Resumo

O açúcar foi um dos primeiros produtos econômicos do Brasil e a sua produção, através dos antigos engenhos, foi responsável pela ocupação de boa parte da costa do que hoje definimos territorialmente como Nordeste brasileiro, região onde, ainda hoje, o cultivo da cana e a produção de açúcar possuem relevância econômica. E no Rio Grande do Norte não foi diferente. O surgimento da agroindústria do açúcar no seu território remete ao início do processo de colonização da então Capitania do Rio Grande, com a implantação do primeiro engenho, o Cunhaú, no princípio do século

XVII. Entretanto, o desenvolvimento da produção de açucareira potiguar se deu de forma tardia em comparação com o de outras capitanias do norte, como Paraíba e Pernambuco. Apesar do desejo da coroa portuguesa de expandir a lavoura canavieira, em 1627, passados trinta anos da conquista efetiva da Capitania, as terras do Rio Grande contavam com apenas dois engenhos. Uma série de fatores, como a falta de capital dos colonos, as condições de solo não tão propícias ao desenvolvimento da lavoura de cana-de-açúcar, a precariedade do sistema de transportes e a subordinação à Pernambuco, resultaram em desenvolvimento tardio da agroindústria do açúcar potiguar, que desde o início se inseriu de forma periférica no contexto nacional, assim como a própria economia norte-riograndense em geral. Entretanto, mesmo em pequeno número, os primeiros engenhos tiveram um papel importante no processo de apropriação, ocupação e estruturação da incipiente Capitania do Rio Grande, como veremos ao longo deste artigo.

Palavras-chave: engenho de açúcar, estruturação do território, litoral oriental, Rio Grande do Norte

Abstract

Sugar was one of the first economic products of Brazil and its production, through the old mills, was responsible for the occupation of most of the coast which is territorially defined, today, as the Brazilian Northeast - a region to which cultivation of cane and production of sugar still have economic relevance. And Rio Grande do Norte was no different. The emergence of its territory’s sugar agroindustry refers to the early process of colonization of the Captaincy of Rio Grande, as it was called at the time, with the implementation of the first sugar mill - the Cunhaú, in the early seventeenth century. However, the development of sugar production in Rio Grande do Norte occurred belatedly in comparison with other northern captaincies, as Paraíba and Pernambuco. Despite the Portuguese Crown’s desire to expand sugarcane cultivation, in 1627, after more than thirty years of the effective conquest of the captaincy, the lands of the Rio Grande relied on only two sugar mills. A number of factors, such as lack of capital of the colonists, unfavorable soil conditions to the development of the crop of sugar cane, the precariousness of the transport system and the subordination to Pernambuco resulted in delayed development of the Rio Grande do Norte’s sugar agroindustry, which from the beginning was inserted peripherally in the national context, as well as the economy of Rio Grande do Norte in general. However, even in

small quantity, the first sugar mills played an important role in the process of ownership, occupation and structuring of the incipient Captaincy of Rio Grande, as we shall see throughout this paper.

Keywords: sugar mills, territory structuring, eastern seacoast, Rio Grande do Norte

O açúcar e a conquista da Capitania do Rio Grande

Em muitas capitanias onde a ocupação não se deu de forma efetiva, como a do Rio Grande e a da Paraíba, outras nações europeias – no caso das capitanias do norte, principalmente os franceses – frequentaram o litoral e estabeleceram relações amistosas com os indígenas, possibilitando a exploração de pau-brasil (ou pau de tinta, como era chamado na época) e a instalação de pequenos portos ao longo da costa, pondo em xeque a posse da terra pela coroa portuguesa.

Diante dessas ameaças, foram organizadas expedições militares que resultaram na conquista da Paraíba e na fundação da cidade de Nossa Senhora das Neves – atual cidade de João Pessoa – em 1585. Entretanto, a conquista desse novo território não livrou os portugueses da ameaça dos franceses e dos índios Potiguaras1. Com a conquista da Paraíba, os franceses se deslocaram para o Rio Grande, onde a aliança com os Potiguaras permitiu que eles continuassem com o comércio de pau tinta. Além disso, os Potiguaras do Rio Grande frequentemente assaltavam as roças e os arrabaldes da cidade paraibana. Assim, com a conquista da Paraíba, a Capitania do Rio Grande passou a ser o foco dos conflitos entre portugueses, franceses e

Potiguaras2.

No final do século XVI, D. Francisco de Souza, Governador Geral do Brasil, mandou organizar uma expedição militar de conquista do Rio Grande, comandada pelo capitão-mor de Pernambuco, Manuel Mascarenhas Homem, e pelo capitão-mor da Paraíba, Feliciano Coelho. Essa expedição foi composta por duas frentes: uma esquadra por mar e companhias de infantaria e cavalaria por terra, sendo esta última, comandada pelos irmãos Jorge e Jerônimo de Albuquerque. Militares, colonos, padres jesuítas e franciscanos e indígenas de Pernambuco e da Paraíba formaram um verdadeiro exército que em 1597 chegou à foz do Rio Potengi ou Rio Grande, iniciando o processo de conquista da Capitania, o qual se estenderia por, pelo menos, mais um século, diante dos obstáculos que ainda surgiriam. Como forma de consolidar a posse do território, teve início a construção do Forte dos Reis Magos em 1597, a fundação da cidade do Natal em 1599 e um acordo de paz entre os portugueses e os Potiguaras foi celebrado na Capitania da Paraíba em 11 de junho de

em 15993.

1Os índios do litoral se autodenominavam Tupi e referiam-se aos do sertão como Tapuias. Tanto os Tupis quanto os Tapuias eram formados por diversas nações ou tribos com diferenças culturais entre si. Os Potiguaras pertenciam ao tronco Tupi e ocupavam o litoral de parte dos atuais estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Segundo Olavo de Medeiros Filho, os Tapuias eram organizados em duas nações principais, os Cariris e os Tarairiús, as quais estavam subdivididas em tribos ou famílias. Os Cariris, por exemplo, eram formados por tribos como os Curemas e Caicós, Tarairiús englobavam os Paiacus, os Jenipapos, os Canindés, os Pegas e os Panatis, entre outros (MEDEIROS FILHO, 1984; MONTEIRO, 2011).

2CASCUDO, 1984; MONTEIRO, 2011.

3SALVADOR, 1982[1627]; CASCUDO, 1984.

Além de consolidar a posse da terra, a conquista do Rio Grande garantiu a expansão da linha de fronteira – contribuindo para a defesa dos engenhos pernambucanos e paraibanos – e serviu de ponta de lança para a conquista de outras terras ao norte, como as do Ceará e do Maranhão. Nesse contexto, durante o século XVI, as capitanias do norte, mais especificamente Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, formavam um espaço colonial único, organizado em função dos interesses da coroa portuguesa e daqueles que controlavam a produção açucareira, tendo em Olinda

a sede dos capitais necessários para o seu desenvolvimento4.

Os engenhos e a configuração do território da Capitania do Rio Grande durante a ocupação holandesa

Apesar da conquista da Capitania, esta permanecia em um estado de beligerância permanente, pois as terras do Rio Grande continuariam sendo objeto de disputas entre nações europeias.

O financiamento da instalação dos engenhos de açúcar no Brasil e o comércio desse produto na Europa eram realizados pela Holanda. Apesar de ser uma das grandes potências comerciais do mundo, politicamente, a Holanda era uma possessão espanhola. Com as lutas pela independência, a coroa espanhola – que passou a governar também as colônias portuguesas apósa União das Coroas Ibéricas a partir de

1580 – proibiu a burguesia holandesa de continuar tendo acesso aos produtos dessas colônias ibéricas, particularmente do Brasil5.

Visando restabelecer a sua posição no comércio através da conquista de áreas produtoras de açúcar, foi fundada na Holanda, em 1621, a Companhia das Índias Ocidentais. A primeira investida dessa Companhia no Brasil aconteceu em 1624 na Bahia porém, sem sucesso. Apesar dessa primeira derrota, a Companhia não desistiu e em 1630, iniciou com sucesso a conquista de uma das principais capitanias do Brasil e a maior produtora de açúcar então existente no mundo: Pernambuco, que passou a ser sede do governo holandês no Brasil. A partir daí, o domínio holandês ocuparia uma longa faixa da costa brasileira, se estendendo da Capitania de Sergipe Del Rei à do

Rio Grande6, conquistada efetivamente pelos flamengos em 1633, dominando uma importante região produtora de açúcar por mais de vinte anos7.

Durante a ocupação holandesa, foram produzidos documentos importantes que nos ajudam a reconstituir a configuração do território da insipiente Capitania do Rio Grande nesse período.

Antes mesmo da conquista do Rio Grande, os flamengos já haviam feito registros sobre essas terras. Em 20 de maio de 1630, o espião holandês AdriaenVerdonck, escreveu a Memória oferecida ao Senhor Presidente e mais Senhores do Conselho desta cidade de Pernambuco, sobre a situação, lugares, aldeias e comércio da mesma cidade, bem como de Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, na qual foram compiladas informações importantes sobre o território ocupado pelos holandeses.

O espião holandês inicia a descrição do Rio Grande pelo Engenho Cunhaú:

Três milhas acima de Camaratuba existe ainda um engenho, no lugar chamado Cunhaú, o

4GONÇALVES, 2007.

5MONTEIRO, 2011.

6Essa foi a área de mais forte presença holandesa no Brasil. Entretanto, os flamengos também estiveram presentes em outras capitanias, como Sergipe e Ceará.

7 MELLO, 1981.

qual faz anualmente de 6 a 7.000 arrobas de açúcar; este lugar está sob jurisdição do Rio Grande e ali moram bem 60 ou 70 homens com suas famílias; meia milha distante deste engenho corre um rio, de três milhas de longo e meia de largo, onde as barcas iam carregar açúcar, de 100 a 110 caixas cada barca, e traziam dali também comestíveis; há ali também muito gado, farinha e milho que ordinariamente é trazido para Pernambuco com o açúcar. (VERDONCK, 1630 apud MELLO, 1981, p. 45).

Em seguida, AdriaenVerdonck descreve a cidade do Rio Grande, ou cidade do Natal, as chamadas aldeias de brasilienses, o Forte dos Três Reis Magos, o Rio Grande (Potengi) e as salinas do litoral setentrional.

Estes relatos nos ajudam a reconstituir o território ocupado pela então coroa luso- espanhola no Rio Grande antes da ocupação holandesa. Passados pouco mais de 30 anos após a conquista do Rio Grande por Duarte Coelho e Mascarenhas Homem, a área colonizada se restringia ao litoral oriental, principalmente a porção ao sul de Natal, por onde passava a estrada que ligava a capital Natal às Capitanias da Paraíba e de Pernambuco, com as quais o Rio Grande mantinha relações econômicas, políticas e sociais estreitas. Os principais núcleos populacionais eram Cunhaú, um pequeno povoado localizado no entorno do engenho homônimo, onde viviam entre 60 e 70 homens com suas famílias e a modesta cidade do Natal, que apesar do título de cidade, contava com apenas 35 a 40 casas de palha e barro. Em toda a jurisdição de Natal, a população não ultrapassava o número de 130 homens, onde a maioria era de miseráveis. Os mais abastados viviam em sítios nos arredores da cidade. Além desses aglomerados populacionais, destacam-se as aldeias de índios, ou aldeias brasilienses como se refere AdriaenVerdonck, totalizando 5 ou 6, com destaque para a aldeia de Mopobú (ou Mipibu). Quanto à economia, a produção de açúcar se dava através do engenho Cunhaú, com uma produção anual considerável de 6 a 7 mil arrobas de açúcar, e de dois engenhos de pequena produção na jurisdição de Natal. Também é relevante a produção de milho e de farinha, que eram produzidos tanto em Cunhaú quanto em Natal e comercializados nas praças pernambucanas. Contudo, o principal produto da Capitania era o gado criado nas pastagens do litoral oriental e também comercializado em Pernambuco. Outro produto importante era o sal. Apesar do litoral setentrional não ter sido efetivamente colonizado nesse período, suas salinas já eram conhecidas e intensamente frequentadas. O pau-brasil é citado como um produto antes abundante, mas que já começava a se tornar escasso.

Outro importante documento sobre a configuração do território do Rio Grande no início do século XVII produzido no período da ocupação holandesa foi o mapa elaborado por Georg Marcgraf intitulado Praefecturae de Paraíba, et Rio Grande8(figura 01), que representa a área de ocupação das Capitanias da Paraíba e do Rio Grande.

8Esse mapa faz parte do livro do historiador Gaspar Barleus de 1647, intitulado Rerum per octennium in Brasilia, ou História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, ilustrado com gravuras de Frans Post e mapas de George Marcgraf.

Figura 1. Trecho do mapa intitulado Praefecturae de Paraiba, et Rio Grande do holandês Georg Marcgraf, com destaque para o território da Capitania do Rio Grande. Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal, 2013

Esse trecho do mapa de Marcgraf confirma a insipiente ocupação do território do Rio Grande já descrita por AdriaenVerdonck, restrita à faixa do litoral oriental do Rio Grande ao sul de Natal e a um pequeno trecho ao norte dessa cidade, concentrada principalmente nas várzeas dos rios, como o Potengi, o Jundiaí, o Trairí, o Jacú e o Cunhaú, e nas margens das lagoas de Extremoz, Papari e Guaraíras, onde estavam localizadas boa parte das terras doadas em sesmarias.

Nesse contexto, após 35 anos de conquista da Capitania pelos portugueses, a ocupação do Rio Grande continuava bastante rarefeita, contando poucos e esparsos núcleos populacionais e terras doadas em sesmarias com poucas ou nenhumas benfeitorias.

Entretanto, apesar da ocupação e do desenvolvimento insipientes da Capitania, já existia um rudimentar sistema de estradas que atravessavam o litoral oriental, comunicando os principais povoados, aldeamentos, currais de gado e engenhos de açúcar da região, bem como ligando o Rio Grande às capitanias mais próximas, como a Paraíba e, principalmente a Pernambuco. Nesta Capitania, uma das principais praças do norte, se dava a comercialização do açúcar e de produtos do Rio Grande voltados para o mercado interno (gado, farinha e milho) e o abastecimento dos colonos rio- grandenses com mercadorias vindas da Metrópole. Esse transporte de mercadorias também se dava através da navegação fluvial e marítima, onde rios como o Cunhaú e o Potengi, assim como as barras e enseadas naturais ao longo da costa, foram amplamente utilizados desde os primórdios da colonização.

As figuras 02 e 03 apresentam trechos ampliados do mapa de Marcgraf, onde observamos um conjunto de estradas irradiando a partir de dois núcleos: Cunhaú e Natal. Do engenho Cunhaú (identificado pelo nome de sua capela de Nossa Senhora das Candeias) seguia uma estrada para o norte em direção à capital Natal, passando por aldeamentos e currais de gado ao longo do caminho; outra para o sul, seguindo para a Paraíba e para Pernambuco; duas estradas menores, uma comunicando o engenho ao rio Curimataú/Cunhaú – onde deveria existir um pequeno porto no qual as barcaças iam carregar açúcar e outros produtos a serem comercializados nas praças pernambucanas e paraibanas, como descreve o espião holandês AdriaenVerdonck – e outra saindo de Cunhaú e passando por currais de gado próximos ao engenho; e duas estradas partindo de Cunhaú em direção às fozes de rios próximos como o Curimataú/Cunhaú no Rio Grande e o Guajú, atualmente localizado na Paraíba. Dessa

forma, o engenho Cunhaú se configurava como um nó na insipiente rede de vias de comunicação que estava sendo germinada.

Figuras 2 e 3. Trecho do mapa intitulado Praefecturaede Paraiba, et Rio Grande do holandês Georg Marcgraf, com destaque para o engenho Cunhaú à esquerda e para a cidade do Natal à direita. Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal, 2013.

Natal também se configurava como um nó nessa rede. Da capital partiam quatro estradas: a primeira seguia para o sul em direção a Paraíba e Pernambuco, passando pelos chamados sete montes, por Parnamirim, pelos rios Cajupiranga e Pitimbú, e pelos vales do Capió e Cunhaú; a segunda margeava o litoral até a foz do rio Pirangi; a terceira acompanhava as margens do rio Potengi; a quarta comunicava a cidade com a foz deste rio.

A agroindústria do açúcar potiguar e o processo de apropriação, ocupação e estruturação do território

A agroindústria do açúcar influenciou direta e indiretamente a apropriação, ocupação e estruturação do território do Rio Grande do Norte, principalmenteda região do litoral oriental.

Apesar do território norte-riograndense ter sido frequentado pelos portugueses desde os primórdios da colonização, sua apropriação só se deu de forma efetiva anos depois com a organização de uma expedição de conquista da Capitania no final do século XVI, que além de consolidar a posse das terras conquistadas, também teve como objetivo expandir a linha de fronteira para a defesa dos engenhos pernambucanos e paraibanos e, em última instância, expandir a própria lavoura de cana.

A exploração econômica das terras doadas em sesmarias através da plantação de cana e da produção de açúcar fazia parte do projeto de colonização da coroa portuguesa no Brasil, onde o açúcar se destacava como principal produto econômico da Colônia. Assim, desde o início da colonização, a Metrópole buscou estimular o desenvolvimento da agroindústria do açúcar em terras potiguares, culminando na implantação do primeiro engenho pouco após a conquista dessa Capitania. Entretanto,

uma série de fatores, como a falta de capital dos colonos, e as condições de solo não tão propícias ao desenvolvimento da lavoura de cana-de-açúcar se comparada com capitanias como Pernambuco e Paraíba, a precariedade do sistema de transportes e a subordinação à Pernambuco, resultaram em um desenvolvimento tardio da agroindústria do açúcar potiguar9, que desde o início se inseriu de forma periférica no

contexto nacional, assim como a própria economia norte-riograndense em geral.

Entretanto, apesar de existir praticamente apenas um engenho na Capitania no Rio Grande no início do século XVII10, o Cunhaú, este teve um papel importante no processo de ocupação do território potiguar, principalmente da região do litoral oriental. Primeiramente, é importante destacar o estado insipiente e precário da Capitania do Rio Grande como um todo nesse período, onde a própria Natal não fazia jus a seu status nem de cidade, nem de capital, contando com um número ínfimo de rústicas casas de barro e palha e ruas precárias, e o grande número de sesmarias abandonadas e sem benfeitorias evidenciava a falta de capital dos colonos do Rio

Grande e a situação periférica da Capitania no contexto da nascente economia brasileira. Nesse contexto de escassez, o engenho Cunhaú se configurava como o principal centro econômico da insipiente Capitania, produzindo e transportando açúcar, milho e farinha para Pernambuco, e um dos principais núcleos populacionais do Rio Grande, contando com uma população de 60 a 70 famílias no seu entorno. Dessa forma, a produção de açúcar contribuía para o desenvolvimento de atividades subsidiárias a esta, bem como para a fixação da população e povoamento do entorno dos engenhos, como aponta Vera Lúcia Ferlini:

Em torno dos engenhos proliferaram os partidos de cana, fixando os lavradores e sua escravaria. Outras atividades eram impulsionadas a partir da produção de açúcar: tabaco para escambo de negros, pecuária para o provimento de tração e alimento, olarias produtoras de telhas, de formas, lenha para as fornalhas e madeira para as construções. O mundo colonial nordestino teve por eixo os engenhos, verdadeiras agências da colonização, [...], que condensavam a população, articulando, à moda de cidade, funções econômicas, militares, religiosas e administrativas. (FERLINI, 2003, p. 136).

Nesse sentido,o engenho Cunhaú serviu como instrumento do processo de colonização, contribuindo para a ocupação e exploração das terras conquistadas, funcionando como ponto de apoio para a organização econômica, política e social do Brasil.

Além de contribuir para o processo de apropriação e ocupação do território da Capitania do Rio Grande, a agroindústria do açúcar também influenciou a sua estruturação. A embrionária rede de produção, transporte e comercialização do açúcar situada no litoral oriental da Capitania do Rio Grande corrobora para esse entendimento.

Todo tipo de fluxo, seja ele de mercadorias, de pessoas, de informações ou de capitais, pressupõe a existência de uma rede, que tem a conexão como a sua principal

9 A agroindústria do açúcar no Rio Grande do Norte só irá alcançar um desenvolvimento mais expressivo a partir de meados do século XIX, quando uma conjuntura favorável resultou em um rápido aumento do número de engenhos e da produção de açúcar, que passou a disputar com o algodão o primeiro lugar na pauta de exportação potiguar.

10 Os relatos holandeses apontam a existência entre 2 e 3 engenhos na Capitania do Rio Grande.

Entretanto, após a conquista desta capitania pelos flamengos, apenas o engenho Cunhaú se manteve em atividade.

propriedade. As redes são formadas por fluxos, que circulam entre elementos fixos através de suas articulações11.

No caso da rede de produção, transporte e comercialização do açúcar,localizada no litoral oriental do Rio Grandedo Norte, podemos identificar os pontos fixos como os engenhos, os portos/praças comerciais e os núcleos urbanos12, onde cada um desses elementos possui uma função específica de produção, distribuição/comercialização e consumo, respectivamente, os fluxos são demercadorias (o açúcar), mas também de pessoas (mão de obra) e de comandos/ordens e informações, e as articulações são

representadas pelas vias de transporte ecomunicação, como rios e estradas.

Essa “rede do açúcar” começou a tomar forma com a implantação do primeiro engenho da Capitania, o Cunhaú, ainda no início do século XVII. Desde o início das suas atividades, a produção de açúcar do engenho Cunhaú se deu em larga escala e voltada para o comércio externo, atendendo, assim, à lógica do projeto colonizador português13. Entretanto, não existia um comércio direto do Rio Grande com Portugal,

pois esta Capitania estava subordinada à de Pernambuco, e, por isso, não possuía uma alfândega própria. Dessa forma, o açúcar produzido em Cunhaú tinha que ser transportado para Pernambuco, e de lá seguia para Portugal. Nesse contexto, a necessidade de transporte de mercadorias foi um dos fatores determinantes para a abertura das primeiras estradas do Rio Grande, com destaque para aquela que partia da capital Natal em direção a Recife, atravessando a porção sul do litoral oriental do Rio Grande, comunicando este a Paraíba e Pernambuco. Os rios também tinham um papel importante no escoamento da produção. O açúcar era transportado em barcaças pelos rios da região, como o Cunhaú, seguindo em direção a Recife pela costa do Atlântico. Esse transporte de mercadorias estimulou a instalação de pequenos portos nos rios próximos aos centros produtores. Assim, com o início da produção e comercialização do açúcar surgem, ainda que de forma precária e bastante rudimentar, as primeiras estradas e portos da região.

Nesse contexto, o fluxo de mercadorias (açúcar) contribuiu para a formação de uma rede, onde fluxos, fixos e articulações estabeleceram uma relação de interdependência e de retroalimentação. Assim, o açúcar produzido nos engenhos precisava ser transportado para as praças comerciais, contribuindo para a abertura de estradas e para a instalação de pequenos portos nos rios da região. E a proximidade de estradas e portos estimulava a instalação de novos engenhos e o desenvolvimento dos existentes. A produção de açúcar também demandava mão de obra, gerando um fluxo de pessoas entre os povoados/aldeamentos e os engenhos da região, bem como a sua comercialização também gerava dividendos para as praças onde o mesmo era comercializado.

Considerações Finais

Mesmo que modesta, a agroindústria do açúcar teve um papel importante no processo

11DIAS (1995).

12 Essas categorias não são estanques. Em geral, os principais núcleos urbanos contavam com uma área comercial e portuária, que atendia o comércio local de mercadorias e também a exportação de

produtos através dos portos, funcionando ao mesmo tempo como centros de distribuição, de comercialização e de consumo de mercadorias.

13Parte da produção, principalmente de outros produtos derivados da cana-de-açúcar, como a

rapadura, o mel de engenho e a aguardente, também era consumida no próprio Rio Grande e nas capitanias vizinhas, como Paraíba e Pernambuco.

de apropriação, ocupação e estruturação do território do Rio Grande do Norte, com destaque para o litoral oriental, região que, devido às condições ambientais propícias concentrou (e ainda concentra) a área de cultivo de cana-de-açúcar no território potiguar.

O açúcar foi um dos fatores motivadores da apropriação da Capitania do Rio Grande. Além de garantir a posse das terras, a conquista efetiva da Capitania também visava garantir a defesa dos engenhos já instalados em Pernambuco e na Paraíba e expandir a lavoura de cana para as terras potiguares, atendendo assim aos interesses econômicos da Metrópole de exploração econômica das terras da Colônia. Nesse sentido, logo após a sua conquista, foram instalados os primeiros engenhos, dando origem à agroindústria do açúcar no Rio Grande. Mesmo em pequeno número, esses engenhos de açúcar tiveram um papel importante no processo de ocupação da Capitania. A produção de açúcar estimulava o desenvolvimento de outras atividades subsidiárias e a fixação da população nas terras do engenho e no seu entorno imediato, contribuindo assim para a ocupação do território da insipiente Capitania do Rio Grande. Sua estruturação também foi marcada pela agroindústria açucareira. Os fluxos gerados pela produção de açúcar, com destaque para o de mercadorias, mas também de pessoas (mão de obra) e de comandos, deu forma a uma embrionária rede de produção, transporte e comercialização de açúcar, que contribuiu para o surgimento das estradas e portos da região, para o fortalecimento dos engenhos e também das nascentes aglomerações urbanas, em um processo contínuo de retroalimentação.

Com o aumento da produção ao longo dos séculos, essa rede irá se expandir e se tornar mais complexa, estabelecendo novas conexões e eliminando outras, em um processo contínuo e dialético de reconfiguração. As inovações tecnológicas, especialmente dos meios de transporte, terão um papel crucial nesse processo. As chamadas redes técnicas, representadas pelas ferrovias, rodovias, telegrafia, telefonia, entre outras, foram implantadas em um território que já contava com um rudimentar sistema de estradas e portos, influenciando e sendo influenciado por essas inovações tecnológicas. Não foi por acaso que a primeira ferrovia do Rio Grande do Norte, a Estrada de Ferro Natal-Nova Cruz, atravessou justamente a área de mais antiga ocupação do estado, a porção sul do litoral oriental, com um traçado muito próximo da primitiva estrada que cortava essa região em direção a Recife. A implantação dessa estrada de ferro tinha como objetivo facilitar e racionalizar o escoamento da produção de açúcar da região para o porto de Natal. Assim, mais uma vez, a estratégia de circulação de mercadorias foi determinante para a implantação da infraestrutura de transportes no litoral oriental.

Nesse contexto, a embrionária rede de produção, transporte e comercialização do açúcar instalada no litoral oriental do Rio Grande do Norte atraiu investimentos em infraestrutura e fortaleceu os engenhos e as aglomerações urbanas envolvidas nessa atividade econômica, integrando-os e solidarizando-os. Entretanto, o desenvolvimento dessa rede também produziu uma seletividade territorial, pois ao integrar certos territórios, ela também excluiu outros. Assim, ao seguir o peso das atividades econômicas preexistentes, muitas vezes a rede do açúcar contribuiu para o

fortalecimento dos elementos que já integravam essa rede14, resultando em uma concentração de investimentos, capitais e infraestrutura no litoral oriental do Rio

14 DIAS (1995).

Grande do Norte15.

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15 As próximas pesquisas irão aprofundar as discussões acerca das transformações na rede de produção, transporte e comercialização do açúcar e suas implicações na organização do território do Rio Grande do Norte.