Resumo

A inquietação em busca de reflexões sobre a produção do espaço urbano por meio de projetos de habitação de interesse social se deve ao fato de que é comum a constatação sobre a falta de planejamento e critérios técnicos com que o setor privado, ávido pelo lucro fácil e imediato, produz nossas cidades. Porém, os altos investimentos na habitação feitos pelo BNH e agora pelo PMCMV mostram que uma parcela significativa das cidades poderia apresentar excelente qualidade urbanística e ambiental se o Estado, financiador dessas ações, valorizasse o projeto. Grande parte do território das cidades brasileiras já foi estruturado por projetos de habitação de interesse social ou pela sua ausência. Segundo Bonduki (1998) as novas relações de trabalho após a abolição da escravatura (1888) geraram forte incremento demográfico e a iniciativa privada foi o primeiro agente que construiu habitação econômica. Os modelos de habitação desenvolvidos pelos empreendedores foram o cortiço e as vilas operárias. Na década de 1940, a crise dessa produção rentista fez com que o trabalhador construísse por conta própria nas franjas das cidades gerando bairros populares e favelas. Também a partir da década de 1940, o poder público percebeu que a habitação era uma questão social e ofereceu empreendimentos que apresentavam soluções de “moderna” arquitetura até projetos de baixa qualidade carimbados por todo território nacional. Nossas cidades têm em seu território a marca dessas experiências. Essa cicatriz é o que nos interessa. Interessa, portanto, aprender com esses processos. Para tanto vamos analisar paisagens de empreendimentos habitacionais selecionando diferentes concepções: a habitação feita pelo setor privado, pelo Estado e pelo morador.

Palavras-chave: habitação de interesse social, paisagem, espaço urbano, cidade

Abstract

The anxiety in search of reflections on the production of urban space through projects of social housing is due to the fact that it is common the observation about the lack of planning and technical criteria by the private sector on producing our cities. However, the high investments made by BNH and nowadays by the PMCMV show that a significant portion of the cities could present excellent urban and environmental quality if the state valued the project. Much of the territory of the brazilian cities have been structured by social housing projects or by its absence. According Bonduki (1998) the new labor relations after the abolition of slavery (1888) generated strong demographic growth and the private sector was the first agent who built affordable housing. The housing models developed by entrepreneurs were the tenement and working villages. In the 1940s, the rentier production crisis forced the worker to build on their own on the fringes of cities generating popular neighborhoods and slums. Also from the 1940s the government realized that housing was a social issue and offered solutions of "modern" architecture and low quality projects throughout the country. Our cities have in their territory the mark of those experiences. This scar is what interests us. We are concerned, therefore, in learn from these processes. For this we will analyze landscapes of housing

developments selecting different concepts: housing made by the private sector, by the state and by the resident.

Keywords: social housing, landscape, urban space, city

Introdução

O presente artigo pretende refletir sobre a paisagem urbana criada a partir de Programas Habitacionais de Interesse Social no Brasil. Para tal análise foram eleitos ambientes onde a implantação ou a ausência de programas habitacionais foram determinantes para a produção do espaço urbano.

O arquiteto e urbanista Nabil Bonduki (1998) em “Origens da habitação social no Brasil - Arquitetura Moderna, Lei do inquilinato e Difusão da Casa Própria” nos dá o panorama de como as cidades brasileiras foram estruturadas pelos projetos de habitação de interesse social ou pela sua ausência. Segundo o autor, as novas relações de trabalho após a abolição da escravatura (1888) geraram forte incremento demográfico nas maiores cidades brasileiras. A iniciativa privada foi o primeiro agente que construiu habitação para baixa renda. Os modelos de habitação desenvolvidos pelos empreendedores foram o cortiço (habitação coletiva para aluguel) e as vilas operárias. Na década de 40, a crise dessa produção rentista fez com que o trabalhador construísse por conta própria nas franjas das cidades gerando bairros populares e favelas. Também a partir da década de 40, o poder público percebeu que a habitação era uma questão social e ofereceu empreendimentos que apresentavam soluções de “moderna” arquitetura até projetos de baixa qualidade carimbados por todo território nacional. Nossas cidades têm em seu território a marca dessas experiências. Essa cicatriz é o que nos interessa ou melhor interessa aprender com esses processos e extrair o que podemos melhorar, retirar, acrescentar e quais são os elementos que são imprescindíveis para criar cidades mais saudáveis, ou seja, legíveis, diversificadas, com boa inserção no contexto urbano, com paisagismo adequado e equipamentos públicos de qualidade.

A inquietação em busca de reflexões sobre a produção do espaço urbano por meio de projetos de habitação de interesse social se deve ao fato de que é comum a constatação sobre a falta de planejamento e critérios técnicos com que o setor privado, ávido pelo lucro fácil e imediato, produz nossas cidades. Porém, os altos investimentos na habitação desde 1964 nos mostram que:

[...] uma parcela expressiva do espaço urbano brasileiro poderia apresentar uma excelente qualidade urbanística e ambiental, se esta intervenção, financiada pelo Estado e produzida pelo setor formal da construção civil, tivesse sido realizada valorizando o projeto. No entanto, predominam – salvo raríssimas exceções – projetos medíocres, uniformes, monótonos e desvinculados do meio físico da cidade, uma intervenção urbanística muito inferior aos IAPs. (BONDUKI, 1998, p.318)

Bonduki escreveu esse texto dez anos antes do lançamento do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) que têm como objetivo de garantir o direito à moradia para a população brasileira. Os vultosos recursos investidos e a meta de construção de 2 milhões de unidades nos dão a certeza que grande parte do espaço urbano construído nas cidades são fruto dessa política habitacional. Nos cabe, então, neste artigo analisar

algumas paisagens, criadas pela construção de empreendimentos habitacionais para a população de baixa renda, percebendo erros e acertos para refletir sobre estratégias para a construção de cidades mais saudáveis.

A cabeça pensa onde o pé pisa

Para Cullen (1996, p.195) existem duas formas de se projetar um ambiente. A primeira: Objetivamente, “através do senso comum e da lógica baseada em princípios benevolentes da saúde, amenidade, conveniência e privacidade”. Projetar “empregando os valores subjetivos daqueles que habitarão o mundo criado”, seria uma segunda forma que, para o autor, não exclui a primeira, complementa.

Essa lição é uma das formas de interpretar a expressão “A cabeça pensa onde o pé pisa”, muita usada em materiais de formação do MST, talvez cunhada por Frei Beto e difundida por Leonardo Boff (1997).

A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação. (BOFF, 1997, p.5)

A segunda lição é que o ambiente construído é um dos fatores determinantes no desenvolvimento humano e intelectual. Não há dúvida que elementos como funcionalidade, usabilidade, sensoraliedade, diversidade, identidade e a própria qualidade da infraestrutura configuram a distinção e o reconhecimento dos ambientes em suas múltiplas funções propiciando o “encontro de pessoas e serviços tendente a gerar um calor cívico” (CULLEN, 1996, p.137). Fica claro que, para o autor, a relação entre os edifícios e o ambiente em que eles estão inseridos é de fundamental importância.

Se me fosse pedido para definir o conceito de paisagem urbana, diria que um edifício é arquitectura, mas dois seriam já paisagem urbana, porque a relação de dois edifícios próximos já é suficiente para libertar a arte da paisagem urbana. [...] Multiplique-se isto a escala de uma cidade e obtém-se a arte do ambiente urbano; as possibilidades de relacionação aumentam, juntamente com as hipóteses a explorar, e os partidos a tomar. (CULLEN, 1996, p.135)

Solà-Morales (2002) traz a definição de paisagem em suas distintas áreas de significação; primeiro, como a noção de paisagem para descrever a relação dos espaços naturais com seu processo de ‘domesticação’ através da jardinagem, pintura ou poesia; depois, como um pressentimento de nossa relação com a cidade, um ponto de vista próprio da experiência entre o natural e o urbano para o homem moderno. (SOLÀ- MORALES, 2002, p.153)

Para o autor, a cidade contemporânea está em permanente processo de formação e de devastação, e já não é mais compreendida através de uma visão que encontra na ordem dos traçados o suporte de uma inteligibilidade estável:

La cuidad actual se apropia de su energía pero también sus conflitos sociales, geológicos, ambientales, aceptando com fatalismo convivir com ellos. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.157)

Para Cullen existe, sem dúvida, uma arte de relacionamento, e seu objetivo é a reunião de elementos para a criação de um ambiente (CULLEN, 1996, p.10). A paisagem seria, então, criada a partir de um jogo no qual são misturados (e organizados) elementos formais e os elementos subjetivos de cada comunidade.

Analisando Paisagens

Ao propor analisar algumas paisagens de empreendimentos habitacionais no Brasil tomamos como base o estudo desenvolvido por Nabil Bonduki (1998). Selecionamos imagens da habitação produzida pelo setor privado, pelo estado e pelo morador. Faremos ensaios sobre algumas dessas paisagens acrescentando a produção do PMCMV (2009).

Vila Maria Zélia – 1919 - A habitação feita pelo setor privado

Segundo Bonduki (1998, p.43) do final do século XIX até a década de 1930 surgiram várias formas de moradia para a população de baixa e média renda sempre construídas pela iniciativa privada que as cedia mediante contrato de aluguel (produção rentista). As formas que mais foram usadas são o cortiço-corredor, o cortiço-casa de cômodos, os vários tipos de vilas e correr de casas geminadas.

A Vila Maria Zélia foi construída em 1919, junto a Cia. Nacional de Tecidos de Juta em São Paulo. Ela era composta por cerca de duzentas casas além de diversos equipamentos como: igreja, biblioteca, teatro, creche, jardim de infância, grupo escolar, consultório médico e dentário e comércio. A vila foi construída com o claro objetivo de manter o controle patronal na medida em que todos os serviços e o comércio eram comandados pelo industrial.

A Vila, segundo Bonduki (p.65), “foi precursora dos conjuntos residenciais propostos, com outra visão, pelos arquitetos do movimento moderno e por Vargas, através dos Institutos de Aposentadorias e Pensões”. O carácter precursor da vila residia no fato de ser segregada do tecido urbano e introduzir ao projeto um conjunto de equipamentos coletivos necessários ao desenvolvimento de atividades no tempo livre.

Figura 1 – A) Localização da Vila. Fonte: Google Earth, modificado pelo autor, 2014 e B) vista aérea. Fonte: cultura.sp.gov.br, 2014

A necessidade de maior aproveitamento do lote e redução do uso de materiais gerou como solução a casa geminada, sem recuos laterais e frontais. Por ser uma vila particular admitia-se não haver muros na frente das residências. Essas soluções

marcavam a paisagem como pode ser observado na vista aérea (fig. 1B), onde a vila aparece em meio às fábricas.

A diversidade de tipologias das unidades residenciais dão identidade aos setores ocupados pelas várias etnias que ali foram morar: a casa dos poloneses tinha alpendre e uma fina estrutura que sustentava sua cobertura (fig. 2A); a casa italiana, uma platibanda triangular que escondia o telhado (fig. 2B); na casa espanhola a platibanda tinha contornos arredondados (fig. 2C) e a casa portuguesa misturava a geometria triangular e a curva (fig. 2D).

Figura 2 - A) casas dos poloneses, B) dos italianos, C) dos espanhóis e D) detalhe de uma residência portuguesa. Fonte: Site São Paulo Antiga / Douglas Nascimento

Outro fator que marca a paisagem da Vila são os prédios institucionais e comerciais que estão dispostos no limite e no interior da Vila. A grandiosidade e qualidade com que foram construídos quebram a ordem, diferenciando da escala das unidade residenciais. Entre os prédios mais importantes estão a Escola dos Meninos, A Escola das Meninas e o Armazém Central (fig. 3 A, B e C), todos abandonados nos dias atuais.

Figura 3 – A) Escola dos meninos, B) Escola das Meninas e C) Armazém. Fonte: Site São Paulo Antiga / Douglas Nascimento

Sabe-se que nem todas as vilas operárias tiveram a qualidade urbana e arquitetônica aqui apresentada, mas pode-se dizer que esta vila sintetiza um modelo de paisagem que o industrial queria construir para o trabalhador.

Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes (Pedregulho) – 1947 – A habitação feita pelo Estado (Era Vargas)

A década de 1940 foi marcada pela criação da Fundação Casa Popular e do Departamento de Habitação Popular da Prefeitura do Distrito Federal e, também, pela adoção de uma política habitacional pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs). Embora essas ações aparentemente não tivessem nenhuma relação, era sinal do “reconhecimento de que a provisão habitacional era uma responsabilidade do Estado e que exigia sua intervenção para ser equacionada de forma adequada. Enfim era uma questão social” (BONDUKI, 1998, p.14).

O Pedregulho, como é chamado o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, foi projetado pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy, em 1947. O conjunto localiza-se no limite do bairros São Cristóvão e Benfica, no Rio de Janeiro, e é composto por 328 unidades habitacionais, escola, academia, lavanderia e outros espaços de convívio e lazer.

Figura 4 - A) Localização do Conjunto. Fonte: Google Earth, modificado pelo autor, 2014 e B) vista aérea. Fonte: archdaily.com, 2014

Usando da ferramenta da visão serial descrita por Cullen (1996, p.19) vamos descrever o caminho de um transeunte que desce do ônibus na rua Prefeito Olímpio de Melo do bairro de Benfica, caminha pela rua Lopes Trovão até o cruzamento com a rua Capitão Félix onde vira a esquerda até encontrar com a rua Ferreira Araújo. Até nesse momento do percurso, o que o pedestre encontrou foram cenários de uma cidade pouco planejada em pequenos lotes privados onde cada indivíduo foi construindo sua morada na medida em que as condições financeiras lhe eram oportunizadas. Criando assim uma paisagem em constante transformação e com pouca qualidade urbanística. Porém ao subir a rua Ferreira de Araújo se depara com algo diferente daquilo tudo que vira antes. Ali não se vê apenas habitações e sim “um projeto de arquitetura moderna, um projeto de cidade, um projeto social” (CAIXETA, 2002, p.61).

Figura 5 – Montagem com imagens que retratam o percurso do ponto 1 (rua Olímpio de Melo com rua Lopes Trovão) de ônibus até o conjunto Pedregulho. Fonte: googlemaps.com, de 2014- modificadas pelo autor

No Pedregulho, “aparece de forma mais acabada a relação entre habitação social, modernização, educação popular e transformação da sociedade” (BONDUKI, 1998, p.139). Essa concepção influenciava de tal forma na paisagem que a escola do conjunto foi construída antes dos blocos habitacionais. A intenção agora não era fazer uma vila para o controle do industrial ou do estado e sim fazer um espaço coletivo e de convívio para o pleno desenvolvimento da população.

Figura 6 – A) vista do edifício da academia com o bloco de apartamentos ao fundo e B) academia e escola vistas do bloco de apartamentos. Fonte: archdaily.com / Pedro Vannuchi

As características da arquitetura modernista, os ensinamentos de Le Corbusier e a experiência alemã no período entre guerras influenciam os projetos e a paisagem criadas pelos conjuntos desse período. São características comuns: blocos lineares e baixos (geralmente 3 ou 4 pavimentos) em muitos caso com o uso de pilotis deixando o térreo com espaço coletivo, poucos ornamentos e industrialização da construção sempre buscando a economia através da padronização e racionalização.

Apesar de serem paisagens com características tão semelhantes isso não impediu que os arquitetos criassem diversas soluções produzindo espaços diferenciados e com qualidade.

Figura 7 - A) vista do conjunto. Fonte: archdaily.com / Pedro Vannuchi e B) detalhe dos pilotis no prédio de apartamentos. Fonte: archdaily.com / Nabil Bonduki

Conjuntos como o Pedregulho e vários outros construídos pelos IAPs foram prova evidente da capacidade do Estado enfrentar o problema habitacional brasileiro. A arquitetura moderna buscava traçar diretrizes projetuais para habitação mínima que aliavam economia, prática, técnica e estética. Porém a arquitetura moderna pareceu desconsiderar a participação popular, produzindo obras arquitetônicas de grande qualidade, porém sem nenhum diálogo com a cultura dos que dela necessitavam. Para

Cullen (1996, p.195) existem duas formas para se projetar um ambiente: objetivamente e empregando valores subjetivos daqueles que ali viverão, a falta dessa complementariedade parece ser uma das explicações do abandono do Conjunto nos dias atuais.

Banco Nacional da Habitação (BNH) - A habitação feita pelo Estado (1964 – 1986)

Se outrora - nos projetos da Fundação Casa Popular e IAPs - havia um conceito de projeto e cidade a ser transformada primando pela qualidade dos espaços, a riqueza das formas e a correta inserção na malha urbana o que se vê na política implementada pelo BNH é preocupação com a quantidade em detrimento da qualidade. Essa premissa geraria um “divórcio entre arquitetura e moradia popular, com graves repercussões na qualidade do espaço urbano. (BONDUKI, 1998, p.318).”

Duas imagens sintetizam a produção feita em larga escala pelo BNH em todo o Brasil: a imensidão de casas idênticas em pequenos lotes individualizados e blocos habitacionais em formato H, monótonos e repetitivos desvinculados do contexto urbano.

Figura 8 - A) conjunto residencial da Pavuna (RJ). Fonte: exposicoesvirtuais.arquivonacional.gov.br/, 2014 e B) Conjunto Humberto de Alencar Castelo Branco, em Santos. Fonte: novomilenio.inf.br/real/ed119z.htm, 2014

Para Benetti (2012) o modelo de habitação do BNH com unidades residenciais distantes dos equipamentos da cidade “comprometem gravemente a possibilidade de melhoria social das famílias, à medida em que são lugares ermos, carentes de possibilidade de trabalho, emprego, cultura, lazer e educação”. Ainda segundo o autor o alto custo dos transportes provoca o confinamento das populações nesses espaços sem qualidade para o pleno desenvolvimento humano.

A monotonia, a repetição e a segregação levam a constatar que a concepção de paisagem urbana está sendo desrespeitada, decretando o fracasso de programas e políticas que reproduzem modelos e padrões:

... se ao cabo de todo esse esforço a cidade se apresenta monótona, incaracterística ou amorfa, ela não cumpre a sua função. É um fracasso. É como empilhar lenha para uma fogueira e esquecer de lhe deitar fogo. (CULLEN, 1996, p.10)

Auto empreendimento na periferia - A habitação feita pelo trabalhador

Para as maiorias, sobram as terras que a legislação urbanística ou ambiental vetou para a construção ou não disponibilizou para o mercado formal, ou os espaços precários das periferias e as viagens cotidianas “à cidade”. (ROLNIK, 2008)

Exemplo dessa paisagem em Goiânia é o setor Estrela Dalva na região Noroeste. A ocupação da região começou em 1979 com a ocupação da Fazenda Caveiras gerando o bairro chamado Jardim Nova Esperança (MOYSÉS, 2001). Com a vitória do movimento popular e a definitiva ocupação da área alguns empresários começaram a lotear áreas no entorno criando um mercado de terras baratas pois não havia equipamentos nem serviços naquela região.

Figura 9 - A) Localização do setor e B) imagem de satélite Fonte: Google Earth, modificado pelo autor, 2014

O Bairro Estrela Dalva é um dos bairros criados pela iniciativa privada. O loteamento foi feito com lotes, ruas e calçadas mínimas. Cada lote era financiado em centenas de prestações. De posse do lote cada morador se mudava para o bairro de forma precária seja para casa de um cômodo para toda família ou em barraco de lona.

Figura 10 – sequência de imagens do Setor estrela Dalva. Fonte: googlemaps.com.br, 2014

Ao adentrar as ruas do bairro o que encontramos até hoje é uma paisagem em construção, onde várias casas ainda são construídas ou ampliadas nos fins de semana, que é quando trabalhador/morador pode fazer o serviço. Muitas das residências não tem iluminação e ventilação adequados podendo ocasionar o surgimento de doenças respiratórias, por exemplo.

A monotonia das ruas estreitas só é quebrada quando há um terreno baldio ao lado, geralmente reservado para um equipamento público que, na maioria das vezes, não tem previsão de ser construído.

Figura 11 - imagens do Setor Estrela Dalva. Fonte: googlemaps.com.br, 2014

A topografia plana na cidade de Goiânia facilita essas ocupações gerando bairros com uma certa organização espacial. As ocupações em outras cidades, onde a terra não tem valor para o mercado formal pois a inclinação é muito grande, gera aglomerados ainda mais insalubres.

Cabe aqui deixar claro que a péssima qualidade da paisagem não pode ser atribuída ao trabalhador (ao auto empreendedor), pois é fruto de um projeto urbano onde pouco espaço é destinado a espaços públicos e as calçadas, ruas e lotes são extremamente pequenos.

Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) - A habitação feita pelo Estado (2009 – dias atuais)

O PMCMV, lançado em 2009 pelo então Presidente Luiz Inácio da Silva dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), resolveu ‘terceirizar’ para a iniciativa privada a produção de habitação para famílias de 0 a 3 salários mínimos, reservando apenas 3% dos recursos para a produção feita pelas cooperativas e associações populares.

A lógica especulativa, terra e projetos baratos, é o que rege o planejamento urbano erando impactos sociais em toda a cidade, pois que o PMCMV, igualmente ao BNH, induz a uma “política habitacional com interesse apenas na quantidade de moradias e não na sua fundamental condição urbana”. (MARICATO, 2011, p.67)

A paisagem que é criada pelo programa não difere em nada dos conjuntos do BNH: pequenas casas em série na periferia ou blocos de habitação repetidos exaustivamente. A novidade é que a iniciativa privada parece procurar cada vez mais alternativas de baixar o custo da unidade sem nenhuma preocupação com a qualidade e localização das habitações surgindo soluções cada vez mais distantes do ideal colocado pelo Movimento Moderno.

Figura 12 – A) imagem de conjuntos de edifícios do PMCMV Fonte: Mcidades, 2012 e B) Residencial Casas do Parque, em Campinas (SP). Fonte: Ricardo Stuckert/Arquivo/PR, 2013

As empreiteiras colocam como fator primordial a necessidade de racionalização e simplificação do projeto. Essa diretriz pode gerar bairros e setores de péssima qualidade urbanística como se pode observar no Bairro São Jorge no município de Queimados (RJ). Nesse empreendimento o projeto da casa de duas águas difundido em larga escala desde o BNH foi “adaptado” e se juntaram quatro unidades resultando na paisagem que pode ser conferida na imagem abaixo.

Figura 13 – PMCMV em Queimados. Fonte: pmdb-rj.org.br/novo/406-unidades-habitacionais-serao-entregues-em- queimados-nesta-sexta, acessado em 2014

Considerações Finais

Como já foi alertado por Bonduki (1998, p.318) parte significativa das nossas cidades estão sendo produzidas por programas habitacionais e essas soluções tem criado em sua maioria espaços urbanos sem qualidade. A foto do bairro de Benfica (fig.15 A) deixa claro, em uma vista aérea, como o tecido urbano é marcado pelos programas habitacionais. Na imagem aparecem três diferentes formas de ocupação do território: a habitação feita pelo Estado (era Vargas), a habitação feita pelo trabalhador (auto construção na periferia) e um outro momento da habitação feita pelo Estado com parceria da iniciativa privada (PMCMV).

Figura 14 – A) foto aérea do Bairro de Benfica no Rio de Janeiro. Fonte: gentilmente cedida por Leonardo Finotti, 2010, B) vista da Rua Célio Nascimento, C) Vista da Rua Doutora Carmem Portinho, D) vista da rua Capitão Felix (B, C e D retiradas de mapas.google.com.br, 2014)

Ao analisar a imagem é flagrante a diferença de qualidade de inserção urbana e ambiental do Conjunto Pedregulho se comparado com os demais modelos de ocupação do território. O conjunto do PMCMV ocupa todo o terreno, os blocos de habitação são implantados sem a preocupação de inserção no contexto urbano e sem criar um espaço em que a construção e o meio ambiente estejam em harmonia. No caso da habitação feita pelo trabalhador, o pouco acesso à recursos financeiros o obriga a construir em pouco espaço, com materiais de baixa qualidade e sem nenhuma assistência técnica, criando, muitas vezes, ambientes insalubres e distantes dos equipamentos urbanos.

Para a qualificação dos projetos, Arantes (2011) acredita ser necessário o enfrentamento de “pertinentes e diversos desafios”. A integração entre arquitetos e trabalhadores, gerando debates desde as alternativas de projeto e produção até a relação do espaço com a cidade, é o primeiro desafio e que parece ter sido negligenciado nos diferentes casos discutidos neste artigo. Para o autor um outro desafio é discutir a propriedade da terra “que deve ser coletiva ou estatal, como barreira à mercantilização e fragmentação dos resultados da luta social.” Por fim o autor coloca o desafio de que o desenho urbano crie espaços mais generosos com o entorno oferecendo uma vivência mais prazerosa da cidade. Assim Arantes acredita que a conquista individual da casa passa a ser uma conquista coletiva da cidade.

Mais do que uma questão urbanística, trata-se de um elo fundamental para que a conquista de um grupo organizado se apresente a todos como forma de alargamento da experiência social e urbana. Desse modo, a organização popular se revela portadora de uma proposta de fortalecimento da vida pública, em que política, festa e território se entrelaçam numa pequena centralidade de civilização em meio à barbárie. (ARANTES, 2011, p.247)

O projeto de habitação social, então, tem que ter a responsabilidade de ser um projeto de cidade, como fora outrora nos conjuntos modernistas porém agora com o entendimento que só o efetivo envolvimento com a população pode trazer como produto um espaço que de fato tenha as características necessárias para o pleno desenvolvimento das comunidades atendidas pois a “cabeça pensa onde o pé pisa”.

Referências Bibliográficas

ARANTES, P. F. Arquitetura Nova. São Paulo: Editora 34,

  1. BENETTI, Pablo. Habitação Social e Cidade. Rio Books - Prourb, 2012.

BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: Uma metáfora da condição humana. 25. Ed. Petrópolis: Vozes, 1997

BONDUKI, Nabil Georges. Origens da habitação social no Brasil Arquitetura Moderna, Lei do inquilinato e Difusão da Casa Própria. Editoria: Estação Liberdade, 1998.

CAIXETA, E. M. M. P. . Uma arquitetura para a cidade: a obra de Affonso Eduardo Reidy. ARQTEXTO (UFRGS), Porto Alegre, v. 2, p. 58-67, 2002.

CULLEN, G. Paisagem urbana. Lisboa: Edições 70, 1996.

MARICATO, E. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011.

MOYSÉS, A. . A produção de territórios segregados na Região Noroeste de Goiânia - Sessão Temática: Urbanização e Regularização da Cidade Ilegal. In: II ENCONTRO DEMOCRACIA, IGUALDADE E QUALIDADE DE VIDA. O DESAFIO PARA AS CIDADES NO SÉCULO XXI, 2001, Belém - Pará. II Encontro

democracia, igualdade e qualidade de vida. O Desafio para as Cidades do Século XXI. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2001.

ROLNIK, Raquel. A lógica da desordem. Le Monde Diplomatique, Brasil, ano 2, n. 13, 2008.

SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Territórios. Barcelona: GG, 2002.