Hipóteses sobre a ocupação do território goiano no Setecentos
Resumo
Durante o Setecentos, a extensa Capitania de Goiás possuía em seu território apenas
uma vila, a capital Vila Boa. Diante dessa realidade, este artigo busca hipóteses para compreender as razões da política da Metrópole para essa região, revelando formas diversas de administração e outras categorias de povoamento, tais como os arraiais, as freguesias e os julgados.
Palavras-chave: hipóteses, território, Capitania de Goiás, setecentos
Abstract
During the Eighteenth Century, the extensive Captaincy of Goiás had in its territory only one vila, its capital Vila Boa. Given this reality, this article seeks hypothesis to understand the reasons for the Metropolis’ policy for this region, unveiling various forms of administration and different categories of population, such as arraiais, freguesias and julgados.
Keywords: hypothesis, territory, Captaincy of Goiás, eighteenth century
Prelúdio
Os Seminário de História da Cidade e do Urbanismo vêm apresentando uma grande gama de pesquisadores trabalhando com inúmeras facetas não só da História das Cidades, como também sobre a História Urbana e a História da Urbanização1. Esta última, tende a estudar o objeto em escalas variadas, analisando o processo da urbanização, ou seja, um processo mais social que puramente técnico. Por isso, a
necessidade em lançar luz não somente nos aspectos morfológicos urbanos de determinada cidade, mas ampliar a escala para o território, de modo a compreender a constituição das redes urbanas, levando-se em consideração as políticas contemporâneas que incidem nesse território e os atores que fazem a engrenagem funcionar na escala local.
Trabalhando nessa escala, referente à apropriação histórica do território, esse artigo tende a lançar algumas hipóteses sobre a ocupação do território goiano no setecentos. No século XVIII, a Metrópole estava empenhada em uma nova política estratégica em sua colônia do além mar: a de ocupação do vasto território a oeste. Durante esse período, a Metrópole investiu muito em levantamentos cartográficos de modo a conhecer e controlar melhor o território da colônia, sobretudo nas regiões de fronteira com a América espanhola2. Nesse contexto, requerimentos com pedidos de
1 A História da Urbanização aborda a produção dos espaços não somente através do urbanismo (via espaços projetados, inserido em uma lógica erudita) mas levando-se em conta também uma vertente vernácula, que diz respeito ao processo social de transformação desses espaços. Conferir BUENO, Beatriz P. S. Dossiê – Caminhos da História da Urbanização no Brasil-colônia. In Anais do Museu Paulista [online]. 2012, vol.20, n.1. Pg. 19. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v20n1/v20n1a02.pdf>.
2 Em Goiás, entretanto, a presença de engenheiros militares se limitava basicamente à elaboração de mapas gerais da capitania ou benfeitorias em núcleos mais desenvolvidos ou planejados, como o caso da capital Vila Boa (no plano do governador Luis da Cunha Menezes de 1778) ou dos aldeamentos de autorização para expedições ao sertão eram constantemente deferidos. Minas Gerais recebia um grande contingente populacional em busca do ouro e Cuiabá, com a descoberta de novos veios, provava que a distância valia a pena. No meio do caminho, uma região apenas percorrida, que até então não havia sido ocupada pela empresa colonizadora portuguesa.
Em 1726, após encontrar o metal precioso às margens do Rio Vermelho, Bartolomeu Bueno se tornou superintendente das Minas de Goiás. Lá fundou os primeiros arraiais da futura capitania: Barra, Ferreiro, Ouro Fino e Sant’anna. Como superintendente tinha a atribuição de manter a ordem e arrecadar impostos. Por ser o responsável pelo descobrimento do ouro, passou a ter direito ao controle das passagens dos rios e poder de distribuir datas minerais, dentre outros privilégios. Com base no Regimento de 1702, Palacín (1972, pg 34) atesta que o superintendente das minas acumulava cargos dos ouvidores e juízes de fora, tendo toda a jurisdição ordinária, cívil e crime das minas.
Passados dez anos de descobertas de novos veios e considerável crescimento populacional, a Coroa sentiu a necessidade de deter maior controle administrativo e econômico, ordenando em 1736, através de Carta Régia de 11 de fevereiro, que o Conde de Sarzedas, então governador da capitania de São Paulo, seguisse à região das Minas de Goiás com a finalidade de lá estabelecer uma vila. Em 1737 o governador faleceu na região, sem definir qual arraial receberia esta promoção.
Diante da urgência em manter a ordem, em um cenário tomado pela violência causada por brigas, roubos, invasões de terras e mortes, em 1738, Agostinho Telles Pacheco, sucessor de Bueno na superintendência das minas, informou ao rei D. João V da necessidade de instalação de justiça na região. Dessa solicitação decorreu a implantação dos julgados, solução paliativa já que naquelas minas não existia nenhuma vila.
A instalação da vila solicitada pela Coroa em 1736 só veio a se efetivar três anos depois. D. Luiz de Mascarenhas, sucessor de Sarzedas, optou pelo arraial de Sant’Anna para a implantação da Casa de Câmara e Cadeia. A partir de então, passou a ser reconhecida como Vila Boa e com isso selou sua eterna rivalidade com Meia Ponte, que também pleiteava a sede administrativa3. Boaventura (2007, pg. 67) defende em sua tese a escolha de Sant’Anna em detrimento de Meia Ponte em função da sua localização, que estaria a oeste de Tordesilhas. Embora alguns mapas acenassem a localização do meridiano, sabemos que a precisão não era um forte da cartografia do Setecentos. Dessa forma, os critérios de escolha da futura vila ainda
não foram realmente desvendados.
O fato é que até a passagem do século XVIII ao XIX, nenhum arraial além de Sant’Anna havia sido elevado à vila4, nem mesmo depois de conquistada a autonomia
São José de Mossâmedes e da Aldeia Maria, de 1774 e 1780, respectivamente.
3 Sant’Anna/Vila Boa atualmente é a cidade de Goiás e Meia Ponte é Pirenópolis. Meia Ponte só foi elevada à categoria de vila em 1832.
4No final da década de 20 do século XVIII surge no caminho de São Paulo o arraial de Santa Cruz. Nos
anos 1730, foram descobertas as minas ao norte, conhecidas como “minas do Tocantins”: Maranhão, Água Quente, Natividade, Traíras, São José, São Félix, Cachoeira, Pontal e Porto Real. O início da década seguinte foi marcada com a ocupação de Arraias, Cavalcante e Pilar. Como descreve Palacín (idem, pgs. 30 e 31), as novas minas estavam nas “desoladas montanhas da região norte, entre
da capitania de Goiás em relação à capitania de São Paulo em 1744. Vila Boa, por dispor de mais estrutura, foi escolhida como capital da recém criada capitania. D. Marcos de Noronha, o primeiro governador da Capitania de Goiás também conhecido como Conde dos Arcos, chegou em Vila Boa somente cinco anos depois da emancipação de Goiás.
Tabela 1. Vilas nas capitanias mineradoras do século XVIII
+———————-+———————-+———————-+ | > VILAS NAS | | | | > CAPITANIAS | | | | > MINERADORAS DO | | | | > SÉCULO XVIII | | | +======================+======================+======================+ | > Capitania de Minas | > Capitania de Mato | > Capitania de Goiás | | > Gerais | > Grosso | | +———————-+———————-+———————-+ | > 13 vilas5 | > 4 vilas6 | > 1 vila7 | +———————-+———————-+———————-+
O que se percebe em teses, dissertações e publicações é que muito já se falou sobre os bandeirantes e suas expedições, assim como sobre suas descobertas e ocupação do sertão goiano no Setecentos, retratada com o afã dos veios auríferos prosseguida por relatos sobre a decadência que assolou o século XIX. Entretanto, a inexistência de uma rede de vilas parece não ter incomodado os pesquisadores, que não questionaram esse fato em seus estudos.
Diante dessa inquietação, cabe uma breve revisão bibliográfica a respeito da História da Urbanização. No caso de Goiás, nomes como Luís Palacín e Paulo Bertran figuram como os principais pesquisadores contemporâneos que tratam da ocupação do território goiano em função da mineração. Escritos dos governadores da província de Goiás do Oitocentos como Cunha Mattos8 e Alencastre9, além do padre Silva e Souza10 são fontes essenciais para aqueles pesquisadores que se dispõem a estudar a história de Goiás.
A morfologia urbana enquanto espaço construído foi tratado por alguns arquitetos como Gustavo Neiva Coelho. Sua produção vem servindo de referência, por ser pioneira neste assunto em Goiás, abarcando nos seus estudos a configuração de alguns núcleos auríferos do Setecentos, principalmente o caso de Vila Boa, hoje cidade de Goiás. Meia Ponte, atual Pirenópolis, figura em várias publicações de Jarbas Jayme, incorporando basicamente aspectos de sua história.
Com um enfoque diferenciado, o trabalho mais recente a tratar do processo de formação e desenvolvimento da rede urbana das minas de Goiás no século XVIII é a
Tocantins e o deserto sertão da Bahia”. Outras minas vão surgindo ao longo do Setecentos, inclusive no período de decadência do ouro.
5 Mariana, antiga Vila de Nossa senhora do Ribeirão do Carmo, não foi contabilizada neste quadro por ter se tornanado cidade ainda no século XVIII. 1711: Vila Rica (Ouro Preto); Vila Real do Sabará.
1713: São Jõao Del Rei. 1714: Vila Nova da Rainha (Caeté); Vila do Príncipe (Serro). 1715: Piedade do Pitangui. 1718: São José Del Rei (Tiradentes). 1730: Minas Novas. 1789: São Bento do Tamanduá (Itapecerica). 1790: Queluz (Conselheiro Lafaiete). 1791: Barbacena. 1798: Campanha da Princesa (Campanha); Paracatu do Príncipe (Paracatu). FONSECA, 2001, p. 774.
6 1727: Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (Cuiabá). 1752: Vila Bela da Santíssima Trindade. 1778: Vila Maria do Paraguai (Cáceres). 1780: São Pedro del Rei (Poconé). AZEVEDO, 1956, p. 45
7 1739: Vila Boa (Goiás).
8 Chorographia histórica da província de Goyaz, escrito em 1824 e publicado no 2º Trimeste de 1874 na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
9 Anais da Província de Goiás, escrito em 1863 e publicado no 3º Trimestre de 1864 pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
10 O Descobrimento, Governo, População e Cousas Mais Notaveis da Capitania de Goyaz, concluído
em 1849 e publicado no 4º Trimestre de 1849 pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
tese defendida por Deusa Maria Rodrigues Boaventura em 2007 no PPG AU FAU USP. A sua pesquisa aborda principalmente os núcleos que receberam no Setecentos planos urbanos, em especial a capital Vila Boa e alguns aldeamentos indígenas. A pesquisadora aposta na urbanização da capitania como peça chave na política centralizadora da ocupação colonial portuguesa no Setecentos.
Mesmo com as referências acima, percebe-se uma grande lacuna em relação a estudos mais aprofundados sobre os demais arraiais mineradores goianos daquele período11. Diante deste cenário, é possível constatar um território ainda inexplorado, que tem como fonte segura os documentos armazenados nos arquivos públicos oficiais e religiosos.
Seguindo com o levantamento acerca da História da Urbanização no Brasil, nos deparamos com a obra que debutou os estudos acerca dessa temática, em perfeita sintonia com pesquisas correntes em outros países na passagem da década de 1950 para 196012. Com a obra “Evolução Urbana no Brasil 1500/1720”, Nestor Goulart Reis ainda é referência ao tratar, em linhas gerais, da organização colonial revelando
aspectos políticos, administrativos, econômicos e sociais daquele período, com enfoque na organização da rede urbana e dos núcleos propriamente ditos.
Pesquisadores das gerações seguintes apresentaram outras indagações, mas continuaram contribuindo para a produção de obras de referência a respeito da História da Urbanização. A abordagem de Roberta Delson, por sua vez, segue com o estudo acerca da política da Metrópole no século XVIII, enfocada na ampliação do sistema urbano pela “vasta hinterlândia” sendo controlada por uma política mais centralizadora por parte da Coroa. Em seu livro, são analisados alguns sítios urbanos desse período, entretanto o foco continua voltado aos centros mais desenvolvidos por assim dizer, ou seja, nas novas vilas e cidades.
Em seu livro “Cidade no Brasil: terra de quem?”, Murillo Marx aborda a relação Estado x Igreja de forma esclarecedora. Em sua obra, revela como as normas e os procedimentos eclesiásticos influenciaram na formação e no desenvolvimento do espaço urbano colonial. Em uma capitania como a de Goiás, isso fica muito claro, uma vez que a Câmara, até a passagem do século XVIII para o XIX só havia sido instalada em um único núcleo. O estudo mais aprofundado desse material é primordial para analisar o crescimento urbano dos arraiais goianos do Setecentos, que se desenvolveram tendo a Igreja como um dos principais agentes modeladores do núcleo minerador.
De uma maneira ou de outra, a bibliografia relacionada acima abarca questões diversas sobre a urbanização brasileira durante o período colonial, entretanto outros aspectos são tidos como lacuna. Em busca de referências a respeito de modos diferenciados e não convencionais de se governar, alguns autores acenaram com uma
11 Essa carência foi sentida quando busquei por bibliografia sobre os núcleos urbanos e edificações do século XVIII para compor os verbetes sobre os atuais estados de Goiás e Tocantins para o volume das Américas refente ao livro “Património de Origem Portuguesa no Mundo – Arquitectura e Urbanismo”, publicado em 2010 pela Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) em volume realizado sob direção de José Mattoso e coordenação de Renata Malcher Araújo.
12 Por apresentar um estudo histórico dos núcleos urbanos no território como um produto social, vale conferir a produção do argentino Jorge Enrique Hardoy (sobretudo a sua tese “Ciudades
Precolombinas”, defendida em Harvard em 1964) e os estudos da década anterior da italiana Donatella Calabi e do inglês Arthur Korn (BUENO, 2012, pg. 14).
possibilidade de estudo, sobretudo no caso dos julgados. Em sua análise referente à formação da Mata paraibana, Juliano Carvalho aborda os julgados atuando como uma alternativa por parte da Coroa para exercer controle sobre áreas ocupadas sem a necessidade de elevação de novas vilas. Com este estudo, fica claro que os julgados não eram uma prerrogativa somente das regiões mineradoras, uma vez que também estavam presentes em outras regiões da Colônia.
Claudia Damasceno Fonseca, responsável pela publicação do livro “Arraiais e Vilas D’el Rei: espaço e poder nas Minas setecentistas” passa a ser a principal referência sobre os julgados, por apontar essa forma de jurisdição atuando em uma região mineradora, na capitania vizinha de Minas Gerais13.
Ultrapassando os limites atuais dos estados da federação, trabalhando em uma perspectiva macroregional, Nestor Goulart Reis Filho em sua publicação mais recente “As Minas de Ouro e a formação das Capitanias do Sul" retrata a mineração nas capitanias do sul. Partindo do conceito de Paisagem Cultural, Goulart supera o regionalismo historiográfico em nome de uma visão mais ampliada, alinhavando em seu estudo a relação do homem com seu meio, o que determinou a transformação de uma nova paisagem, imprimindo no espaço as necessidades daquele grupo naquele momento.
As novas produções de História da Urbanização aos poucos vêm trazendo à tona novas perguntas e preenchendo vazios historiográficos. Com um enfoque atual, vêm trilhando alguns caminhos já percorridos, contudo apresentando questões que passaram despercebidas nos momentos anteriores.
Para além das vilas: as outras categorias de povoamento na capitania
Um fator comum entre os núcleos mineradores, além do extrativismo e da sua forma de ocupação, é seu caráter citadino – o que os difere das outras ocupações no território da colônia, ligadas às grandes sesmarias. Coelho (2001, p.139), analisando os núcleos auríferos, explica que
O processo minerador, pelo seu próprio caráter de organização, não comporta o estabelecimento da população de forma rural ou isolada. Assim, o seu desenvolvimento, baseado em uma forma de estruturação urbana completamente diferente da encontrada no período, faz com que o trabalho da mineração e o seu controle pelo Estado, por meio da cobrança dos inúmeros impostos a ela associados, passem a exigir um tipo de organização no qual o agrupamento urbano vai ser um elemento de fundamental importância.
Fonseca lista ainda mais duas semelhanças entre os arraiais: o caráter espontâneo e consequentemente vernacular em relação à ocupação e urbanização dos núcleos, além da forma como eram elevados à vila. Segundo a autora, “(...) não ocorreram criações
13 Sobre os julgados, conferir também SALGADO, Graça (org.). Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Arquivo Nacional, 1985 e SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: O tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609 – 1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
de vila ex nihilo, e sim concessões de autonomia municipal a povoações ou arraiais constituídos” (FONSECA, 2001, p.769), ao contrário da formação de outras vilas do setecentos que não vieram na crista da onda do ouro, mas foram frutos da empreitada da metrópole em se ocupar o sertão.
A autora trabalha ainda com a conceituação da palavra “arraial”. Analisando seu significado no Diccionario da Lingoa Portugueza, publicado em Lisboa pela Academia Real das Ciências de Lisboa no ano de 1793, o verbete aponta que arraial significava “exército posto em campanha, ou sítio em que está postado debaixo de barracas (...); alojamento de qualquer corpo volante de gente (...)”. Da reflexão que fez do termo, Fonseca ainda aponta que foi Saint-Hilaire quem constatou, ainda no século XIX, que “arraial” se empregava somente às regiões mineradoras. Dizia que a palavra significava um “lugar de acampamento” – ação que os primeiros mineiros fizeram e que, devido à quantidade de minérios que encontravam, acabavam se estabelecendo no local. Por fim, o botânico, segundo Fonseca, concluiu que com o tempo, o termo perdia seu significado primitivo – o de acampamento.
Os arraiais geralmente recebiam o nome do santo, que poderia ser aquele do dia de sua descoberta ou ainda o da devoção dos fundadores. Como aconteceu na bandeira de Bueno, era costume que religiosos acompanhassem as expedições. Quando da fundação do arraial, lá estavam para escolher o melhor lugar para a implantação da capela, de modo a se obter, um dia, a sagração do templo. Segundo Marx (1991, p.20, 22), a capela deveria estar implantada em local “decente”, num sítio alto, solta no espaço, livre da umidade e com lugar reservado para o adro, como constava nas Constituiçõens Primeyras do Arcebispado da Bahia, do século XVIII. Dessa forma, as recomendações eclesiásticas interferiram diretamente no desenho urbano, uma vez
que as determinações civis eram vagas ou simplesmente não existiam, até a instalação de uma câmara no local. A Igreja, representada pelo clero secular14, seguia como principal agente modelador do ordenamento urbano, guiando o crescimento urbano de acordo com a localização de seus templos, criando novos bairros e direcionando as áreas de expansão (COSTA, 2007, pg 33).
Com crescimento do núcleo e sua consolidação, não demora para o arraial ser reconhecido como freguesia e ter sua capela adquirido status de matriz. Marx (1991, p.18) aponta que “não era somente o acesso garantido então à desejada e necessária assistência religiosa que se obtinha, mas também ao reconhecimento da comunidade de fato e de direito perante ao próprio Estado”.
Como é sabido, o papel da Igreja nesses núcleos transcendia o caráter religioso. Nas freguesias, as matrizes desempenhavam papel importante por corresponderem aos núcleos das paróquias e o pároco, era a autoridade local. Nessas regiões a Igreja lidava com implicações sociais, civis e jurídicas, pois era local de encontros sociais (batizados, casamentos, festas) e de prestação de outros serviços, como registro de testamentos, realização de atividades de contagem da população, de devassas
14 É necessário reforçar o papel da Igreja durante o período colonial: o papado estabeleceu com a Coroa Portuguesa uma espécie de aliança, em que a última era responsável pela manutenção do clero secular e a Igreja, em contrapartida, servia de instrumento para manter a coesão do império português (CASTRO, José Luiz de A. Organização da Igreja Católica na Capitania de Goiás: 1726 – 1824.
Goiânia: Ed. da UCG, 2006, pg. 23). O Rei, grão-mestre da Ordem de Cristo, era responsável pela colação dos párocos e sua sustentação, fazendo dos mesmos funcionários da Coroa – o que era muito útil em regiões onde a Câmara ainda não tinha atuação.
eclesiásticas, entre outras atividades. (VASCONCELOS, 1997, p.251; CASTRO, 2006, p.133). Não é à toa que os arraiais elevados à vila normalmente já eram freguesias, ou seja, sediavam uma matriz em seu território, tendo outros arraiais subordinados a si.
Figura 1. Carta ou Plano
Geográfica da Capitania de Goyas. Fonte: IPEHBC
A Igreja delimitava as áreas territoriais correspondentes às freguesias, criando verdadeiras redes no território, a exemplo dos julgados. Ao analisar as cartas cartográficas da Capitania de Goiás do século XVIII é possível observar como esses sítios se relacionavam, ao identificar essas duas redes: uma eclesiástica e a outra, jurídica. Essa constatação fica mais clara no mapa acima, realizado por Thomas de Souza em 1778, mais conhecido como Mapa dos Julgados. Observando esse cenário é possível verificar a existência de outras redes urbanas, mesmo sem o estabelecimento de uma trama composta por vilas.
Segundo o VOCABULARIO PORTUGUEZ & LATINO, aulico, anatomico, architectonico... de Rafael Bluteau, publicado em 172815, julgado é uma povoação que não tem pelourinho e não goza dos privilégios de vila, entretanto é servido por justiça. Dessa forma, os julgados não possuíam autonomia administrativa como as
vilas, mas com a instalação da justiça, os arraiais passavam a ser dotados de juízes ordinários. Com essa estrutura, a cabeça de julgado possuía autonomia judiciária apenas parcial, uma vez que não possuía a jurisdição completa, ou seja, não comportava em sua estrutura juízes responsáveis pela administração de bens dos órfãos e por julgamentos no cível ou crime. Dessa forma, esses julgados continuavam dependentes de uma câmara vizinha (FONSECA, 2011, pg. 89). Na capitania de Goiás era comum verificar a presença da cadeia nas cabeças de julgado, como no caso de Meia Ponte e Pilar.
Qual seria a estratégia da Coroa portuguesa para a não elevação de Vilas?
Uma inquietação acompanha esse artigo e aqui serão lançadas alguma hipóteses, de modo a vislumbrar quais seriam os interesses da Coroa Portuguesa em manter a Capitania de Goiás longe da atuação das Câmaras no século XVIII.
Com a não ereção de vilas e consequentemente, com a não instalação da Casa de Câmara e Cadeia, a Coroa poderia manter o poder local longe da administração colonial, uma vez que alguns funcionários, como os vereadores e o procurador do concelho eram figuras de destaque da sociedade local, eleitos pelo povo. Esses funcionários ocupavam um cargo não remunerado, no entanto era bastante comum a confusão entre o que era público e o que era privado (RIBEIRO, 2010), o que poderia ser perigoso numa região mineradora.
Cláudia Damasceno Fonseca acena outras possibilidades para a não elevação de arraiais a vilas. Segundo Fonseca (2001, p.781), na capitania de Minas Gerais, uma razão para o número reduzido de vilas (se comparado ao desenvolvimento dos arraiais lá existentes no século XVIII) se dava em função de disputas territoriais internas. A ereção de uma nova vila resultaria em uma diminuição nas rendas municipais do concelho vizinho, em virtude da redução do seu território de atuação. Em uma primeira análise, na capitania de Goiás essa hipótese não procede, pois até o fim do século XVIII só possuía uma única vila em seu vasto território.
Segundo seu artigo que trata do processo de formação e evolução da rede urbana na capitania de Minas Gerais, a pesquisadora (FONSECA, 2001, p. 774 apud ZENHA, 1948) observa que a argumentação mais recorrente para pedidos de criação de vilas diz respeito à dotar de justiça determinado arraial. Em territórios mineradores era comum a invasão de terras, ocorrências de brigas, roubos e mortes. Uma forma de tentar contornar tal situação, sem que fosse preciso a ereção de uma vila, seria com a criação de julgados.
Se em Minas Gerais, assim como atesta Fonseca (2011, pgs 32 e 33), a “instituição de vilas com vastos termos era o meio utilizado pela Coroa para fazer com que o braço da justiça e do fisco chegasse até os arraiais mais longínquos (...)”, em Goiás a tática da Coroa Portuguesa foi outra. Teria sido a constituição de uma rede de julgados a
15 Disponibilizado pela Brasiliana USP pelo link <<http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/edicao/1>>.
forma que a Coroa portuguesa escolheu para estender seus tentáculos nas minas goianas?
Considerações Finais
Este artigo tem um caráter ensaístico e faz parte de um projeto maior, a elaboração de uma tese de doutorado que está apenas se iniciando junto à FAU USP. Aqui foram tratadas algumas considerações concernentes à pesquisa bibliográfica, ao estado de arte da Capitania de Goiás no Setecentos e hipóteses sobre a política aplicada pela
coroa portuguesa nessa capitania. A não elevação de vilas em uma capitania tão extensa16 sempre foi uma inquietação. Afinal, qual seria a tática da Metrópole nessa capitania, optando por dotar este vasto território com uma rede de julgados em detrimento da elevação de arraiais a vilas?
Acentuando essa situação, existe uma carência de estudos sobre outras redes urbanas, sobretudo no caso dos julgados. Diante disso, a realização dessa tese pretende preencher uma lacuna existente, ao apresentar essa forma de organização tão peculiar e própria dos núcleos urbanos na Capitania de Goiás.
Para a realização da tese, serão levantadas e consultadas fontes documentais, textuais, cartográficas e iconográficas em arquivos e será realizada intensa revisão bibliográfica.
Após o processo de pesquisa bibliográfica e documental, será possível construir um cenário propício para a discussão sobre o tema a ser trabalhado na tese. Como referencial teórico para a análise do material coletado, Bernard Lepetit tem demonstrado ser o guia ideal para estudos acerca da historiografia urbana. Segundo o estudioso, pensar a cidade não se limita a trabalhar somente com sua malha: ela está inserida em um contexto, em uma escala maior, territorial, que compõe um sistema junto a outros núcleos. Outro aspecto importante tratado por Lepetit é a importância da inserção dos atores na história, que se relacionam entre si e transformam o espaço.
Por essa razão é imprescindível o completo entendimento das ações e papeis desse atores: afinal, qual o lugar da Coroa, da Justiça e da Igreja na Capitania de Goiás? Como esses agentes se relacionavam e quais sinais deixaram impressos no território e, avaliando em outra escala, qual seu legado nos núcleos urbanos mineradores goianos?
O estudo aqui proposto parte da escala macro, analisando a capitania com suas relações internas e a contextualizando em relação ao seu lugar na Colônia. Como parte da investigação da política portuguesa na capitania, se faz necessário o completo entendimento das relações internas, compreendendo as redes urbanas, sobretudo as dos julgados. Numa escala mais próxima, dar-se-á o estudo de como se deu o desenvolvimento urbano em um arraial, independente da atuação do Concelho e de normas formais urbanísticas. Nesta escala, a Igreja passa a ter papel primordial, por ser um dos principais agentes modeladores desses núcleos urbanos de caráter minerador. A análise abarca questões relativas à estrutura fundiária, acompanhando o processo de formação inicial e seu desenvolvimento físico.
16 Uma vez que incorporava os atuais estados de Goiás, Tocantins e porções de estados vizinhos, como o caso do “triângulo mineiro. A dimensão da capitania fica mais clara ao se analisar o Mapa dos Julgados.
Tomando o cuidado em compreender a Capitania de Goiás como um todo e não simplesmente como um somatório de situações distintas, o desenvolvimento desse trabalho pretende partir do geral (a capitania e sua relação com as capitanias vizinhas, as redes de julgados e freguesias) para o particular, respeitando a singularidade dos sítios urbanos.
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