RESUMO

Entre o final da década de 1930 e o início da década de 1960 ocorre um processo de redefinição da habitação enquanto questão urbanística no Brasil. Do ponto de vista da história do pensamento urbanístico, esta redefinição representa a superação das concepções higienistas que desde o final do século XIX se mantinham como a formulação mais acabada de uma proposta de transformação da cidade, onde a moradia - das chamadas classes pobres ou classes “ perigosas” - assumiu papel central. A medicina social se organiza como poder político e a cidade torna-se objeto privilegiado da sua intervenção. Da organização interna da moradia à expansão urbana, os médicos propõem a transformação dos costumes e da administração. A nova ordem urbana deve se realizar por uma atuação eminentemente normalizadora.

No Brasil, essa perspectiva que associa controle sanitário e policial das moradias das classe pobres, somente começa a ser repensada e alterada a partir do final da década de 1930. Nesse momento, a associação entre habitação e planejamento passa a ser formulada com base nas especificidades da urbanização dos grandes centros latino-americanos. Esta nova formulação tem como fator determinante a inserção do Brasil no circuito da cooperação interamericana promovida por organismos internacionais .

Ao longo de duas décadas, entre o Primer Congreso Panamericano de la Vivienda Popular, em Buenos Aires, em 1939, e o Seminário de Técnicos y Funcionários en Planeamiento Urbano organizado pelo Centro Interamericano de Vivienda y Planeamiento em Bogotá, em 1958, com a participação de urbanistas brasileiros, emerge uma visão de planejamento que incorpora a habitação como um direito, a política como intrínseca ao processo de planejamento, o controle da especulação da terra urbana e o planejamento na escala metropolitana. Estes princípios profundamente enraizados nos problemas enfrentados pelo acelerado crescimento dos grandes centros da América Latina, expressos na Carta de los Andes resultante do Seminário em Bogotá, estarão nas décadas seguintes no centro do ideário urbanístico no Brasil. Sua primeira formalização ocorre no Seminário de Habitação e Reforma Urbana realizado no Rio de Janeiro e em São Paulo, em 1963, no âmbito de

movimentos sociais que reivindicavam as “reformas de base” no governo de Jango Goulart (1961-1964), dentre as quais se incluía a reforma urbana.

Palavras chave: planejamento, habitação, Carta de los Andes, Seminário de Habitação e Reforma Urbana, metrópole latino-americana

ABSTRACT

Between the late 1930s and early 1960s a redefinition of housing as an urban issue occurs in Brazil . This redefinition can be understood as the overcoming of hygienist conceptions that since the late XIXth century remained as the most complete formulation of a proposal of transformation of the city where the housing of the so called “poor” or “dangerous” classes assumed a central role. With the organization of social medicine as a political power, the city becomes a privileged object of its intervention: from the internal organization of the house to urban sprawl , the new urban order must be performed by a highly normative action. In Brazil

, this perspective that associates sanitary and police control of the poor classes, only begins to be rethought and changed in the 1930s . But only at the end of the decade a new conception starts to be formulated : the association between planning and social housing based on the specifities of Latin American urbanization processses. For this new formulation Brazil's inclusion in the circuit of inter-American cooperation promoted by international institutions as Panamerican Union (PAU), Organization of American States ( OAS) and United Nations (UN), among others, is decisive.Over two decades , from the Primer Congreso Panamericano de la Vivienda Popular, organized by the PAU and the Argentine government in Buenos Aires, in 1939, and the Seminario de Técnicos y Funcionários en Planeamiento Urbano organized by the Centro Interamericano de Vivienda y Planeamiento in Bogota, in 1958 , with the participation of Brazilian planners, emerges a view of politics as intrinsic to the planning process. The control of urban land speculation, housing as a right and planning in the metropolitan scale are expressed in the “Carta de los Andes” resulting from the Seminario in Bogota.These principles , deeply rooted in the problems faced by the rapid growth of large cities in Latin America, are to the present days in the center of urban ideas in Brazil. Its first formalization occurs in the Seminário de Habitação e Reforma Urbana held in Rio de Janeiro and São Paulo, in 1963, as part of social movements that demanded the urban reform, just before the military coup in 1964.

Keywords: planning,housing, Carta de Los Andes, Seminário de Habitação e Reforma Urbana, latin american metropolis

PLANEJAMENTO E HABITAÇÃO NO BRASIL: A PERSPECTIVA DA METRÓPOLE LATINO-AMERICANA (1939-1963)

Sarah Feldman1

EIXO TEMÁTICO: Discurso Profissional INTRODUÇÃO

Entre o final da década de 1930 e o início da década de 1960 ocorre um processo de redefinição da habitação enquanto questão urbanística no Brasil. Do ponto de vista da história do pensamento urbanístico, esta redefinição representa a superação das concepções higienistas que desde o final do século XIX se mantinham como a formulação mais acabada de uma proposta de transformação da cidade, onde a moradia - das chamadas classes pobres ou classes “ perigosas” - assumiu papel central. A medicina social se organiza como poder político e a cidade torna-se objeto privilegiado da sua intervenção. Da organização interna da moradia à expansão urbana, penetrando em todos os locais da cidade, os médicos propõem a transformação dos costumes e da administração. Ao tematizar a cidade enquanto totalidade, a nova ordem urbana deve se realizar por uma atuação eminentemente normalizadora.

No Brasil, essa perspectiva que associa controle sanitário e policial das moradias das classe pobres, somente começa a ser repensada e alterada a partir do final da década de 1930. Nesse momento, a associação entre habitação e planejamento passa a ser formulada com base nas especificidades da urbanização dos grandes centros latino-americanos. Esta nova formulação tem como fator determinante a inserção do Brasil no circuito da cooperação interamericana promovida por organismos internacionais .

Ao longo de duas décadas, entre o Primer Congreso Panamericano de la Vivienda Popular, organizado pela Unión Panamericana e pelo Governo argentino em Buenos Aires, em 1939, e o Seminario de Técnicos y Funcionários em Planeamiento Urbano organizado pelo Centro Interamericano de Vivienda y Planeamiento em Bogotá, em 1958, com a participação de urbanistas brasileiros, emerge uma visão de planejamento que incorpora a habitação como um direito, a política como intrínseca ao processo de planejamento, o controle da especulação da terra urbana e o planejamento na escala metropolitana.

1 Docente e Pesquisadora do Instituto de Arquitetura e Urbanismo –USP; Pesquisadora do CNPQ

Estes princípios profundamente enraizados nos problemas enfrentados pelo acelerado crescimento dos grandes centros da América Latina, expressos na Carta de los Andes resultante do Seminário em Bogotá, estarão nas décadas seguintes no centro do ideário urbanístico no Brasil.

Sua primeira formalização ocorre no Seminário de Habitação e Reforma Urbana realizado no Rio de Janeiro e em São Paulo , em 1963, no âmbito de movimentos sociais que reivindicavam as “reformas de base” no governo de Jango Goulart (1961-1964), dentre as quais se incluía a reforma urbana.

A construção deste ideário é abordada neste texto como uma trama de movimentos do campo do planejamento a partir de três eixos analíticos :

  • O intenso processo de reconstrução de saberes e práticas urbanísticas e as mudanças na atuação do Estado na produção da habitação que ocorrem no Brasil no contexto autoritário da Era Vargas ( !930-1945) e no chamado periodo democrático (1946- 1964);

  • as conferências e congressos realizados pela Unión Panamericana (UP) e Organização dos Estados Americanos ( OEA) entre 1939 e 1958, quando a questão da habitação se institucionaliza no âmbito da cooperação interamericana;

  • o engajamento de experts de diferentes campos disciplinares e de diferentes países na missão de cooperação e assistência técnica às regiões subdesenvolvidas através da UP, OEA e Organização das Nações Unidas ( ONU).

No Brasil, a década de 1930 é um momento de reconstrução de saberes e práticas de planejamento e de atendimento à questão habitacional mobilizados pela nova realidade urbano-industrial. Ambos estão no centro das políticas desenvolvidas pelo presidente Getúlio Vargas, a partir do governo provisório instalado em 1930.

Com a modernização da administração pública, os urbanistas se inserem no processo de formação de uma elite burocrática que busca eficiência, economia e racionalidade em todos os níveis de governo, tendo por pressuposto a separação entre política e administração. (Feldman, 2008) A habitação emerge como um aspecto crucial da condições de vida dos trabalhadores e mudanças na produção estatal de habitações são o resultado do envolvimento de profissionais, empresários e políticos. (Bonduki, 1998)

Mas, apesar de concepções de habitação seguirem os princípios da indissociabilidade entre arquitetura e urbanismo dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna-CIAMs (Bonduki, op.cit) e a precariedade das condições de habitação em áreas periféricas estar incorporada no debate urbano, habitação e planejamento até o final da década permanecem como campos paralelos de formulação e de ação.

Neste momento, a inserção do Brasil nos programas de cooperação técnica com os países América Latina e América Central patrocinados pela Unión Panamericana aciona dois movimentos importantes: o reconhecimento da habitação como uma agenda urbanística e a perda de hegemonia da perspectiva técnica que prevalece no planejamento até a década de 1940 .

Desde a década de 1920 a habitação teve um lugar de destaque não só nos Congressos Pan- Americanos de arquitetos, mas também em reuniões de engenheiros, sociólogos, economistas e outros grupos profissionais. Mas é no Primer Congreso Panamericano de la Vivienda Popular, organizado pela Unión Panamericana e pelo Governo argentino, em 1939, que pela primeira vez a habitação foi o tema exclusivo em um Congresso Continental. Reconhecido como um problema comum e um dos maiores que afetavam os países americanos, a habitação foi abordada em seus aspectos econômicos, higiênicos, sociais, financeiros, jurídicos, legislativos, arquitetônicas, construtivos e urbanísticos. A criação de um Instituto Panamericano de la Vivienda Popular foi recomendada. (Solow y Masis de 1950: 4)

O Brasil teve participação destacada neste congresso, com uma representação que reuniu profissionais de agências federais relacionadas com a produção de habitação e à indústria de

construção - Rubens Porto, Paulo Accioly de Sá e um urbanista atuante e reconhecido nacionalmente -Francisco Baptista de Oliveira.2 Baptista de Oliveira foi o presidente da comissão responsável pelo tema " O urbanismo e a habitação popular " e Rubens Porto foi

o presidente da comissão responsável pelo tema "Aspectos Sociais".

A Comissão "O urbanismo e a habitação popular" incluiu entre suas recomendações a abordagem da habitação como um problema urbanístico e a idéia de um plano de habitação popular, a ser considerado como parte integrante do Plano Regulador e Regional. Além disso, indicam a criação de instituições nacionais - institutos de habitação popular, para

  1. O engenheiro Plinio Reis Catanhede era presidente do IAPI; o engenheiro Paulo Acioli de Sá era diretor da Divisão de Indústria da Construção Instituto Nacional de Tecnologia; o arquiteto Rubens Porto era assessor técnico do Conselho Nacional do Trabalho, e o engenheiro Francisco Baptista de Oliveira era presidente do Centro Carioca , uma organização cívica. (Revista Arquitetura e Urbanismo. Novembro e Dezembro. 1939: 66-70).

aplicação dos princípios básicos consagrados nos Congressos, e um Comitê Interamericano de Habitação Popular - para intercambio de estudos realizados pelos distintos países. (Unión Panamericana, 1950)

O impacto desta participação foi imediato e significativo. Baptista de Oliveira e Rubens Porto realizam conferências e publicam artigos em revistas sobre as decisões e recomendações do Congresso, destacando os problemas da habitação no Brasil.

Mas a maior evidência do impacto pode ser melhor percebida em dois eventos realizados em 1941 no Brasil: o I Congresso Brasileiro de Urbanismo e as Jornadas da Habitação Econômica, ambos no Rio de Janeiro. Baptista de Oliveira foi o presidente da comissão organizadora do I Congresso e Rubens Porto foi o presidente da comissão executiva das Jornadas.

Nestes eventos o envolvimento de setores governamentais e técnicos, bem como de organizações da sociedade civil revelam o esforço de institucionalização do planejamento e da habitação. O I Congresso reuniu trezentos participantes, entre representantes de prefeituras e de governos estaduais de várias regiões do país, associações profissionais, organizações de construtores, etc. As Jornadas tiveram o caráter de uma campanha, com palestras em várias instituições transmitidas por diferentes canais de radiodifusão.

A agenda das Jornadas incorporou a abordagem multidisciplinar do Primer Congreso com sessões temáticas sobre aspectos sociais, técnicos, financeiros e urbanísticos. As conclusões do I Congresso de Urbanismo são exatamente as mesmas da Comissão do Aspecto Urbanístico do Congresso de Buenos Aires. A indicação de que as áreas destinadas às habitações populares devem ser previamente estudadas do ponto de vista urbanístico e subordinadas a um plano diretor da cidade; que as legislações relativas ás construções e habitações devem estar em harmonia com as legislações urbanísticas, e de criação de um Instituto da Casa Popular, refletem uma articulação local – e também uma articulação pan- americana. Em suas conclusões, o I Congresso de Urbanismo incorpora que “na elaboração de planos futuros sejam atendidos princípios que constam da Ata final do 1º Congresso Panamericano de Municípios”, realizado em 1938, em Cuba, na cidade de Havana, quando foi criada a Organización Interamericana de Cooperación Intermunicipal.

As Conferências Interamericanas: experts internacionais, profissionais locais e a metrópole latino-americana

Ao longo dos anos 1940 e 1950 a associação planejamento e habitação é institucionalizada no âmbito dos programas de cooperação interamericana. Nesse processo, a mobilização de experts ligados às universidades e à prática no campo do planejamento e de profissionais dos

países da América Latina e Central impulsionou a reflexão sobre a realidade latino- americana.

A explosão urbana do Terceiro Mundo, como mostra Gorelik (2001), torna-se a grande novidade sociológica do pós-guerra - o centro das atenções nas teorias da modernização, nas políticas de desenvolvimento, na formulação do conceito de subdesenvolvimento e nas concepções de questões urbanas e regionais.

A criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945 e da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1948, garante o principal suporte institucional para envolver profissionais de diferentes disciplinas e de diferentes países em programas de cooperação e assistência técnica para as regiões subdesenvolvidas. Como afirma Topalov (1982:31), é um momento em que "... sem um dogma a priori sobre o papel do Estado, uma boa parte dos homens da ciência urbana tornam-se managers ou experts a serviço do aparato governamental “.

No Brasil, o Point Four Program criado por Harry Truman em 1949 e aprovado em 1950 para troca de conhecimento técnico e experiência com os países subdesenvolvidos foi a porta de entrada para os consultores da ONU, da OEA, UP, Fundação Ford, entre outras instituições internacionais. No mesmo ano é criada no Brasil uma Comissão Nacional de Assistência Técnica no Ministério das Relações Exteriores para preparar planos para obter assistência técnica, e dois anos mais tarde é assinado um acordo com a OEA para transferência de conhecimentos científicos e técnicos. Experts norte-americanos - engenheiros, economistas, administradores, pesquisadores afluíram para o Brasil para ajudar as instituições na preparação de técnicos. No sentido contrário, mais de dois mil brasileiros receberam treinamento nos setores público e privado nos Estados Unidos (Cottam, s / d: 9)

No campo do planejamento duas abordagens na formação de quadros técnicos podem ser distinguidos: por um lado, a associação de planejamento ao desenvolvimento, como uma questão de administração, como uma racionalidade para superar as desigualdades regionais em países subdesenvolvidos. Por outro lado, a associação de planejamento e habitação para população de baixa renda: o rápido crescimento das cidades, a escassez de habitação, os processos especulativos devem ser considerados fatores de ordem regional.

Nestes dois caminhos, a inserção de experts no Brasil é realizada de várias formas: através de estudos acadêmicos, como o de Francis Violich "Cities of Latin America. Housing and planning to the South”, publicado em1944; através do ensino, como os cursos planejamento ministrados por John Friedmann entre 1955 e 1958, financiados pelo Point Four Program;

através da participação em planos, que envolvem um grande número de profissionais, incluindo Violich, em São Paulo (1968) e Friedmann, na Bahia (1961) e no Pará (1971).3 Outra forma de inserção é através da criação e direção de uma instituição de urbanismo que atua junto a órgãos públicos estaduais e municipais. Este é o caso - talvez único na história do planejamento urbano no Brasil - de Louis Joseph Lebret, ligado ao movimento francês Economie et Humanisme. Em sua primeira visita ao Brasil, em 1947, Lebret cria a

SAGMACS - Sociedade de Análise gráfica e Mecanográfica Aplicada à Complexo Social, em São Paulo, como um braço do SAGMA França.3 Até 1964 SAGMACS desenvolve estudos e planos e oferece cursos para a formação de quadros técnicos, no Brasil, em outros países da América Latina e na França.4

Ao longo das décadas de 1940 e 1950 as Conferências Interamericanas como órgão supremo da OEA são os fóruns onde planejamento e habitação na perspectiva da metrópole da América Latina toma forma - em conteúdo e em estrutura institucional.

Em 1943 a Divisão de Trabalho e Informação Social da UP publica o estudo Low cost housing in LA , uma pesquisa preliminar desenvolvida por Francis Violich, e cria um programa permanente de pesquisa e informação sobre habitação. Violich, contratado como housing and City Planning Specialist at the PAU, dirige o programa até 1947, quando é substituído por Anatole A. Solow, da University of Pittsburg.

Em 1949 uma Divisão de Habitação e Planejamento é criada no Departamento Económico e Social da Unión Panamericana. Uma vasta gama de atividades para o desenvolvimento de programas de ação social voltados para as necessidades dos países americanos mobiliza profissionais que agregam aos princípios técnicos dos experts um amplo conhecimento da realidade das metrópoles latino-americana. Nesse mesmo ano é publicada uma versão ampliada da pesquisa de Violich, abrangendo as condições de moradia e ações e instituições atuantes em 20 países da América Latina e América Central.

  1. Friedmann e Violich atuam na América Latina através dos programas de assistência aos países subdesenvolvidos como consultores da ONU, OEA, Pan American Union, Ford Foundation. Os dois americanos desenvolvem suas carreiras como consultores paralelamente ao vínculo com a Universidade. Violich teve papel fundamental na criação do City and Regional Planning Department da University of California - Berkeley em 1948 e na formação do College of Environmental Design, dez anos depois. Friedman foi fundador do Program for Urban Planning na Graduate School of Architecture and Planning da University of California-Los Angeles nos anos de 1960. (Feldman,2012

4 O trabalho de Angelo, Michelly (2010) Les Développeurs Louis-Joseph Lebret e a SAGMACS na formação de

um grupo de ação para o planejamento urbano no Brasil. Tese de Doutorado. São Carlos. IAUUSPlocaliza mais de 300 profissionais brasileiros envolvidos nos trabalhos desenvolvidos pela SAGMACS, e em oito anos de atividade do Institut de Recherche et de Formation en vue du Développement Harmonisé (IRFED) criado por Lebret, em 1958, na França, de 517 estudantes, 178 eram latinoamericanos

Métodos de produção, construção e financiamento, inventário e definição de eliminação do déficit, reabilitação de bairros insalubres, planejamento, instituições, padrões de urbanização e zoneamento, etc foram objeto de encontros em todo o continente. O Brasil sediou um dos três seminários regionais sobre questões sociais de habitação e desenvolvimento urbano, em Porto Alegre, em 1951. Os outros dois fora sediados em Quito e em El Salvador em 1950. (Unión Panamericana, 1952)

O foco na cooperação interamericana para a crise da habitação na América Latina é explicitado no relatório que Anatole Solow e Luis Vera apresentam no VIII Congresso Pan- Americano de Arquitetos, em 1952, no México:

O problema é essencialmente social e entre as diferentes atividades envolvidas, a responsabilidade do arquiteto para a ordem social é enorme e deve superar o desempenho dentro dos limites de concepção e construção. (Solow, A.; Vera, L. 1952: 8)

Do ponto de vista institucional, um passo decisivo foi dado em 1951 com a criação do Centro Inter-Americano de Vivienda - CINVA, vinculado à Universidade Nacional da Colômbia, em Bogotá, através de um Programa de Cooperação Técnica da OEA. Nesse momento um Comitê Interamericano é criado, realizando a decisão do Primer Congreso, em 1939. O CINVA começa a atuar em ensino, pesquisa, intercâmbio, assistência em habitação, arquitetura e urbanismo, e dá origem ao primeiro curso de pós-graduação sobre o tema na Colômbia. (Restrepo, 2003)

Em 1954, na X Conferência Panamericana, em Caracas, o nome de CINVA é alterado para Centro Inter-Americano de Vivienda y Planeamiento. A instituição assume um caráter permanente e a atribuição de desenvolver trabalhos na área de planejamento.

A partir daí o CINVA começa a mobilizar técnicos envolvidos no planejamento. Em 1956 ocorre a Primera Reunión Técnica Interamericana de Vivienda y Planeamiento, e dois anos mais tarde, o Seminario de Técnicos y Funcionários en Planeamiento Urbano, ambos em Bogotá.

Neste Seminario um conjunto de medidas que redefinem estratégias de planejamento e habitação e moldam uma abordagem profundamente enraizada na realidade da metrópole da América Latina é assumido por representantes de países América Latina e da América Central no documento denominado "Carta de Los Andes".

Da "Carta de los Andes" (1958) ao "Seminário de Habitação e Reforma Urbana" (1963)

A "Carta de los Andes", documento com as conclusões e recomendações do Seminário de Técnicos y Funcionários Planeamiento Urbano expressa o processo que ocorre nos programas

de cooperação inter-americanas a partir do final da década de 1930 até o final da década de 1950. Este documento combina, por um lado, o repertório mobilizado por experts sobre a "gramática" da prática de planejamento, detalhando os processos, etapas, habilidades, etc. e, por outro, o repertório da realidade enfrentada pelos profissionais latino-americanos em grandes centros urbanos.

O documento é acompanhado de uma carta assinada por cerca de 40 participantes, entre eles Antonio Bezerra Baltar, Newton de Oliveira e Mario Larangeira5, que integraram a delegação brasileira. A carta - dirigida aos povos da América - reafirma a crença no planejamento como a ferramenta mais adequada para superar as grandes dificuldades em consequência do baixo nível de desenvolvimento econômico, político, social e cultural.

Em três itens da Carta - "Características do planejamento regional, metropolitano e urbano na América Latina"; "O processo geral de renovação urbana" e "Habilitação de áreas subdesenvolvidas" - a realidade da metrópole da América Latina e América Central é analisada. A migração, as altas taxas de crescimento populacional, a expansão urbana dos grandes centros, a especulação, a formação de favelas e habitações precárias e a falta de serviços públicos constituem um quadro preciso dos processos que devem ser superados através da combinação de políticas de planejamento e habitação.

Entre as decisões, três aspectos estarão nas décadas seguintes no centro do debate sobre o planejamento urbano no Brasil, bem como em vários outros países do continente americano: o planejamento na escala metropolitana, o controle da especulação de terras e moradias para famílias de baixa renda .

As propostas destes três aspectos trouxeram inovações para ideias e práticas que vinham sendo disseminadas no Brasil.

Em primeiro lugar, a escala de planejamento metropolitano é uma mudança radical em relação ao planejamento na escala regional amplamente defendido no início de 1950, tendo como referência dominante a experiência da Tennessee Valey Authority, nos Estados Unidos. Embora o planejamento metropolitano como uma prática não se concretize, a realidade metropolitana permanece hegemônica na pesquisa urbana e na política urbana no Brasil, ofuscando a dimensão regional.

Em segundo lugar, a tributação sobre a terra subutilizada para controlar a especulação e a reserva de terras não urbanizadas pelo governo para implementar programas sociais serão assumidos entre os planejadores como uma parte fundamental de uma política nacional de

5 Antonio Bezerra Baltar , do Recife, e Mario Larangeira, de São Paulo, tinham ligações com a SAGMACS, e Newton de Oliveira, de Salvador, atuava no Instituto de Arquitetos do Brasil

habitação. Embora o Town and Country Act de 1947 (Inglaterra) fosse mencionado por alguns profissionais, na década de 1950, como a regulamentação mais avançada do uso da terra, não passava de situações isoladas.

Em terceiro lugar, a possibilidade de regulações especiais para assentamentos para a população de baixa renda e a construção por ajuda mútua com assistência técnica, económica e social das municipalidades rompe com a hegemonia das práticas referenciadas na arquitetura moderna no Brasil, nas décadas de 1930 e 1940. De acordo com Gorelik (2010), esta versão das redes pan americanas do reformismo urbano é concebida com intensa participação de Violich.6

No Brasil, a agenda de planejamento e habitação construída ao longo de duas décadas nos fóruns interamericanos é formalizada no "Seminário de Habitação e Reforma Urbana", organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil com o apoio do governo federal, um ano antes do golpe os militar de 1964. Com o surgimento dos movimentos sociais politizados que reivindicam as "reformas de base", durante o governo de Jango Goulart (1961-1964), arquitetos e planejadores se mobilizam em torno da ideia de reforma urbana.

Há um consenso entre os estudos que discutem o Seminario de 1963 sobre o protagonismo de arquitetos na formulação de uma política nacional de habitação.

Silva e Silva (2005) identificam o Seminario como o ponto de partida tanto para os conceitos e instrumentos relacionados a ideia de reforma urbana, e como origem do pensamento da política urbana expressa no Estatuto da Cidade aprovado no Brasil em 2001.

Para Bonduki e Khoury (2007) as conclusões do Seminário são uma antecipação em muitos aspectos do que será proposto após o golpe de 1964, com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH) e o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU ) - especialmente nos aspectos que não entram em conflito com o caráter conservador do regime.

Sobre os problemas habitacionais e urbanos, os autores referem-se ao I Congresso de Habitação, realizado em São Paulo em 1931, como a única referência que identifica a necessidade de ações para o controle da propriedade do solo urbano para resolver o problema da habitação social. Ribeiro e Pontual (2009) detectam as ideias do CIAM e do Movimento Economie et Humanisme como duas referências fortes para abordagem social de planejamento entre arquitetos.

6 Gorelik desenvolve uma acurada análise sobre a disseminação da assistência técnica à produção de habitação por ajuda mutual e a crítica aos projetos de arquitetura moderna . O autor distingue as duas abordagens como panamercana e latino americana, respectivamente.

Mas as conclusões do Seminario de 1963 nos permitem adicionar a estas análises o forte impacto das idéias desenvolvidas nas conferências e seminários interamericanos sobre planejamento e habitação. A abordagem da metrópole latino-americana é evidente nas relações entre a distribuição de renda, a migração desencadeada pelo crescimento da população, a estrutura agrária arcaica, a industrialização e a demanda habitacional que fundamentam a defesa de um planejamento nacional do território e da habitacão.

O documento produzido por Anatole Solow e Luis Vera, em 1952, mostra a reverberação dos programas de cooperação inter-americana relacionados ao planejamento e habitação entre os arquitetos. Desde o V Congresso Panamericano de Arquitetura realizado em 1940 no Uruguai, podemos observar uma correspondência direta entre as decisões tomadas nas conferências interamericanas e aquelas dos congressos Panamericanos de arquitetos. Este documento nos ajuda a desvendar uma parte obscura da história do planejamento no Brasil, quando os arquitetos assumem uma perspectiva social para o planejamento e habitação.

Além da participação de profissionais brasileiros nas conferências interamericanas desde o final da década de 1930, a "Carta de los Andes" teve uma difusão significativa entre os urbanistas. Traduzida e publicada no Brasil em 1960 - apenas dois anos após sua formulação

- a Carta é apontada no prefácio escrito por Luiz Inacio de Anhaia Mello como um dos três documentos que orientam o planejamento territorial. Os outros dois eram, segundo Anhaia Mello, a Carta de Atenas (1933), do IV CIAM, e a Charte d'Aménagement (1952), documento com as conclusões da semana de estudos promovida pelo grupo de Economie et Humanisme coordenado por Lebret, em LaTourrete, na França.

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