Resumo

A partir de dois breves recortes da historiografia de Brasília, descolados da tradicional historiografia – aquela em que Brasília é vista do Monumento, do Mito ou do Herói; pretende-se abordar movimentos de agenciamentos de territorializações / desterritorializações de uma cidade que, a cada dia, reinventa suas memórias. Segundo retas e regras que bloqueavam linhas de fuga ou linhas de abstração para a ocupação dos vazios (para fins de moradia e fixação), do ex nihilo de Brasília, desde sua construção, consolida-se essa cidade guardada da Novacap. Em constante embate frente estratégias e táticas de fixação no Distrito Federal pela população de migrantes.

Palavras-chave: Brasília, territorialização, cidade, agenciamento

Abstract

From two brief cutouts in the historiography of Brasilia, unattached from traditional historiography - those in which Brasilia is seen as the Monument, the Hero or the Myth, willing to approach movements assemblages of territorialization / deterritorialization of a city that every day , reinvents his memoirs. According straight and rules that blocked drain lines or rows of abstraction to the occupation of the unoccupied (for housing and seetlement), the ex nihilo of Brasilia, since its construction, is consolidated this city kept by Novacap. In constant struggle torward the strategies and tactics of fixing the Federal District by the migrant population.

Keywords: Brasília, territorialization, city, assemblage

Quando nos arriscamos a entender a configuração e a organização de Brasília observando os pensamentos formais da urbanística frente aos enunciados de uma sociedade em invenção e as contradições e rachaduras evidentes que rompiam (e continuam a romper) o invólucro moderno; lançam-se hipóteses de estudo desse modo de pensar o Brasil, a cidade e a “civilização” que habitará essa cidade moderna. A cidade de Brasília é entendida enquanto espaço simbólico de conquista da ordem não apenas espacial, mas da própria ideia de racionalidade e de discurso (tanto retórico quanto poético). Pretende-se abordar aqui um entendimento de historiografia baseado na ideia de que existe um “problema de memória”, no sentido de que a história é sempre reflexo de uma forma de pensar e segundo Michel de Certeau uma coleção de textos, assuntos, os quais não se domina e que se desdobram de maneiras imprevisíveis e difusas. Tais discursos impulsionam formas de olhar a cidade, o sertão, o Brasil, a ideia de nacionalidade e a crítica da sociedade que está arraigada e será transmutada em todas essas formas de pensamento social.

Antes de ser um objeto de discurso, a história engloba e situa a análise. Ela é seu insuperável pressuposto. Qualquer teoria da história está confinada em um labirinto de conjunturas e de relações que ela não domina, trata-se de uma “literatura” sob o domínio do assunto abordado por ela. (CERTEAU: 2011, p.93)

São modos de entender alguns espaços simbólicos de conquista falar da territorialização que afeta espaços e corpos, falar de uma lógica diferente daquelas regidas por espaços hegemônicos, entender a lógica de agenciamentos, que se identificam com a territorialidade que os envolve. Estes espaços de conquista serão aqui engendrados por uma aproximação da historiografia de Brasília e da construção

de um espaço1 chamado Brasília. Neste trabalho se pretende abordar principalmente a criação e a transformação de uma cidade diante da construção e atualização de uma memória coletiva, e não enquanto um surgimento ou acontecimento do passado. Assim, Brasília será entendida como o espaço e a formação social que, através de diferentes tempos e momentos de seus processos de enraizamento em um território, elaborou distintos agenciamentos, criando múltiplos territórios, tanto materiais quanto

imateriais.

Neste texto, a ideia de território e territorialização será compreendida a partir do pensamento filosófico de Deleuze e Guattari2, no esforço de trazê-las para o entendimento espacial das formas de produção de agenciamentos3 e nas estratégias de enfrentamento destes agenciamentos na produção e ocupação do espaço urbano. Esta pesquisa pretende aproximar-se de diferentes estratificações assumidas pela cidade- em-construção, a cidade enquanto território de lógicas discordantes e divergentes; a cidade enquanto território encarnado da lógica hegemônica; a cidade enquanto território praticado por atores oportunos. Considera-se que tais configurações acontecem simultaneamente, menos verticalmente e mais num enfrentamento contínuo

ao tempo em que se pretende lançar aderências teóricas e de análise que colaborem no estudo de alguns processos e práticas espaciais de produção desses territórios-Brasília; territórios estes que possuem, claramente, várias possibilidades de recortes em suas temporalidades e espacializações.

A partir do entendimento desta bibliografia, pretende-se emprestar significado a processos históricos que servem de diapasão, no sentido de sintonizar maneiras de falar da produção e da reprodução do processo de ocupação e da territorialização de uma cidade em “ritmo civilizatório”. Tal pensamento formal será explicitado em duas práticas e circunstâncias que se deram na representação de um modelo de cidade formal, em outros momentos essas práticas se alteraram buscando outros sentidos para um urbanismo, ou melhor, para a ideia de cidade, na invenção de vários territórios, com vários investimentos frente a uma “urbanização desurbanizante”.

Tais recortes aqui estão poucos e sucintos, que sobrepostos em estado de cisão ou de

1 Aqui partimos do raciocínio foucaultiano de que o espaço não é nunca um território neutro, suas bases estão nas relações subjetivas, de apropriação, de captura, de dominação [saber e poder].

2 Até o momento, o pensamento dos filósofos Gilles Deleuze e Felix Guattari aqui reconhecido dentro de várias ideias políticas, explicitados pelo conceito de territorialidade; foi principalmente compreendido pela leitura dos vols. 1 e 5 de Mil Platôs – Capitalismo e esquizofrenia e de outra publicação escrita por Guattari em parceira com Suely Rolnik chamada Micropolítica – Cartografias do desejo. O conceito de territorialização exposto aqui será melhor explicado no título seguinte – “dos territórios”.

3 A noção de Agenciamentos se inicia nos meandros do pensamento de Michel Foucault, mas Deleuze e Guattari lançam esse conceito de modo mais formal. É um conceito que preexiste a partir de uma dupla articulação: Agenciamentos coletivos de enunciação (regimes semióticos, regimes de signos) e Agenciamentos máquinicos, o que se faz (ações, exercícios, paixões). "Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos, um de conteúdo, outro de expressão. (...) Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem.”

união, destacam aspectos e sentidos de uma interlocução com esta pesquisa (mais em seu âmbito conceitual que objetal). Surgiu, durante o processo de leitura/escrita, que estes recortes poderiam ser enunciados de várias formas. Poderiam ser enunciados enquanto recortes de tendência temporal, em momentos peculiares da consolidação da cidade. Ou tais recortes podem ser conjugados em operações humanas, em suas lutas, resistências, desbravamentos, superações, processos e práticas que produziram uma cidade em transformação. Mais ainda, existem recortes teóricos de um pensamento voltado para o conteúdo crítico e simbólico, de construção de texto, que permitem agenciar e tematizar estes estudos sobre o tema.

Dos Territórios

O território surge como um produto (ou processo) de uma territorialização, para Deleuze e Guattari, num movimento onde “os afetos se atualizem na invenção de um território” (GUATTARI, ROLNIK:2005, p. 9). O território como tratado em Mil Platôs mantém uma ambivalência em relação a terra – considera-se o espaço liso, o nomadismo (em oposição a uma correspondência sedentarizada), as relações com os aparelhos de Estado e o regime de propriedade sobre ela, a terra. O território é o reflexo de uma relação, não implicando um espaço físico geográfico específico, mas sim, um valor existencial que não o circunscreve a um fechamento espacial. A nomeação desse espaço enquanto território é o movimento pelo qual ele se territorializa, numa operação de tomada de posse, de domínio, de permanência; sendo indissolúvel o investimento material do afetivo, para o movimento de territorializar.

O que se diz para o território, diz-se para o movimento de desterritorialização, “o movimento pelo qual se abandona” o território numa linha de fuga de sentidos.

Seria preciso, inicialmente, compreender melhor as relações entre desterritorialização, território, reterritorialização e terra. Em primeiro lugar, o próprio território é inseparável de vetores de desterritorialização que o agitem por dentro: seja porque a territorialidade é flexível e “marginal”, isto é, itinerante, seja porque o próprio agenciamento territorial se abre para outros tipos de agenciamentos que o arrastam. Em segundo lugar, a desterritorialização, por sua vez, é inseparável de reterritorializações correlativas (...) participa a um só tempo de formas diversas. (D&G: 1997, vol.5, p.225)

Para a disciplina do urbanismo, o solo urbano é dotado da ideia de propriedade, de posse, e de função. A propriedade é tida como uma das garantias dos processos urbanos, devendo estar alinhada com a entidade de um Estado-formado nas decisões de planejamento. A materialização das intenções na arquitetura e no urbanismo, alimentam “funções-chave” da vida urbana, e é assim que a concepção modernista do campo do urbanismo baseou suas proposições.

O mecanismo de negação dessa visão totalizante da vida urbana, da associação coletiva que é viver numa cidade e das relações sociais múltiplas que deveriam ser instrumento essencial; nunca deixa de se assumir. Mesmo na experiência mais tipologicamente organizada de cidade que tivemos, Brasília. A visão de propriedade de terra segmentariza e distingue um espaço, e muitas vezes o desloca de sua produção de múltiplos outros sentidos; mas não anula a produção continua de desejos, de devires, de desterritorializações.… Esses desejos vem da experiência social, própria e praticada, individualmente e coletivamente. A subjetividade trabalhada enquanto conceito por

Guattari e Deleuze a partir de outros filósofos e pensadores, atua na compreensão de que nossos desejos, nossos gostos e valores não são nossos, não são apenas individuais. Eles são coletivos, partem de uma relação consigo que deriva das relações com os outros, ou seja, nossa subjetivação é uma produção de sentidos coletiva. Dizemos que produz uma prática, porque a subjetividade e o imaginário geram um vetor de ação, baseado em forças imateriais, que nos movem. Esse campo de forças do imaginário nos faz sermos e agirmos, nos dá uma condição humana; atuando, inclusive, na esfera de nossa racionalidade, e na nossa produção de devires. Em entrevista Deleuze ressalta:

Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça, seja de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar. Tampouco dois termos intercambiantes. (...) Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos.

Devir é um conteúdo do desejo, desejar é produzir devires. Uma falta de movimento não atuante como suporte para a territorialização não faz encontrar um território existencial. Mas por vezes, pela sua oportuna negação, cria a própria consistência do real que gera, em si, seus desejos de abstração, de fuga, de reinvenção.

Durante o processo de construção e de consolidação de Brasília alguns devires de reinvenção, subversão da ordem, participação desse espaço e desse discurso emergiram, e emergem através de movimentos sociais, de luta por moradia, de resistência ao movimento de exclusão e de convenção espacial programada para a cidade-avião. Foram desejos de mudanças e de transformações – sociais e espaciais. Esses desejos movidos por um problema essencial prático, de moradia, criaram territórios e territorializaram um lado de fora, dentro; e um dentro fora. Pressionaram a criação de associações, assentamentos ilegais, demarcações de terras indígenas, organizações político-administrativas, cidades-satélites, periferia. Territórios de afastamento e de aproximação, áreas de alteridade e ao mesmo tempo de inversão dessa alteridade, criaram um novo mapa para Brasília, que até então era apenas um devir-avião sobrevoando o devir-sertão.

#1 devir avião, devir vila

Como se sabe, durante a construção de Brasília, a Companhia Urbanizadora da Nova Capital foi o agente principal que encarnou o aparelho de Estado, estando diretamente subordinada à presidência da República. A Novacap foi constituída juridicamente como uma sociedade anônima estatal, tendo por sede uma cidade que ainda não existia4. E como o Estado é algo que sempre existiu, ele não é pensável independente dessa relação – entre zonas controladas da cidade e aparelho jurídico-burocrático- policial – a Novacap assumiu para si toda a autoridade jurídica, onde além de gerir as

4 A lei nº. 2874 de 1956 que delimitava oficialmente o território do Distrito Federal, instituía a criação da Companhia Urbanizadora da Nova Capital e através de um decreto aprovado alguns dias depois, constituía sua sociedade. A primeira diretoria da Novacap, juntamente com a Comissão de Planejamento da Construção e Mudança da Capital Federal, elaborou o Edital do Concurso Nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil, publicado no Diário Oficial da União em 30 de setembro de 1956.

questões administrativas, deveria resolver todo e qualquer tipo de conflito, criando inclusive uma corporação policial deflagrada para prestar serviços de segurança no canteiro de obras de Brasília, chamada de GEP – Guarda Especial de Brasília.

Depois de desapropriada pelo governo federal, a região não ficou mais sujeita à jurisdição do estado de Goiás e muito menos do longínquo Rio de Janeiro. O governo, representado na figura de Israel Pinheiro, assumiu poderes constitucionais

— quase absoluto, sobre direitos e deveres civis, incluindo horário e turno dos trabalhadores. (OLIVEIRA apud LUIZ , 2007).

A Novacap além de agilidade nos canteiros de obra e ordem nos acampamentos dos trabalhadores da construção civil, queria evitar que a força de trabalho se fixasse territorialmente ali. O processo de desterritorialização era irrefutável: as famílias dos trabalhadores não podiam se fixar, as condições eram precárias e temporárias e a Novacap criava restrições severas e controlava a organização dos acampamentos

das empreiteiras. Em contraposição a isso, a Cidade Livre5 desenvolveu uma política folgada de encorajamento empresarial, atuando no agenciamento-local de famílias, mulheres, economia, empregos, códigos, estratégias simbólicas. Segundo James Holston, pelo plano original da Novacap a Cidade Livre era o único povoamento temporário autorizado a oferecer residências para quem não estivesse alojado nos acampamentos de obra; mas naturalmente surgiram vários outros acampamentos informais a contragosto da Novacap, que contrastavam com as zonas de atividades reconhecidas pela autarquia. Até 1964 existiam alguns povoamentos ilegais, como a: Vila Sara Kubitschek, Vila Amaury, Vila Planalto e Vila do IAPI estes totalizando uma população de 18.129, que à época

representavam 28,2% da população do Distrito Federal.

Dessa política restritiva derivou uma condição de nomadismo, gerando processos ambulantes de procedimentos e trocas de espaço, que ampliavam suas formas de resistência conforme alargavam as operações de construção – com a implantação de estradas, com a chegada de mais trabalhadores, com o aquecimento da economia paralela do setor secundário e terciário. O espaço nômade aqui compreendido através do tratado de nomadologia de Deleuze e Guattari, diz-se em relação a uma lógica diferente daquela imposta pela lógica da propriedade, onde não representa uma oposição dialética à lógica do Estado, ao pensamento formal do aparelho de Estado, apenas no sentido de antagonizá-lo, o Estado e suas hierarquias, mas de buscar rupturas e abstrações nas suas ações dentro daquele mesmo pensamento de cidade; dentro da cidade, não fora dela.

Um dos exemplos é a Vila Sarah Kubitschek, que foi um assentamento informal, surgido por volta de 1958 e está aqui lançado como um grande movimento de territorialização por oportunas práticas de espaço, e pela desenvoltura de ações táticas de resistência e permanência que atravessou. A produção simbólica que

5 Oficialmente chamada Núcleo Provisório dos Bandeirantes, a Cidade Livre foi um assentamento exterior ao traçado do Plano Piloto que surgiu como uma zona comercial temporária (a Novacap determinava que ao fim da construção a cidade seria “arrasada”) destinada à iniciativa privada na prestação de serviços e oferta de bens de consumo aos trabalhadores dos acampamentos, funcionava com concessão gratuita da terra por 4 anos e estava livre de impostos.

permeou a luta pela não remoção da Vila Sarah atravessa essa leitura que fazemos dos modos de desafiar a autoridade e o aparelho de Estado, mas em relação a ele. Isso quer dizer que a Vila Sarah brota de um antagonismo, parte de uma experiência de invisibilidade, mas sua luta tinha por objetivo transformar a política do governo, de fazer-se visível para o programa habitacional do governo do Distrito Federal e poder estabelecer uma experiência correlata de representatividade, fazer- se parte integrante de um sistema de organização e dominação. As lutas e ações da associação da Vila Sarah se carregaram de significado emblemático por ter originado a primeira cidade-satélite de Brasília, prática de governo que depois virou retórica, e também enquanto exemplo de legitimação e captura do próprio discurso simbólico do governo.

A ocupação batizada pelo nome da então primeira dama fazia parte da tática de captura do discurso oficial e manipulação do próprio emblema da nova capital – seu “benfeitor” Juscelino Kubitschek. Foi resultado de um fluxo intenso de migrantes no auge das construções da nova capital e impedidos pela guarda da Novacap de se estabelecerem na Cidade Livre [que já era receptáculo dos que vinham em busca de trabalho], foram detidos por barreiras na estrada que davam acesso à Cidade Livre. Sem ter para onde ir, e desesperados, tomaram um terreno próximo ao acesso à cidade e lá montaram seus barracos.

Milhares de pessoas concentraram-se em menos de oito dias, improvisando uma cidade sem luz, água, esgoto, ruas, tudo funcionava de maneira precária. A escolha do nome Vila Sarah Kubitschek fazia parte da estratégia dos ocupantes. Esperavam, com essa homenagem à então primeira dama, impedir que a Novacap utilizasse a Guarda Especial de Brasília (GEB) para remover a invasão. (OLIVEIRA apud LUIZ , 2007).

Espalhados , taticamente, rumores de que por comando de “Dona Sarah” aqueles que ocupassem o terreno teriam seus direitos de posse por ela garantidos. Tal tática fez que com inchasse o fluxo de moradores da Vila, que imediatamente foi invadida por uma grande quantidade de candangos até então fixados na Cidade Livre, ou sem fixação alguma. Para Holston, foi um “cheque-mate” na Novacap que ficou sem meios de agir violentamente contra os ocupantes:

Esta eficiente estratégia seria repetida muitas vezes nas várias lutas pelo direito de residência. Com poucos recursos, a associação baseou sua estratégia naquilo que era livre para manipular – os símbolos do governo –, pois supunha, corretamente, que as autoridades teriam mais dificuldades em marchar contra seus próprios emblemas. (HOLSTON: 1993, p.262).

Ao incorporar o discurso oficial, o grupo criou o exercício de compor e decompor, estabeleceu um modo de subjetivação (o devir Brasília, enquanto um olhar consciente sobre o território e o desejo, o fluxo, de pertencer a ele) e desenhou seus objetos e seus saberes. No caso da Vila Sarah Kubitschek, sua biografia, se resguarda em determinações tácitas: Juscelino delegou à Novacap a criação de uma cidade-satélite, a 25 quilômetros do Plano Piloto - Taguatinga. E para lá iriam todos os invasores indesejados, os favelados de Brasília, sob a custódia da Novacap. O

que inicialmente foi recusado e repudiado, por fim foi contornado pela Companhia na insistência e reforço dos argumentos hegemônicos da lógica do capitalismo: a posse “legítima” de terra. Ao ser inaugurada, dois anos antes de Brasília, Taguatinga já contava com uma administração local nomeada pela Novacap, responsável pela concessão de lotes e pelo cuidado dos serviços urbanos; a mobilização política alcançada pela associação de residentes da Vila Sarah Kubitschek não sobreviveu à transferência de seus membros para Taguatinga (HOLSTON).

As lutas por permanência em Brasília são marcadas por uma guerra de reconhecimento de seus direitos à cidade, na dimensão da habitabilidade. No entanto, o entendimento de cidade é múltiplo, da perspectiva do agenciamento. Como dito anteriormente, assim como a Vila Sarah Kubitschek, ocorreram outras manifestações que contestavam esse direito de morar, essa dicotomia social e espacial acirrada pelo status e vantagens exclusivas distribuídas para o Plano Piloto.

Mais recentemente, transpostas décadas de ocupação invisível, o desejante- incorporador das maiores construtoras de Brasília, deu de cara com a presença territorializada de uma estratégia de criação de um mundo, um mundo estruturado na anticaptura.

#2 devir shopping, devir sertão

A, ao longo de 40 anos desde sua fundação, pouco se distancia da perspectiva inicial dos aparelhos de Estado, no duplo processo de transformar o solo urbano em mercadoria de troca e renda especulativa e na elitização e ocultação dos “cadáveres” 6. A marcha de ocupação do solo especulado de Brasília, teve enquanto invenção recente, a criação do Setor Noroeste, área de expansão residencial prevista por Lucio Costa quando solicitado a atuar novamente em Brasília, 25 anos após dua inauguração. Tal texto foi chamado “Brasília Revisitada 1985/87 – Complementação, Preservação, Adensamento e Expansão Urbana” e esteve anexado ao processo de tombamento de

Brasília. Basicamente constava de referências-base para o que se considerava “o essencial da concepção urbanística” de Brasília, expedição urbana das incorporadoras e construtoras brasilienses há ainda a sugestão de construção de uma última fronteira habitacional a ser implantada dentro daquela que é considerada a área tombada da cidade. A construção deveria dar-se mediante análise de demanda habitacional e atender a uma população de estrato social diversificado conforme Lucio Costa explicita:

Na implantação dos dois novos bairros a oeste – Oeste Sul e Oeste Norte – foram previstas quadras econômicas (pilotis e três pavimentos) para responder à demanda habitacional popular e superquadras (pilotis e seis pavimentos) para classe média, articuladas entre si por pequenos centros de bairro, com ocupação mais densa, gabaritos mais baixos (dois pavimentos sem pilotis) e uso misto.

Mas como historicamente já se pode compreender a forma de pensar e agir da parceria

6 A ideia de cadáver vem do livro de Michel De Certeau, “Historia e Psicanálise”, onde trata de vestígios históricos nos processos de construção de um discurso de cidade – os cadáveres a serem ocultados ou dissimulados (os espaços de alteridade) e sucessivas camuflagens de processos culturais.

entre o governo distrital e a indústria da construção civil no DF, houve uma captura desse discurso, relativizou-se a narrativa, e foi celebrada a intimidade entre a obsessão da ADEMI – Associação de Empresas do Mercado Imobiliário do Distrito Federal e o desejo do aparelho de Estado, que aprovou a implementação do Noroeste em 2008. O diálogo entre a ininterrupta realização de ocupação especulativa e o PDOT - Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF – legitimou o Noroeste, “primeiro bairro ecológico do Brasil” que iria marchar, ironicamente, sobre uma área de 800 ha de cerrado nativo e de nascentes. Mais ironicamente ainda, comprime a presença de 32

indígenas distribuídos em nove famílias7 que há mais de 40 anos residem na área.

O Ministério Público Federal entrou com questionamentos e propôs uma ação civil pública para coibir as atividades, tendo sua liminar cassada pelo STF em 2009. Desde então foram incontáveis embates, e o ano de 2011 ficou marcado pela intensificação da luta dos indígenas e da Frente de Apoiadores do Santuário dos Pajés pela defesa da reserva de cerrado e pela luta pelo direito a moradia e pela represália violenta da polícia e por medidas extrajurídicas da Terracap – Companhia Imobiliária de Brasília (oriunda do Departamento Imobiliário da Novacap) e do Ibama, de favorecimento dos investidores do empreendimento.

Atualmente a reserva resiste, utilizando de ferramentas de luta na esfera da macropolítica, aguardando um processo justo de demarcação do Santuário dos Pajés e na resistência heroica que acaba se convertendo em resistência ao real, lutando pela expansão da vida, e contra a captura cultural de uma condição de artifício para sua existência. Esses nômades tem um território, que os criam e vice-versa, estão na cidade. Através de suas formas de organização e administração, carregam em si uma generalização dentro da sua particularidade. Assim como inúmeros exemplos que trazem a tona o discurso de civilização, modernização, conquista e transformação social brasileira, a concepção e realização de Brasília tem representatividade histórica nesse pensamento. Os indígenas do Setor Noroeste, que transplantam sua realização prática de resistência cultural, ambiental e de limpeza étnica demarcam a perspectiva dual do que se acredita e se faz em nome de uma nação “desenvolvida e modernizada”. Mas principalmente, tornam-se uma alegoria que caracteriza a sociedade por suas práticas, e que assim produz sua crítica – usa a máscara do outro, em seu lugar.

A presença indígena na área de maior especulação imobiliária do Distrito Federal, e a política do desmando, da autoridade militar, da criminalização da resistência; elaboraram um dizer muito forte e reiteram o mito da construção de Brasília – onde a cidade-monumento é para poucos. A virada do século XIX lança uma compreensão sobre o pensamento social brasileiro, que ao compor a história da construção de Brasília pelo governo de Juscelino Kubitschek, naturaliza um processo que se reproduziu, e se reproduz até hoje, de diversas formas, em diversos lugares de cidades brasileiras.

Entendo que o modo como esses recortes foram aqui apresentados, enunciados, afeta a própria imaginação sobre o espaço e sobre a pesquisa, e que esse modo de imaginação se revela na produção de alteridades dentro desses recortes. Brasília é uma cidade imaginada e finalizada com um destino, fato que a torna ora a utopia do belo e

7 Segundo dados da Fundação Nacional do Índio o espaço conta com índios Fulni-ô, Kariri-Xocó, Korubo, Pankararu e Tuxá (...)

justo forjado pelo homem, ora uma versão distorcida desse mesmo pensamento finalizador, ora um território próprio de contestação da cidade instituída. São utopias, distopias ou heterotopias onde o lugar do observador é que o define.

Referências bibliográficas

CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte, MG: Autentica Editora, 2011.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1, Vol. 3 e Vol. 5. São Paulo, Ed. 34, 1997.

GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica. Cartografias do desejo. Petrópolis: Ed.Vozes, 2005.

HOLSTON, James. Cidade Modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

LUIZ, Edson Beú. Os filhos dos candangos: exclusão e identidades. Programa de Pós- Graduação em História, Universidade de Brasília, 2007.

Santuário dos Pajés: http://santuarionaosemove.net/. Acessado em 2 de setembro de 2013.