Resumo

O artigo se debruça sobre três estudos para a canalização do rio Tietê na cidade de São Paulo, realizados pelo governo do estado no século XIX. Ao trazer suas prescrições mais importantes a tona, mostra o encadeamento entre elas, os atores envolvidos nessas propostas, e deixa entrever que os interesses vinculados a obras consideradas prioritárias e implantadas, nem sempre estão vinculados a grandes corporações.

Palavras-chave: Rio Tietê, Retificação do Rio Tietê, Luis Bianchi Bertoldi, Teodoro de Sampaio, João Pereira Ferraz

Abstract

This paper describes three propositions to the Tietê rectilinear watercourse at São Paulo city, from State Government of São Paulo in the 19th. In that we have put on edge the most important propositions and could show the link between them, and the professionals involved in each one with the intention to discuss that the decisions for made some public works, its prioritization have, sometimes, motivations no linked necessarily with powered corporations.

Keywords: Tietê river, Tietê rectilinear watercourse, Luis Bianchi Bertoldi, Teodoro de Sampaio, João Pereira Ferraz

Introdução

A retificação e canalização do rio Tietê no município de São Paulo é uma obra que levou mais de oitenta anos para se concretizar, desde o momento que os estudos iniciais começaram a ser desenvolvidos, até a abertura do canal, nos anos 1940.

Ao se debruçar sobre os vários estudos percebe-se que, ainda que os mais conhecidos e mais consequentes tenham sido realizados no século XX, existiram vários outros ainda no século XIX que de certa forma foram alinhavando pensamentos e ideias sobre como lidar com o problema do saneamento e das enchentes na cidade de São Paulo, em nada diferentes daqueles melhor desenvolvidos no século seguinte.

Outra constatação já possível, de pesquisa em andamento, é que os interesses que motivaram as soluções finalmente adotadas no século XX, já estavam configurados no século anterior, ainda que não tão explícitos, e que existiram atores que ainda não foram explorados em pesquisas recentes.

Espera-se com esse artigo contribuir para os estudos que abordam a formação do território da cidade de São Paulo, em especial para aqueles que tratam da atuação do poder público no desenvolvimento e implantação de obras hidráulicas, e trazer a tona a atuação de alguns personagens, que através do saber técnico, influíam em decisões políticas de suas chefias, realçando o fato de que no interior dos órgãos públicos, técnicos e gestores se influenciam mutuamente, e que nem sempre a atuação dos primeiros está isenta de interesses pessoais.

Obras públicas – a organização do setor de saneamento no interior do governo

No Governo Provincial de São Paulo, o setor encarregado das obras era a Inspetoria Geral de Obras Públicas (criada em 1867), substituída pela Superintendência de Obras

Públicas (após 1890), que posteriormente ficou vinculada à Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, criada em 1892. Com a proclamação da República,

A primeira repartição a sofrer reformulações foi a de Obras Públicas. Eram notórias entre os paulistas as irregularidades e ineficiência que cercavam este órgão da província, responsável pela manutenção e construção de estradas, pontes e prédios públicos, estando sob a sua gerência a fiscalização dos trabalhos realizados pelas companhias ferroviárias, através dos engenheiros fiscais. (CAMPOS, 2007: 286)

Cabia também ao Governo Provincial o desenvolvimento de projetos e a implantação de obras de saneamento para os rios e várzeas. As constantes inundações das várzeas dos rios Tamanduateí e Tietê na cidade de São Paulo e as preocupações com a regularização dos seus cursos levou à elaboração de levantamentos topográficos e ao desenvolvimento de propostas para retificação do rio Tietê entre os anos de 18831 e 1913, sendo que a partir de 1889, com a proclamação da República, parte das atribuições em obras do Estado passam para as Prefeituras, mas não as obras hidráulicas. (SIMÕES JUNIOR,

1990)

Em 1890, Prudente de Moraes, governador do Estado, nomeou uma comissão para desenvolver estudos mais completos das várzeas e da hidrografia desses rios. Esta comissão, denominada Comissão de Saneamento das Várzeas da Capital, existiu até 1892. Chefiada por Antônio Francisco de Paula Souza, então o diretor da Superintendência de Obras Públicas do Governo do Estado, contou com os trabalhos do engenheiro Theodoro de Sampaio. (COSTA, 2005)

Em Abril de 1892 outra comissão foi criada, a Comissão de Saneamento do Estado, composta de três seções, duas atuando na capital (a seção do Tamanduateí e a seção do Tietê) e uma de Santos. (BERNARDINI, 2007)

A então recém-criada Comissão de Saneamento do Estado seria entregue ao engenheiro João Pereira Ferraz. Este, junto com Paula Souza, viria a participar da fundação da Escola Politécnica de São Paulo, de onde seria lente de hidráulica de 1895 a 1926.

Os estudos para conter as inundações na cidade de São Paulo

As intenções de regularizar o leito do rio Tietê nas proximidades da cidade de São Paulo datam da década de 1880.

Em 1883, a partir de estudos que se iniciaram em 1881, o Engenheiro Eusébio Stevaux, da Inspetoria Geral de Obras Públicas, apresentava ao Presidente da Província, Domingos Antônio Raiol - o Barão de Guajará, projeto para derrocada das “cachoeiras” do Tietê, na região da Casa Verde, que segundo ele eram as responsáveis por constantes alagamentos e inundações na época das chuvas. A principal preocupação do Engenheiro era com “a supressão desse foco de miasmas e a transformação desses horríveis pauis em terrenos férteis e produtivos” (STEVAUX, 1883: 1)

Mas a preocupação tinha contornos mais amplos, pois defendia a ideia de aproveitar mais intensivamente aqueles terrenos para a atividade agrícola, que segundo SEABRA (1987) era realizada pelos “caipiras” que habitavam de forma esparsa a região da Casa Verde e da Freguesia do Ó.

Portanto, ainda que a preocupação principal fosse de se evitar as enchentes periódicas, desde o início o saneamento das várzeas esteve vinculado ao interesse econômico do melhor aproveitamento daqueles terrenos, interesse de seus proprietários e usuários, e também explicitamente defendido pelos técnicos que estudavam soluções para o problema.

1 Contudo, as primeiras intervenções nas várzeas dos rios Tamanduateí e Tietê, ainda que de pequeno porte, datam da década de 1840. Cf CUSTÓDIO, 2007.

Ainda que a várzea do Carmo, ao longo do Tamanduateí, fosse aquela que recebia maiores atenções e projetos de melhoria naqueles anos, a implantação das estradas de ferro, a “Inglesa” em 1867 e a Sorocabana em 1875, transformou as várzeas do Tietê em terrenos propícios à implantação de moradias ou atividades econômicas, locais que com o trem, deixavam de estar longe da cidade ou do porto, e tiveram como consequência a valorização daquelas terras.

Também a Lei de Terras, promulgada em 1850, contribuía para a valorização, pois aos poucos levava à regularização das propriedades fundiárias.

Ao que tudo indica, no começo do século atual2, os trechos de

várzea e baixos terraços, ao longo do Tietê, ainda não tinham sido objeto de uma ação racionalizadora de empresas imobiliárias; a ocupação de caráter urbano alcançava a várzea pelo crescimento da cidade em alguns trechos da margem esquerda do rio. Eram de fato terras menos valorizadas no mercado, mas já não eram terras devolutas, pois, gradativamente, iam tendo seus títulos de propriedade definidos, legalizados.” (SEABRA, 1987: 50)

Também já era aventada naquele momento a ideia de que obras pudessem ser realizadas por particulares e pagas com terrenos das várzeas.

... e que para o aformoseamento da Várzea do Carmo, como a concebera S. Exs., a despesa /.../ seria tão avultada que convinha deixar esse melhoramento à iniciativa particular mediante concessões de terrenos segundo algumas pretensões que nesta época foram apresentadas ao Governo. (STEVAUX, 1883: 2)

Apesar do estudo do engenheiro Steveaux ter sido realizado em 1883, em 1885 correspondência do Diretor da Repartição de Obras Públicas do Estado, Francisco de Salles Oliveira Júnior, ainda pedia a aprovação do orçamento da obra.

A menção seguinte à retificação do Tietê ou de parte dele ocorreria em 1887, com a revisão das propostas pelo engenheiro Luis Bianchi Bertoldi. Em 87, o engenheiro Bianchi Bertoldi era, na Repartição de Obras Públicas, o responsável pela seção da capital.

Os estudos elaborados por Bertoldi foram medições da altura das águas dos rios Tamanduateí e Tietê no período de cheias (a grande cheia de 1887), do km 71 da estrada de ferro São Paulo Railway, entre a estação de São Caetano e Ipiranga, à estação de Barueri da estrada de ferro Sorocabana. Os levantamentos o fizeram concluir que os alagamentos na várzea do Carmo tinham relação direta com os do Tietê e o consequente represamento que este ocasionava às águas do Tamanduateí, conclusões que seriam constestadas anos mais tarde por Teodoro de Sampaio, que diria não haver relação entre as enchentes das duas várzeas, que ocorriam em momentos diferentes e que só coincidiam em raras ocasiões, quando estas eram muito graves.

O relatório de BERTOLDI (1887) coloca outros pontos interessantes. Seria ele o primeiro a propor que se retificasse o rio, da foz do Tamanduateí até as “cachoeiras” de Santana de Parnaíba. Argumentava que as enchentes ocorriam por causa da baixa velocidade com que o rio atravessava o território da cidade de São Paulo, e que por causa disso e da extensa várzea não cavava um canal de boa profundidade para escoamento das águas.

... convindo notar que o vale do rio Tietê no extenso trecho que eu tive ocasião de reconhecer é sempre invariavelmente

2 Século XX.

acompanhado por uma várzea quase nunca inferior a um quilometro ao menos de largura, formada à direita ou à esquerda, e muitas vezes de ambos os lados do canal. (BERTOLDI, 1887:15)

Ainda apontava que havia uma queda mais significativa, “não excedendo 15 centímetros” (BERTOLDI, 1887), na seção da ponte da estrada de ferro Santos-Jundiaí, na Água Branca, e que depois disso o rio ampliava seu “canal” de escoamento, em aparente imobilidade de suas águas,

... com exceção sobre as curvas mais vivas do canal, cobrindo e perdendo os traços do aterrado do Anastácio e dos recifes existentes no trecho observado até o bairro de Barueri, a cerca de 50 quilômetros abaixo da ponte grande da capital. O rio dos Pinheiros, abaixo do aterrado do Anastácio igualava com o nível das águas do rio Tietê cobrindo o aterrado da ferrovia Sorocabana, alagando sua imensa várzea e alcançando o nível da sapata dos trilhos sobre o vigamento da ponte. (BERTOLDI, 1887: 15)

Ainda que a principal recomendação do relatório em relação ao Tietê fosse que se criasse uma comissão de estudos para estudar mais profundamente soluções para os alagamentos da várzea, algumas sugestões seriam, anos mais tarde, desenvolvidas por outros engenheiros, e implantadas ainda no século XIX.

Bertoldi (1887) sugeria também que:

.… para aproveitar os desnivelamentos dos pequenos saltos situados além do bairro do Barueri, seria necessário estabelecer no fundo do rio uma declividade uniforme entre os dois pontos extremos do trecho que deve ser melhorado, isto é, até o aterrado de Santana... (p. 16)

... será fácil salvar das enchentes a zona ribeirinha mais importante, canalizando o rio Tietê e levantando o terreno marginal até o nível da Ponte Grande no aterrado de Santana. (p. 17)

... estabelecendo uma grande represa e abrindo acima de Mogi das Cruzes um canal túnel, despejando parte das águas do rio Tietê nos vales da marinha. O comprimento desse túnel não excederia a distancia de 20 a 25 quilometros até encontrar a fralda oriental da Serra que verte para o mar.” (p. 18)

Toda a argumentação para saneamento da várzea, contida no relatório de Bertoldi, é pontilhada por razões de ordem econômica que apontam vantagens na regularização do curso do rio. Sugere plantações na várzea, “com agricultura apropriada a terrenos alagadiços” (p. 19), a concessão de “zonas argilosas” para as olarias mediante impostos, e a demarcação de lotes a serem concedidos a colonos para exploração agrícola.

A regularização do rio Tietê e do Tamanduateí, já então entendida como uma ação que deveria abarcar os dois rios, volta a ser estudada com a profundidade sugerida por Bertoldi somente após a proclamação da República.

Em 1890, no governo de Prudente de Moraes, é criada a Comissão de Saneamento das Várzeas da Capital. Chefiada por Antônio Francisco de Paula Souza, contou com os trabalhos do engenheiro Theodoro de Sampaio, então lotado na Comissão Geológica e Geográfica de São Paulo, subordinada à Superintendência de Obras Públicas. (COSTA, 2005)

O relatório dos trabalhos, concluído em 1891, foi redigido por Sampaio. Nele encontram-se proposições para a canalização dos rios, drenagem das várzeas, obras contra enchentes, obras de “aformosamento”, etc. (CAMPOS, 2007)

Entre 1887 e 1891, a cidade crescera de forma acelerada, e é muito interessante a descrição da cidade de São Paulo que Sampaio faz nesse relatório, que mostra que as várzeas, inclusive a do Tietê, já estavam em intenso processo de ocupação.

Sampaio cita várias vezes o relatório de Bertoldi, sendo este possivelmente o ponto de partida para as suas propostas.

Dizia ser urgente a canalização de ambos os rios e a proteção da parte mais baixa da cidade que constantemente era inundada, caso do Bom Retiro, do Pari e do Brás, por exemplo.

Sampaio (1892) propõe a canalização do Tietê, da foz do Tamanduateí até a ponte da São Paulo Railway na Água Branca, a construção de dique marginal para contenção das águas nos períodos das cheias (dique que existiria somente do “lado da cidade” – margem direita do Tietê), e a drenagem da várzea do Carmo, através da implantação de galerias. Fala também na derrocada das “cachoeiras da Casa Verde, e sugere que seja feito nesse local um canal pelo meio da Ilha de Inhaúma.

A proposição de soluções para melhorias na várzea do rio Tietê, no âmbito no Estado, não se encerraria com o relatório da Comissão das Várzeas. Em 1892, ao assumir a chefia da recém-criada Comissão de Saneamento do Estado, o engenheiro João Pereira Ferraz, contraditaria algumas recomendações de Sampaio, o que ficou registrado em relatório elaborado por Ferraz (SÃO PAULO, 1894), elaborado em 1893, e que traria as propostas desse engenheiro e de sua equipe.

A Comissão proporia a canalização do Tietê quase que em linha reta, “reduzindo o percurso atual do rio Tietê de cerca de 60%” (SÃO PAULO, 1894:15 - anexo n.º 3), a criação de um canal na região do Anastácio, desobstrução de algumas corredeiras na região da Casa Verde, e abertura de um canal com declividade uniforme de 0,30m por quilometro, o que permitiria aumentar a vazão do rio, em especial após a desembocadura de seus afluentes Tamanduateí e Pinheiros.

Nesse relatório (SÃO PAULO, 1894- anexo n.º 3) a Comissão contestava a proposta de Sampaio de que se ampliasse a vazão sob a ponte da estrada de ferro Santos-Jundiaí, dizendo que naquela região a baixa velocidade devia-se mais a existência de uma “garganta” após a desembocadura do rio Pinheiros, no km 16 da estrada de ferro Sorocabana, que estrangulava a passagem das águas, apoiando o relatório de Bertoldi.

A Comissão concluía propondo algumas obras pontuais, segundo ele prioritárias, como a abertura do canal do Anastácio, a desobstrução das corredeiras e abertura de valas de descarga provisórias, a desobstrução do rio criando um canal pela ilha de Inhaúma. O relatório da Comissão de Saneamento do Estado, que enquanto registro textual serial complementado por mais dois relatórios publicados em 1894, um deles somente de plantas dos estudos e propostas, acompanha o raciocínio realizado por Bertoldi.

Figura 1. Planta que acompanha o relatório de João Pereira Ferraz. Fonte: Arquivo Público do Estado (FERRAZ (2), 1894)

Em 1894, sob a supervisão do engenheiro João Pereira Ferraz seriam detalhados o projeto para a abertura do Canal do Anastácio e o Canal entre os quilômetros 16 e 18 da estrada de ferro Sorocabana, hoje no município de Osasco (Canal de Osasco), e por esse projeto também a ilha de Inhaúma, nas proximidades da Casa Verde, deixava de existir, a partir da abertura do canal em seu interior e da derrocada das cachoeiras. Esses detalhamentos referiam-se a obras sobre as quais já havia decisão no âmbito técnico e político em se realizar, pois foram iniciadas naquele ano.

O projeto de retificação e canalização do rio Tietê abrangeria um território bem menor do que a do estudo de 1892 (compare a Figura 1 e a Figura 2), além dos canais do Anastácio e de Osasco, e ainda que publicado, já não era o projeto que a Comissão defendia. O chefe da Seção Central, à época da publicação desse relatório, o engenheiro José Antônio da Fonseca Rodrigues, ao estudar o projeto de canalização, dizia que talvez fosse melhor fazê-la acompanhando algumas curvas do rio, e não em linha reta.

Em o relatório que me foi presente pelo atual chefe de Seção, engenheiro Fonseca Rodrigues aventa ele a ideia de não se levar em linha reta o canal desde a “Ponte Grande” até Anastácio; não havendo a preocupação dessa linha reta, parece com efeito, haver vantagens, já não se fazendo diques ou obras semelhantes, sobre o antigo leito, já podendo ser aproveitada a ponte construída no braço do rio Tietê para transpô-lo a linha do Tramway da Cantareira. (FERRAZ, 1984: 7)

As obras seriam lentas: em 1898, quatro anos depois, ofício da Comissão de Saneamento do Estado de São Paulo informava que o canal do Anastácio ainda não estava completamente aberto. (Ofício n.º 239 de 7 de Maio de 1898)

Figura 2 – Projeto de retificação e canalização do rio Tietê, publicado por Ferraz em 1894 (trecho). Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo – Secção do Tietê - Planta do Tietê de São Paulo à Parnahyba – Esc. 1:50.000

O projeto do canal do Anastácio – algumas considerações

No Anastácio, como pode ser visto na Figura 2, o rio dava uma grande volta, e vimos que Bertoldi, na grande enchente de 1887, diz ter ficado o aterrado do Anastácio

inteiramente tomado pelas águas. Isso devia impedir a utilização do caminho que seguia para Jundiaí e por lá passava. Porém não existe no relatório de Sampaio sequer menção à necessidade de se diminuir o trajeto do rio nesse ponto, e dois anos mais tarde, no relatório da Comissão de Saneamento, o canal já surge como definido, com projeto detalhado (Figura 3) e sabemos que as obras começaram naqueles anos.

Figura 3 – Planta do projeto do Canal do Anastácio – 1895 - Fonte: Arquivo Público do Estado, Escala 1: 1.000

No relatório da Comissão de Saneamento, entregue ao Secretário de Agricultura (SÃO PAULO, 1894), a justificativa para a abertura é apresentada como sendo uma oportunidade de reduzir uma extensão do rio de 3 km para somente 580m, o que, segundo os técnicos, aumentaria de forma acentuada a velocidade do rio. Isso complementado com a abertura do canal de Osasco e a derrocada da ilha de Inhaúma fazia com que os engenheiros supusessem que se conseguiria aumentar de forma acentuada a velocidade de escoamento das águas. Existe, portanto, uma justificativa técnica que coincidia com um local onde o rio dava uma grande volta, mas ao observamos a Figura 2 veremos que havia outros locais em que isso também seria possível, e estes não foram objeto de retificação. Porque então foi em Anastácio que se efetuou uma das primeiras retificações do Tietê?

Interesses explícitos e não tão explícitos

Em 1994 já surgiam atividades nas proximidades do Tietê a noroeste da cidade. Entre a Barra Funda e a Vila Bocaiuva, já se instalara a Companhia Antártica Paulista. As regiões da Água Branca e da Vila Romana já se encontravam identificadas (Figura 2), bem como a Casa Verde e a Freguesia do Ó.

As ferrovias também abriram pequenas estações na região, a estação da Água Branca – implantada pela “inglesa” em 1867 (que serviria à Vidraria Santa Marina, instalada em 1892 de propriedade de Antônio da Silva Prado) e a parada do Anastácio, nas proximidades da ponte do Anastácio.

Entretanto, foi a Água Branca escolhida para sede de uma estação, ainda que intermediária (entre São Paulo e Perus), devido a sua localização estratégica, pois dali se bifurcavam caminhos para a Freguesia do Ó, Pinheiros e Cidade de Campinas... (SANTOS, 1980: 45)

Já a Estrada de Ferro Sorocabana, à época de sua inauguração (1875), também faria uma pequena parada na confluência com o Caminho para Jundiaí, e a estação Lapa da São

Paulo Railway – a Inglesa – foi inaugurada em 1898 e a da Sorocabana em 1899. (SEABRA, 1987)

Se o Canal do Anastácio, local assim denominado por ficar nas terras que no século XVIII o Coronel Anastácio de Freitas Trancoso administrava, começou a ser aberto em 1894, o arruamento da área dessecada somente aconteceria em 1919, que surgiria com o nome de Vila Anastácio. (SANTOS, 1980)

A construção desse canal e a derrocada da Ilha de Inhaúma foram as únicas obras significativas de alteração do curso do Tietê na cidade de São Paulo realizadas no século

XIX. Esses dois trechos do rio eram locais usados como passagem pela população de São Paulo e viajantes: a Ilha de Inhaúma ficava no caminho que ligava a cidade ao local conhecido como Casa Verde, onde se plantava algodão consumido nas pequenas tecelagens da cidade de São Paulo, e onde era feito o plantio de legumes e verduras que abasteciam a cidade, além de exploração de areia.

Já no Anastácio, onde existia uma ponte desde tempos remotos, além de um serviço de balsa que atendia o trânsito entre as duas margens do rio (conforme ofício da Diretoria de Obras Públicas de 11 de Maio de 1883) existia um caminho que ligava São Paulo à Jundiaí, Campinas e Itu.

A abertura do Canal do Anastácio, portanto, atendia a vários interesses além da prevenção contra enchentes, e só para reforçar os aqui elencados: os interesses das ferrovias, das fábricas que aos poucos começavam a ocupar as várzeas, dos moradores – operários – que ao poucos se instalavam na região da Lapa e aos que se utilizavam dos caminhos que iam ao interior do Estado e a Goiás ou à Casa Verde.

Mas também atendia o interesse de funcionários – engenheiros – do Estado que desenvolviam os projetos e aconselhavam a realização de obras. Vejamos essa passagem de SANTOS (1980:50)

... os terrenos entre os dois trilhos ferroviários pertenciam ao espólio de João Batista Leitão, uma vez que fora transferido para Antônio Xavier Borba, que passou, em 5 de janeiro de 1886, ao Dr Bertholdi (sic); local onde havia uma casinha de chácara e outra casa da turma de conservação da São Paulo Railway...”

Santos (1980) diz ainda que o Dr Bertholdi (sic) tratava-se do Dr. Luis Bianchi Bertholdi, engenheiro, e que ele loteou a Vila Romana em 1888, como um loteamento agrícola, ocupado depois por italianos em sua maioria, que chegavam com as campanhas de imigração.

Citando ainda o ano de 18873, Santos (1980: 50/51) nos diz que:

O Dr. Bertholdi, em nome de Antônio Xavier Borba, reivindicou, em 1º de julho de 1887, ao Juiz Comissário de Colonização de São Paulo e Santo Amaro, que se dignasse proceder à medição e demarcação do Sítio Mandi de Cima; de cuja planta observamos que continha uma área de três milhões duzentos e doze mil e quinhentos e quatro metros quadrados, com residência e vinhas. Em suas confrontações se faziam pelo Corredor da Lapa (rua Guaicurús), estrada de Pinheiros (rua Nossa Senhora da Lapa), onde estava a casa de Brasílio de Tal, Capelinha de Nossa Senhora da Lapa e outra casa anexa.

A Vila Romana foi loteada por Bertoldi em parte da área do Sítio Mandi de Cima, tendo em vista as confrontações citadas por Santos. (1980).

3 Mesmo ano que Bertoldi estudava a grande cheia dos rios Tietê e Tamanduateí e escrevia seu relatório.

Em 1888 Bertoldi pediu exoneração do cargo de engenheiro chefe da Seção Central da Repartição de Obras Públicas, mas em 1892 as diretrizes do seu relatório eram usadas pela Comissão de Saneamento para projetar obras de retificação do Tietê.

João Pereira Ferraz, o chefe da Comissão, em 1896 passaria a Chefe da Comissão Técnica de Melhoramentos Municipais (CAMPOS, 2002), na Intendência de Obras, órgão ligado ao legislativo municipal, que era quem geria a cidade. Quando em 1899 o primeiro prefeito de São Paulo transformou a Intendência de Obras em Diretoria de Obras sob a direção de Victor da Silva Freire, esta, segundo CAMPOS (2002) contava com oito engenheiros, Luis Bianchi Bertoldi entre eles.

Isto nos leva a crer que Ferraz tenha levado Bertoldi para trabalhar com ele na Intendência de Obras, e se isso ocorreu, podemos supor que havia um relacionamento profissional mais próximo entre os dois engenheiros.

Como vimos, Bertoldi tinha interesses pessoais na melhoria das inundações na várzea ou aterrado do Anastácio, interesses esses que podem ter também contribuído para a decisão “técnica” de se retificar o rio naquele trecho.

Conclusão

Quisemos mostrar com esse artigo que existem interesses que permeiam decisões técnicas e políticas na esfera pública, que não estão necessariamente vinculadas a grandes corporações, indústrias ou interesses imobiliários. Interesses “menores”, interesses que não são públicos e sim privados, e que acabam por definir algumas decisões.

Ao encontrarmos esse encadeamento de relações e coincidências dentro do poder público estadual e municipal, quando se fala da retificação e canalização do Tietê, pareceu-nos ser importante tentar desvendá-los, uma vez que estes também são parte do processo de decisões que levaram à soluções adotadas naqueles anos, e que tiveram rebatimentos e influências em projetos posteriores, uma vez que o engenheiro José Antônio de Fonseca Rodrigues, que trabalhou na Comissão de Saneamento com Ferraz, foi o responsável pelo projeto de canalização do rio Tietê apresentado à Câmara Municipal em 1922, e que criticado por Victor da Silva Freire e por João Florence de Uchôa Cintra (engenheiro da equipe de Freire), acabou levando à contratação de Saturnino de Brito, que para desenvolver sua proposta também estudou todas essas propostas formuladas no século XIX.

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