o país e, nas palavras de Corbisier (1960, p18. apud Ceballos, 2005), de o Brasil tomar posse de si mesmo. Já os mantimudancistas apontam para o fato de que a concretização de Brasília demandaria um esforço econômico tão grande que culminaria num colapso financeiro, dando espaço para a instalação do regime comunista no país (Santos, 2008).

Diante deste cenário discursos semelhantes foram agrupados na busca de entender a trama dos atores sociais envolvidos, substancialmente, no processo de mudança da capital4.

[Mudancistas]{.ul}

“antes de ser realidade foi expectativa”

Juscelino Kubitschek é figura central na ideia de Brasília ser capaz de mudar a sociedade brasileira.

“...poderia falar em Furnas, Três Marias, estradas, Brasília, indústria automobilística, mas não é isso que importa. Amigos, o que importa é o que Juscelino fez do homem brasileiro.” (Nelson Rodrigues,20135)

Neste período, jornais e rádios são meios fortemente utilizados para a exposição das ideias, e as palavras servem como ferramenta de “criação” dos imaginários, seja ele mudancista ou antimudancista. Neste sentido, Nelson Rodrigues destaca-se na posição de defensor da nova capital. A mídia mudancista tinha foco principalmente no que Israel Pinheiro denominou ritmo Brasília/espírito Brasília (Santos, 2008). Quanto ao ritmo não se falava nos ininterruptos turnos de trabalho, mas sim num país voltado ao futuro, no qual aqueles brasileiros estavam fazendo história.

“Um grande problema de época era que quando agente acordava, tudo na rua já tinha mudado. (...) Era uma loucura maravilhosa.” 6(Antônio Luiz Souza Mello, apud Santos 2008)

O espírito Brasília pautava-se na idealização da nova capital como força motriz do desenvolvimento e unificação nacional e como marco de interrupção do antigo, onde “pela primeira vez na história do Brasil o mundo urbano sobrepuja o rural em termos de imaginário da sociedade brasileira” (Oliveira, apud Santos, 2008).

4 Estudo pautado nas dissertações de Viviane Gomes de Ceballos (2008) e Michelle dos Santos (2008).

5 Torna-se figura importante para os mudancistas, pois além de apoiar a transferência da

capital, rompe com a UDN (partido de maior representação antimudancista) votando e apoiando JK.

6 Trecho do artigo “Eles viram Brasília nascer. O começo é sempre difícil”, publicado na

revista Querida. Brasília é um assunto que interessa a mulher.

“Brasília é seu ato de expressão, é o Brasil enquanto símbolo. Construí-la é menos modificar o Brasil do que fazê-lo consciente de si mesmo” (Coelho, 1989, apud Ceballos,2005).

Argumentos de segurança7 à Corte e conquista territorial foram amplamente utilizados para a justificativa de transferência da capital, mas a criação do imaginário mudancista precisava de mais, precisava sustentar a idéia de que o Rio de Janeiro não tinha estrutura para ser a capital deste país moderno que estava nascendo.

O Rio de Janeiro tinha histórias e costumes. Brasília, o sonho da modernidade. Para deixar de ser apenas sonho, foi criada uma demanda: a modernidade do Brasil passa por Brasília! Não havia outro meio, para os mudancistas, de desenvolver o país senão pela transferência da capital.

Mudancistas mostraram que Brasília, apesar de ser uma idéia, já estava carregada de história; que todas as expedições técnicas, enviadas ao longo dos anos para a definição da futura capital do país mostram que a sua construção não foi um ímpeto governista ou “uma improvisação, mas o resultado de um amadurecimento” (Silva 1971, apud Ceballos, 2005).

[Antimudancistas]{.ul}

Não vou para Brasília

Eu não sou índio nem nada (...),

Não vou, não vou p’ra Brasília, Nem eu nem minha família,

Mesmo que seja p’ra ficar cheio da grana; A vida não se compra

Mesmo difícil e tão cara

Quero ser pobre, sem deixar Copacabana.8

Porque Brasília não? Os antimudancistas eram adeptos a ideia da permanência do Rio de Janeiro como Distrito Federal e na formação deste imaginário colocaram Brasília como um absurdo econômico e piada nacional.

Carlos Lacerda, jornalista lider do partido UND (União Democrática Nacional) e crítico absoluto da política de JK e da mudança da capital, não poupou esforços para criticar e ridicularizar o fato. Apontou diversos elementos ao longo da história do país que fizeram com que o Brasil ficasse “atrasado em relação ao seu futuro”, mas que “neste momento, o que ameaça atrasar a marcha do Brasil é precisamente a ânsia inconsiderada de fazer cinquenta anos em cinco”. (Lacerda, 1958, apud Santos, 2008)

No imaginário antimudancista figura-se uma nostalgia antecipada em relação ao Rio de Janeiro; como se a cidade fosse sucumbir, fisicamente, ao processo de mudança. Essa nostalgia é poetisada, principalmente por Carlos Drummond de Andrade:

7 Vulnerabilidade de uma possível invasão pela costa; surto de febre amarela no RJ, evidenciando que aquele não era o cenário propício para uma capital federal.

8 Sambinha criado por Bily Blanco (Santos, 2008).

“Não, Maria, não venhas agora ao Rio. Os edifícios estão caindo, e é possível que aos chegares já não encontres aquele onde costumavas pousar, nem os rostos amigos que nele te acolhiam”. (Carlos Drummond de Andrade,1957)

Mesmo com a inauguração da capital em 1960 e reconhecendo que não haveria como cogitar a volta da capital, pois seria um fracasso mundial (Ceballos, 2005); as críticas dos antimudancistas não silenciaram e Carlos Lacerda tentou adiar a sua transferência, mas teve seu projeto negado diante de um Crongresso de maioria mudancista (Santos, 2008).

Muito do que se falava era sobre a precariedade da vida urbana, numa cidade esqueleto que repelia pessoas civilizadas, inaugurando uma época de infelicidade (Santos, 2008). Já os mudancistas reconhecem que havia muito a realizar em Brasília, mas sua campanha propagantista consiste em exaltar a monumentalidade do empreedimento.

[Lucio Costa]{.ul}

Mesmo sendo impossível desvincular Brasília à figura de JK, a dupla dos arquitetos Lucio Costa e Oscar Niemeyer, suas vertentes conceituais e ideológicas são imprescindíveis para a leitura desta cidade símbolo.

Analisando as obras de Lucio Costa, percebe-se uma ruptura drástica no modo de projetar9 que pode ser associada ao fato de que estudou as obras de Le Corbusier, tomando-as como base na fundamentação da arquitetura modernista brasileira; participou das conferências ministradas por Le Corbusier – em 1929 e 1936 – e o desenvolveu o projeto do Ministério da Educação e Cultura no Rio – 1936 a 1943 – em parceria com o arquiteto e tendo Oscar Niemeyer (na época aluno de Lucio Costa)

no grupo (HOLSTON, 1993).

A estrutura do Plano Piloto10 ressalta a intenção uma nova relação de sociedade, onde diferentes camadas sociais dividiriam o espaço urbano em convivência harmoniosa. Porém, ambos os arquitetos concordavam que a capacidade da arquitetura modernista brasileira estava além da estrutura social brasileira, fazendo com que os arquitetos, segundo Niemeyer, não tivessem outro caminho a não ser servir a elite ou um governo (HOLSTON, 1993). Diante disso a leitura do plano se torna menos dramática ao nos depararmos com um bairro, ao longo das margens do Lago Paranoá, com amplos terrenos

destinados à classe alta da população.

”(...) E assim surgiu Brasília. Um controle absoluto não deixa o rico extravagante humilhar com sua opulência financeira o vizinho pobre, mas de bom gosto. Dá-lhe entretanto, o direito de exibir tida a sua plenitude em lugares afastados, terrenos mais caros, como são as residências à margem do Lago”

9 Até o final da década de 1920 seus projetos residenciais, apesar de apresentar uma rigidez na simetria dos elementos, têm um forte caráter colonial. Já no início da década de 1930 seus projetos passam a apresentar uma linha contemporânea, com a supressão dos telhados aparentes e a utilização de elementos puros na composição formal.

10 Ver BRAGA, Milton. O Concurso de Brasília: sete projetos para uma capital.

(Correio Brasiliense, 27 de Março de 1963, apud

Ceballos, 2005).

As cidades satélites, previstas no plano para abrigar o excedente populacional de Brasília, funcionando como cidades autossuficientes com certa dependência com o plano piloto; foram agregadas ao plano antes de sua conclusão11.

Estes elementos, a princípio desconexos à ideologia do plano, podem ser aproximados ao que Graham (2000) coloca como “erros” intencionais de projeto; ou seja, formatados para atender às demandas dos grupos sociais dominantes.

Quando aprofundamos a leitura do plano percebemos que o conjunto formal se utiliza do espaço para regular a vivência social. Essa imposição constante de como se apropriar do espaço urbano, impossibilita o que Milton Santos (1982) denomina de rugosidades, que são as sobreposições (transformações) espaciais que ocorrem naturalmente nas cidades, formando sua história.

“As práticas espaciais regulam a vida – não a criam. O espaço não tem poder em ‘si mesmo’, nem o espaço enquanto tal determina as contradições espaciais. Estas são contradições da sociedade (...) que simplesmente emergem no espaço, ao nível do espaço, e assim engendram as contradições do espaço” (LEFEBVRE, 1974).

Fechamento: o Concurso

“Um dia, planejou-se uma cidade no Brasil para ser a sua Capital (...)Foi então feito um concurso, com a participação de urbanistas e arquitetos de todo o mundo. Escolheram o melhor, ninguém diz o contrário. E assim surgiu Brasília (...)”12

No final do primeiro ano do seu governo, JK aprovou o estatuto da Novacap13 com três grande ações: localizar, projetar, e executar a futura capital14. Oscar Niemeyer, escolhido para coordenar esse processo, convida Le Corbuier para divulgar o CIAM (Congrès Internationaux d’Architecture Moderne) e este se interessa em desenvolver o Plano Piloto para nova capital.

11 Para construção de Brasília foram criados dois núcleos: administrativo (sede da Novacap) e comércio, indústria e serviço (núcleo Bandeirantes - 1956) que tinha caráter temporário, mas acabou sendo consolidado. Outras cidades como Sobradinho (1960) e Guará (1969) foram criadas com o acompanhamento de Lucio Costa. – para saber mais ver: CEBALLOS, Viviane Gomes de. “E a história se fez cidade...”: a construção histórica e historiográfica de Brasília.

12 “Arquitetura de Brasília” Correio Brasiliense, 27 de Março de

  1. Apud Ceballos, 2005.

13 Companhia Urbanizadora da Nova Capital, na qual o presidente tinha total autonomia e controle sobre as decisões.

14 Lei Federal n. 2874, 19/09/1956. http://www2.camara.gov.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei- 2874-19-setembro-1956-373749-publicacaooriginal-1-pl.html

Kubtischek, considerando um grande erro ceder o projeto, símbolo do nacionalismo, a um estrangeiro, convida Oscar Niemeyer15; que nega a elaboração do plano urbanístico, mas aceita a responsabilidade de projetar os edifícios governamentais e propõe o concurso nacional para elaboração do Plano Piloto16 de Brasília (TAVARES,2004).

A Novacap ficou responsável pela elaboração do edital e o júri foi composto por um integrante do IAB (Paulo Antunes Ribeiro), dois arquitetos estrangeiros (William Holdorf – Inglaterra, André Sive – França), um integrante da Associação dos Engenheiros (Luiz Hildebrando Horta Barbosa), dois integrantes do setor de urbanismo da Novacap (Oscar Niemeyer e Stamo Papadaki – EUA) e o presidente da Companhia (sem direito a voto).

O júri, nas palavras de Holdorf, estava avaliando “um concurso de idéia de cidade administrativa e não um concurso de detalhes”; apesar da necessidade de diversos pontos exigidos no edital. Diante desta postura, foram selecionadas dez propostas. Holdorf, separou os candidatos em dois grandes grupos: aqueles onde predominava a idéia de uma nova capital e aqueles que se preocupavam com os detalhes. No primeiro grupo tem-se a melhor representação com Lucio Costa; no segundo grupo destaca-se o projeto do escritório M.M.M. Roberto (Holston, 1993).

Segundo Paulo Antunes Ribeiro (membro do júri) a segunda fase de análise foi feita de maneira superficial pois os “aliados” de Niemeyer já haviam escolhido o projeto de Lúcio Costa e pouco se interessaram em avaliar detalhadamente o restante dos projetos. O representante do IAB, não concordando com o encaminhamento da análise se retira da comissão julgadora17.

A genialidade de Lúcio Costa na idealização do desenho de Brasília não é contestada; mas a escolha de sua proposta foi facilitada pelo ideário modernista que, apesar de na década de 1950 ter passado por diversas revisões conceituais, ainda representava a esperança da harmonia entre a cidade, cidadãos e novas tecnologias, pois via no urbanismo uma alternativa para a correção dos conflitos das cidades industriais (BENEVOLO,1998).

Outra hipótese que pode ser levantada, na tentativa de entender a escolha do desenho de Brasília, é a de que, ao apresentar um projeto de formulação pura e simples, Lúcio Costa foi o único a criar condições para a concretização da cidade em três anos (necessário para o plano de metas do governo JK). E, ao dar a posição exata dos edifícios e apresentar as proporções para sua relação com o entorno, possibilitou a agilidade necessária para Oscar Niemeyer projetar e, por meio da Novacap, gerenciar sua implantação imediata (EL-DAHDAH,2010).

Ao fazer uma aproximação do contexto social e do produto técnico final (Plano Piloto), fica evidente que as inovações técnicas e organizacionais não podem ser

15 Niemeyer, já havia projetado o complexo da Pampulha a pedido de JK numa ação política de revitalização e valorização imobiliária.

16 Foi mantido o termo “Plano Piloto” usado por Le Corbusier para denominar o desenvolvimento não de um plano de urbanismo completo, mas uma ideia geral de ocupação espacial.

17 Ver carta solicitada por Israel Pinheiro (presidente da Novacap) ao representante do IAB

para que este explicasse o motivo da sua retirada. Em: Tavares, Jeferson. Projetos para Brasília e a cultura urbanística nacional.

consideradas neutras (Aibar e Bijker,1997); uma vez que as relações de poder definiram claramente o desenvolvimento do país na década de 1950, tendo um Estado forte que, por meio do desenvolvimento tecnológico impôs novos padrões de configuração da sociedade.

Desta forma o estudo apresentado buscou evidenciar as relações de poder, caracterizadas pelo grupos de interesse, capazes de inserir novas realidades a fim de definir novos rumos e novas formas de relações sociais; bem como a necessidade de se ter um ambiente propício para que estas alterações sejam possível e/ou tenham o impacto previsto.

Aqui, Brasília não foi considerada apenas um artefato, mas sim, como colocam Aibar e Bijker (1997), como uma ferramenta na construção de novos limites entre social e técnico e, portanto, na construção de novas formas de relações sociais.

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